Só existe transgressão onde há lei. Numa sociedade cada vez mais anômica (e anônima) as transgressões tendem a ocorrer cada vez mais apenas dentro de comunidades relativamente fechadas, com rígidos códigos de conduta, entre as quais se destacam, em suas múltiplas variantes, as religiões abraâmicas: judaísmo, cristianismo e Islã. Entre os preceitos dessas religiões, há todo um espaço especial para as regulações do corpo, com uma série de interdições e anátemas. Daí o erotismo, que é a transgressão da sexualidade, quando ela extrapola as funções meramente reprodutivas nas quais os mandamentos tentam amarrá-la. Disse Georges Bataille: “O conhecimento do erotismo e da religião exige uma experiência pessoal, igual e contraditória, da proibição e da transgressão.” E se este erotismo é por acaso um homoerotismo, a transgressão é dupla, sobretudo quando ela se manifesta num contexto de rigor religioso. A abordagem literária desses temas, o do encontro/confronto entre fé e (homo)erotismo, está longe de ser nova, mas não são poucos os perigos que nela se encontram.
O gaúcho Rafael Ban Jacobsen, em seu mais recente romance, Uma leve simetria, não hesita diante desse desafio. O livro trata do amor de dois adolescentes (outra transgressão!): Daniel, o narrador-protagonista, e Pedro, dois membros de uma pequena comunidade judaica numa metrópole não nominada. Daniel é um judeu devoto, freqüentador assíduo das Escrituras e da sinagoga. Pedro, como o seu nome cristão dá a entender, não partilha o mesmo entusiasmo, para desgosto de sua mãe, uma das lideranças da comunidade. Fugindo aos estereótipos, a história dessa paixão é narrada com uma delicadeza, uma finesse hoje rara na literatura brasileira, onde “transgressão” muitas vezes é confundida com escatologia e brutalismo. Ao contrário, Uma leve simetria é escrito numa linguagem sóbria, equilibrada, não raro poética, mas sem cair nesse gênero pantanoso que é a “prosa poética”. Vejamos um exemplo colhido entre tantos:
Consumi as horas restantes até o amanhecer em passos noctâmbulos pelas ruas fatigadas do gueto. […] A claridade surgiu em rajadas imprecisas, amaciando a rigidez do ébano celeste até, por fim, desmanchá-lo em manhã.
Rafael logra escapar às armadilhas desse empreendimento, fugindo de transformá-lo num libelo ou num panfleto. Afinal, não se faz boa literatura com boas intenções, já dizia Gide. Além disso, seus personagens não são tipos, mas pessoas complexas, “redondas”. Por exemplo: ao final do “caso”, vemos Daniel à frente do conselho da sinagoga. Isto é, ele não se torna nem um “convertido”, pois não renega jamais o seu passado e sua condição, nem um “excomungado”, pois continua engajado em sua comunidade, um dado que pertence tanto à sua constituição identitária quanto à sua história com Pedro. Desse modo, o autor se esquiva de duas saídas demasiado óbvias e fáceis.
Além disso, intercalado no romance, uma outra história é contada, ou melhor, recontada: a história da intensa amizade entre o jovem Davi e Jonatã. Esta história bíblica, cheia de subentendidos, é recriada também com delicadeza e primor, servindo de espelho e contraponto ao drama vivido por Daniel e Pedro.
Todavia, se o entorno temático é judaico, ou melhor, mergulhado na atmosfera étnico-religiosa do judaísmo contemporâneo, com seus ritos, sues costumes e seu jargão (inclusive no final há um glossário), a estrutura da fabulação é grega, isto é, exata e rigorosa como uma tragédia helênica. Podemos inclusive afirmar que a história, dionisíaca, vem contrabalançada não só por uma linguagem elegante, mas por uma estrutura apolínea. E nesta simetria, neste tenso equilíbrio entre interdição e pathos, vertigem e rigor, Uma leve simetria se revela como um ponto alto em nossa recente ficção narrativa.