A viagem de Michel Onfray

O viajante de Onfray é em essência um viajante em sua vida, um “animal inquieto”
Para Onfray, o viajante deve “deixar-se preencher pelo líquido local, à maneira dos vasos comunicantes”
01/01/2010

Era uma noite numa livraria qualquer, numa grande cidade brasileira, durante a estação do inferno regida pelas festas de fim de ano: trânsito nodoso, rostos ruins, paciências esgotadas. Até que alguém pescou o livro Teoria da viagem, do filósofo francês Michel Onfray (L&PM, tradução de Paulo Neves), lançado em 2009 no Brasil.

Teoria da viagem, que leva o subtítulo de poética da geografia, pode ser lido, como foi, de uma sentada. Tem pouco mais de cem páginas, que se organizam capítulos como as fases de uma viagem: primeiro querê-la, então escolher a destinação, em seguida o momento de deslocamento, o “durante” da viagem, o reencontro com o lugar de partida, e o depois que a memória negocia.

Somos convidados a rever o conceito de viagem no mundo contemporâneo — e ao mesmo tempo recuperar o sentimento de uma época em que viajar era, de fato, partir em busca do desconhecido.

Cada um de nós se descobre nômade ou sedentário, avisa o filósofo já à primeira página: “amante de fluxos, transportes, deslocamentos, ou apaixonado por estatismo, imobilismo e raízes”. São dois modos de ser no mundo, ilustrados por exemplo pelo mito de Caim e Abel — o pastor, que conduz os animais em movimento, contra o agricultor, preso ao campo. “Os andarilhos, os vagabundos, os errantes, os que pastam, correm, viajam, vagueiam, flanam, palmilham, já e sempre em oposição aos enraizados, aos imóveis, aos petrificados, aos erigidos em estátua. A água dos riachos, corrente e inapreensível, viva, contra a mineralidade das pedras mortas. O rio e a árvore.”

Desnecessário dizer, o próprio Michel Onfray é um entusiasta das viagens. Seu entusiasmo é onipresente no livro, assim como são claras suas opções diante das categorias que ele mesmo sugere.

A oposição entre o viajante e o turista talvez seja a mais insistente delas. Fazer turismo seria a opção protegida, a cadeira do espectador “militante de seu próprio enraizamento”, a constatação dos lugares-comuns ensinados pelos guias da agência de turismo, a “paixão comparatista”. Viajar, por outro lado, seria a recusa dos clichês e “dos instrumentos comparativos que imponham a leitura de um lugar com os referenciais de um outro”, o que subentende um “deixar-se preencher pelo líquido local, à maneira dos vasos comunicantes”.

Claro: cada um de nós tem possibilidades limitadas de escolher seus destinos de viagem. Mesmo que coloquemos de lado situações extremas, ora estamos limitados pelos nossos recursos, ora por um visto a um país estrangeiro que pode ou não ser concedido, ora por um problema de saúde, ora por um imperativo do trabalho ou da família. São raros aqueles que podem, e conseguem, se desatrelar por completo de sua rigidez de árvore para virar a correnteza do rio, como nas duas categorias de Onfray.

Porém, ele nos consola ao sugerir que a viagem se relaciona de maneira íntima com o ideal socrático do conhecer-se, e que toda viagem é, em suma, não uma terapia, mas “uma ontologia, uma arte do ser, uma poética de si”. Nesse sentido, nenhum rio é inteiramente rio, assim como nenhuma árvore será somente árvore. E viajar é também retornar, é também o movimento descendente do regresso a Ítaca: à casa, noutras palavras.

Penso que, nesse sentido, o viajante de Michel Onfray, ainda que embarque em trens, aviões e ônibus, é em essência um viajante em sua vida, um “animal inquieto”, alguém disposto a disseminar-se em partidas e regressos que permitem um olhar de surpresa sempre renovada diante do mundo. “Não me convém a existência espetada à maneira de uma borboleta capturada no êxtase entomológico, nem a vida instável e agitada dos cotidianos sem destinação: entendo a viagem como um momento num movimento mais geral — não como um movimento por si só.”

Assim, viajar é um deslocamento, um afastamento da zona de conforto, mas também uma reaproximação de nossa própria subjetividade: “o que posso aprender e descobrir a meu respeito se mudo de lugares habituais e modifico minhas referências? O que resta da minha identidade quando são suprimidos vínculos sociais, comunitários, tribais, quando me vejo sozinho, ou quase, num ambiente hostil ou pelo menos inquietante, perturbador, angustiante? O que subsiste do meu ser quando se subtraem os apêndices gregários? O que será do núcleo duro da minha personalidade diante de um real sem rituais ou conjurações constituídas?”

Da minha viagem à grande cidade (todas elas se parecem cada vez mais, diz Onfray), trouxe de volta Teoria da viagem, esse manual sobre como não se deixar espetar, feito uma borboleta, na superfície imóvel do entomólogo. É uma sugestão de reconquista do movimento — atentando, inclusive, para não regressar compulsivamente aos lugares já visitados, num sedentarismo nômade. E é também uma dica sobre o que trazer de volta. Nada de fotos e filmes em histérica abundância. Nada de excesso de vestígios. Somente alguns sinais deveriam restar de uma viagem. “Na verdade, não mais que os pontos cardeais necessários à orientação.”

Algumas fotos — não muitas, penso. Um poema. Um livro-talismã como esse, pescado por alguém de olhos atentos em meio ao caos do fim do ano, numa livraria qualquer.

Adriana Lisboa

Nasceu em 1970 no Rio de Janeiro (RJ) e atualmente vive nos Estados Unidos. Entre romances, contos, livros infantis e infanto-juvenis, possui mais de dez títulos publicados. Possui três títulos em poesia: Parte da paisagem (2014), Pequena música (2018 — Menção honrosa no prêmio Casa de las Américas) e Deriva (2019).

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