Procurando o carnaval

Conto de Rinaldo de Fernandes
01/02/2010

Há alguns minutos ele viera caminhando de casa, num conjunto próximo. Recostara-se na árvore beirando a rodovia. A sombra frouxa, a mochila arriada no chão com gravetos e um capim ralo. Agora olhava a extensão seca do campo de cana. Aqui e ali, grande gavião preto, a fumaça das queimadas. Passavam rolinhas estralando as asas. Adiante pousavam, aos atropelos, no galho baixo do arbusto. De repente refletiu longe, na pista trêmula, o pára-brisa do ônibus. Ele apanhou a mochila, meteu os braços nas alças, aprumando-a nas costas.

O ônibus freou forte, os pneus mordendo a piçarra do acostamento. Subiu pela traseira, jogou-se no primeiro banco que viu. Pegou o lado da janela, a mochila no assento à sua direita. A pedra mordiscando-lhe o calcanhar, tirou o tênis do pé, sacudiu-o. Puxou com os dentes o cigarro da carteira, mas viu a placa lá na frente: “Proibido fumar”. Só então é que deu uma olhada nos outros passageiros do ônibus. Havia apenas um casal na parte da frente, após a borboleta, a cabeça dele pendida no ombro dela. O motorista ia numa única marcha. E o cobrador, a cabeça derreada na caixa do dinheiro, cochilava. Aí pensou — interessante, eu estava certo de que vinha mais gente neste ônibus. Pensei mesmo que viesse alguma batucada. Como ninguém se voltava para ele, acendeu o cigarro.

Não parou mais, o ônibus. Agora passava em meio a pequenos sítios. Um bananal aqui, a vaca no cercado ali. Galinha ciscando. Pato na ponta da estaca. O redemoinho ao pé da cerca. No acostamento, a tabuleta com o letreiro enviesado: “Vende-se jaca”.

Depois dos sítios, o ônibus solto na pista, agonizando. Por ali, nenhum outro veículo. Em certo momento, quando sacolejou no buraco, o cobrador levantou o rosto, abriu uns olhos vermelhos. A seguir, voltou a derrear a cabeça na caixa. Só após a curva é que, afinal, surgiram os coqueiros empinados e a torre da igreja da pequena cidade. Ele pensou — a essa hora deve haver movimentação de blocos na praça. Faço assim: primeiro deixo a mochila na casa do pescador que a Marta me indicou. Aí vou ver os bares da praia. Quando desceu do ônibus, o menino veio saber dele se tinha onde ficar.

— Sim, tenho.

Andou pela rua de terra, as casas cobertas de palha, o barro avermelhado das paredes. Passou defronte a um bar, os homens bebendo à sombra da mangueira, na lateral. Na janela que dava para os fundos do bar, a mulher tratando um peixe. Pensou — ela deve ser a dona do bar. Naturalmente prepara o tira-gosto deles. Eles que, com certeza, vão brincar carnaval a noite toda. Adiante cruzou com um casal sentado na calçada, ela espremendo as espinhas dele.

Atravessou a pequena duna. Copos descartáveis, plásticos, papéis grudados na areia. Saltou o córrego que brotava do mangue à sua direita. Em pouco tempo caminhava pela praia. A tarde ia pela metade, o mar espancando as rochas adiante. A onda estourava, vinha babar-lhe os pés. Agora ele seguia uns passos na areia. O pé do outro sobrando, cheio. Pensou — eu devia ter passado pela praça principal, ver se já tem algum trio elétrico. Plantou a mochila no terreiro da casa do pescador. A mulher no vestido raso veio atendê-lo. Disse-lhe que o marido entrara no mar.

— Mas pode ficar ali no quarto. O Zé recebe mesmo gente aqui. Às vezes, vem até argentino.

No quarto, revolveu a mochila, tirou papel higiênico, creme dental, sabonete. Deixou-os no canto escuro, ao seu alcance. Estirou a toalha no chão de terra batida — fez dela um colchonete. Pegou a máscara que trouxera, dependurou-a na corda. A máscara era um careca de olhos empapuçados, grosso bigode, a frase atravessando-lhe a testa: “Alegria, alegria!”. Ele pensou, olhando para ela — este ano vai ser o meu melhor carnaval. Chegou-se à janela que dava para os fundos da casa. Viu, ali no alpendre, o rapaz dormindo numa rede, as chinelas embaixo, no chão com merda de galinha. Pensou — ele se concentra para o carnaval de logo mais. Deitou-se na toalha. Ligou o walkman. Começou a tamborilar com os dedos no peito, os olhos presos nas palhas do teto.

Cochilou um pouco. Por volta das quatro horas, puxou a máscara da corda, saiu pela praia. Um que outro freguês nos bares da orla. Alguns fechados, as cadeiras sobre as mesas. Aí voltou, pegou novamente a duna, rumou para o centro da cidade. Olhou ainda uma vez para trás — o mar parecia entrar no céu. Sentiu fome quando alcançou a rua de terra. Por ali, casas rústicas, muitos terrenos baldios. Beirando os terrenos, de frente pro mar, as sinuosas mansões. Os coqueiros largavam-se ao vento, no topo da cidade. Chegou-se à birosca, perguntou ao menino o que tinha para lanchar.

Biscoito. E refrigerante.

Não conseguia entender. Por que um dono de birosca como aquela, sabendo que à noitinha o carnaval ia ferver, não enchia a geladeira de queijos, carnes para sanduíche? Logo mais, por essa mesma rua, não gritariam os foliões? E, por acaso, folião não sente sede e fome?

— Tem cerveja?

— Não.

Tomou o refrigerante, mastigando sem muito sabor o cream craker. Aí ouviu o som do alto-falante se aproximando. Pensou — é trio elétrico. Era um Chevete que fazia a propaganda de uma loja de roupas. Ainda esperou (e o corpo pedia) que, depois do anúncio maçante, soasse algum axé music. Mas não, o carro logo dobrou a esquina, deixando atrás apenas a poeira, que baixou nas telhas rubras das mansões. Ele ainda pensou em perguntar ao menino a hora em que a frevança ia mesmo começar. Mas o menino pareceu-lhe muito displicente. Estava mais interessado era em folhear um álbum todo esfrangalhado. Tirou a nota, pagou, ganhou novamente a rua.

Na esquina, apalpou o bolso da bermuda. Sim, a máscara estava ali, comprimindo-lhe a coxa. Cruzou outra vez com o casal na calçada. O namorado agora apertava o rosto da outra. Ainda olhou para os pés da moça, para ver se ela usava alguma sapatilha colorida, a ser sapecada na folia da noite. Mas não: ela calçava umas havaianas. E, principalmente, não tinha o rosto pintado. De repente, sem que desse por si, ele entrou no bar onde, à direita, os homens bebiam debaixo da mangueira. Encostou-se no balcão, a mulher surgiu lá de dentro, por trás da cortina suja.

— Tem cerveja?

— Estou sem cerveja.

Deu vontade de jogar na cara da mulher — mas você, hein?! Sabendo que hoje é dia de carnaval, e que carnaval dá sede, não mete sequer uma grade aí nesse congelador? Vendo o litro de uísque barato na prateleira, perguntou se tinha gelo.

— Tenho não.

Saiu do bar sem olhar para trás. Chegou a uma rua com calçamento. Uma rua estreita, de muros empretados, os casarões antigos com o capim crescido nos beirais. Agora achava até razoável aquela calma da rua. Ninguém por ali. A 30 quilômetros toda a barulheira da capital, o trânsito doido, a agonia dos motoristas. Gostava da calma. Mas, por que nenhum bloco ainda não havia estourado num daqueles becos? Resfolegava rumo à parte alta da cidade. Pensou — ali do alto posso ver as ruas da cidade baixa. Dali vejo onde vai acontecer o desfile das escolas de samba. Chegou no alto, dirigiu-se àquela que, embora com os canteiros comidos, era a praça principal da cidade. Encostou-se na amurada limosa, que dava para a cidade baixa e a montanha azulada, longe. Lá embaixo, só as largas copas das mangueiras, nenhum poste com adereços, nenhuma ponta alta de carro alegórico. Olhou em volta, a praça deserta. Apenas os dois meninos disputando a bola no terraço ao lado da igreja.

Sentou-se num dos bancos da praça, debaixo da grande figueira. Dali via a campina beirando a cidade. O crepúsculo metendo o rosto ruivo por trás da montanha. Aí ele tirou o cigarro da caixa de fósforos. Puxou largos tragos, a sucção seca. E contemplou o tempo. As copas das mangueiras, na cidade baixa, parecendo grandes lagartas verdes. A palha solta do coqueiro, na casa de esquina, roçando o laranja do céu.

O sino da igreja soou cansado. Uma senhora saiu da casa rósea, até então fechada. A porta entreaberta, ainda deu para ele enxergar o rosto da atriz na tela da TV. Sim, a novela das seis começara. Era a hora de resolver alguma coisa?

Pegou outra vez a rua estreita, dos casarões. Enquanto caminhava, pensou — o carnaval aqui só deve começar lá pras 11 horas, meia-noite. Novamente apalpou a máscara no bolso. Deu vontade de botá-la no rosto, rondar mais por ali atrás de alguma zoada. Mas resolveu que ia voltar à casa do pescador, apanhar a mochila. Passou pelo bar — os homens ainda debaixo da mangueira, já agora na penumbra. Na calçada, o casal aos apertos, o poste sem luz. E o menino, na birosca, parecia jantar o álbum.

Quando pegou a duna, a lua, vela de um barco invisível, apontava no mar. Caminhou pela beira da praia, meio escura. Adiante, o pingo de luz da casa do pescador. Chegou, entrou no quarto. Tirou a camisa, vestiu uma outra. Dependurou a máscara na corda. Arrancou os tênis, bateu a areia, calçando-os novamente. Em poucos minutos havia enrolado a toalha, metido tudo na mochila. Chegou-se à janela que dava para os fundos da casa. O rapaz, na rede, ainda dormia. Esse aí, quando acordar, vai curtir a noite toda — pensou, antes de passar um trocado para a mulher e sair.

Ainda uma vez caminhou pela praia, no meio escuro, a mochila pesando-lhe às costas. A lua agora encoberta por uma ponta de nuvem. Alcançou a duna, aos tropeços na areia fofa. Depois de cruzar a rua de terra, frouxamente iluminada, beirar os casarões da rua estreita, chegou ao ponto de ônibus na praça. Já estava ali o ônibus branco, com o letreiro preto na lateral. Encostou-se no poste, o motorista e o cobrador no quiosque ao lado, conversando com o fiscal. Ficou olhando para os canteiros da praça — aí já era pra ter alguma barraca. Pelo menos os barraqueiros já deviam ter vindo com suas Kombis, camionetes. Um Bugre apontou na esquina, sumiu na outra extremidade da praça. Pensou — este ano ainda não ouvi buzinaço.

Após alguns minutos, vieram o motorista e o cobrador. Ele se mexeu, subiu pela traseira. Em pouco tempo o ônibus descambava pelas meias ladeiras da cidade. Quando, nas ruas mais apertadas, passava em frente a uma janela aberta, ele espiava para dentro da casa, procurando ainda algum preparativo de bloco. Mas só via a TV ligada, a cara vermelha do apresentador do jornal. Ou um quadro torto na parede.

Só mais à frente é que, pegando a estrada branca de lua, ele como único passageiro, o ônibus tomou a direção da capital. O motorista conteve o pé numa marcha ruidosa. Ele acendeu o cigarro, agora sem mais olhar a placa lá na frente: “Proibido fumar”. Contemplou as rochas brilhosas que, beirando a pista, passavam nas janelas do ônibus feito um cardume de gigantescas sardinhas. E respirou fundo, antes de tatear o bolso da bermuda, ainda correr o zíper da mochila.

Havia esquecido a máscara na corda.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho