Há questões que inquietam pessoas de todas as gerações, como o desafio de saber se Maquiavel era maquiavélico. A leitura do clássico O príncipe e de outros tantos textos do autor mostra um homem que entendia profundamente sua época. O florentino viveu o ápice de um momento onde as definições do jogo político ainda se davam com um misto de violência e sagacidade. Literalmente era preciso ter uma intensa porção de cobra para sobreviver neste ambiente. Maquiavel retratou o período ao longo de sua obra e escreveu um manual de sobrevivência até hoje bem útil, visto que mudaram muito pouco, apesar de todas as teorias dos direitos humanos, as artimanhas políticas. Já em seu cotidiano de servidor público o escritor não usou — ou não teve oportunidade de usar — os métodos que apregoava. E parece que assim Maquiavel não conseguiu ser maquiavélico.
E o Marquês de Sade era sádico?
A editora Iluminuras vem publicando as obras do francês na coleção Pérolas furiosas que, segundo seu organizador, Contador Borges, “reúne pela primeira vez em língua portuguesa as principais obras desse transgressor do espírito, que via na literatura uma possibilidade de criar um mundo às avessas onde tudo é levado às últimas conseqüências”. O mais recente destes livros lançados, Diálogo entre um padre e um moribundo e outras diatribes e blasfêmias, traz sete textos traduzidos por Contador Borges e Alain François. Tais textos estão espalhados em várias obras de Sade e, em parte, já haviam sido publicados numa edição francesa, Discours contre Dieu, organizada por Gilbert Lely, ponto de partida para a edição brasileira.
Os textos enfeixam toda a base do anárquico pensamento do Marquês sobre religião, que pode ser traduzida como a inutilidade de um deus único e a hipocrisia que circunda todas as ações de todas as igrejas. As blasfêmias sadianas iniciam com Fantasmas, onde se fala de toda violência praticada em nome de Deus. Diálogo entre um padre e um moribundo argumenta sobre a inutilidade de esperar uma vida melhor e sem sofrimentos no paraíso. O argumento é retomado nos dois discursos Da imortalidade da alma. Do inferno revela as origens filosóficas da obsessão pelos castigos físicos e a purificação do fogo. A incompatibilidade das religiões com as liberdades políticas e individuais prometidas pela florescente república francesa está em Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos. O volume se fecha com uma espécie de estatuto para um utópico clube, A Sociedade dos Amigos do Crime, onde seriam permitidas e incentivadas todas as perversões sexuais.
Fúria e racionalidade
Sade demonstra em seus escritos um intenso poder de argumentação. Embora se paute pela quase fúria, é mesmo a racionalidade de suas palavras que certamente inquieta seus opositores. “Toda a moral humana encerra-se nestas palavras: tornar os outros tão felizes quanto desejamos sê-los nós mesmos, e jamais lhes fazer mais mal do que gostaríamos de receber. Eis aí, meu amigo, os únicos princípios que devemos seguir; e não necessitamos de religião nem deus para prová-los e admiti-los, somente um bom coração”, escreve. Ou seja, ele usava as palavras bíblicas para contestar os autores religiosos. Neste jogo, entretanto, fazia a defesa do texto como literatura, mas, como toda literatura, também aquele não pode ser levado ao pé da letra, não pode ser lido e interpretado de maneira cega e única.
Neste caminhar, o escritor joga por terra todo o pensamento religioso com um argumento racional. Toda promessa de felicidade oferecida pelas religiões será paga no paraíso, mas como nenhuma delas prova a existência do paraíso, a promessa é vã. “A vida é a soma dos movimentos de todo o corpo. O sentimento e o pensamento são partes desses movimentos: desse modo, no homem morto, esses movimentos cessarão assim como os outros.” No entanto é ainda a busca do paraíso que anima os crentes.
Curiosamente a visão de prazeres que se faz deste paraíso está ligada aos prazeres do corpo, lembra Sade. O fogo do inferno promove dores insuportáveis e eternas. Aos muçulmanos, por exemplo, são prometidas sete mil virgens como recompensa por sua dedicação à fé. Aliás, esta delícia anima o emblemático protagonista do romance O paraíso é bem bacana, de André Sant’Anna, que não quer passar a eternidade apenas rezando ao lado de sua generosa prenda. Sade, mais realista, prefere receber suas recompensas em vida, aqui mesmo na terra, e daí todos os prazeres fartos de sua obra.
Toda sua arenga com a igreja tem ainda uma leitura política. A igreja, sobretudo a católica, apontada por Marx como o ópio do povo, tinha, à época de Sade, a função de proteger e amparar a realeza. O conluio entre clérigos e nobres protegia igrejas e reinos e justificava todas as ações empreendidas para a manutenção do status quo, desde as grandes cruzadas — imensas expedições de conquista — até a Inquisição, instrumento de expansão da crença no deus único. Era uma parceria tão sólida que se criou um caldo cultural bem vigoroso, tanto que mesmo Sade, ateu inquestionável, a certa altura de seus escritos não se livra de apelar: “Deus me livre de querer aqui atacar ou destruir o juramento do respeito às propriedades”. O Marquês, embora nobre, vivia às turras com a nobreza que desprezava sua vida libertina, embora tivesse as mesmas práticas nas alcovas palacianas. Este embate resvalava na igreja que o condenava ao fogo infernal.
O berço do despotismo
Sade se rebelava contra a condenação por não reconhecer nesta igreja, nem naquele reino, autoridade moral para condená-lo. Realmente padres e bispos usavam e abusavam das condições do estado quase teológico europeu para manipular as benesses que tanto apreciavam. Curiosamente Sade não se incomodava, a rigor, com o desvirtuamento dos religiosos e nobres, mas com toda falsidade moral que pregavam. Ele até reconhecia a impossibilidade de se exigir virtude plena a todos os homens — “está demonstrado que há virtudes cuja prática é impossível a certos homens, como há remédios que não seriam convenientes a determinados temperamentos” —, mas não fazia qualquer concessão à hipocrisia.
E daí se voltava contra os religiosos que pregavam a perfeição de Deus. Sade não conseguia enxergar virtudes na ação de um ser que criou o homem para que ele purgasse pecados e erros. “Se a maior porção do gênero humano está destinada a ser eternamente infeliz, um Deus que tudo sabe devia sabê-lo. Dito isso, por que, então o monstro nos criou? Foi por obrigação? Logo, não é mais livre. Foi de propósito? Logo, é um bárbaro.” Esta visão implacável sobre Deus, no entanto, não era privilégio seu. Os homens todos do iluminismo se rebelaram contra a igreja como uma forma de manter a liberdade de seu pensamento.
Para a nascente república francesa o Marquês olhava com esperanças. O regime dos homens livres, do estado independente da igreja seria construído a partir de preceitos bem melhores. Ele sabia que “a ignorância e o medo (…) são as bases de todas as religiões”. Escudados no controle do medo e da ignorância os poderosos de seu tempo mantinham o poder. “Que jamais se duvide que as religiões sejam o berço do despotismo”, alertou. Ele somente não percebeu que o poder muda mantendo certas estruturas quase indissolúveis. Mesmo depois da festa da guilhotina a França não se fez de toda livre. Nem o Marquês, trancafiado no hospício pelos novos poderosos.
Toda a obra do Marquês de Sade é um libelo à liberdade. Ela prega a supremacia da vontade humana, e se esta vontade o conduz a uma vida libertina, que a viva, então, pois a moral é tão somente uma convenção criada para dominar os homens. Esta sua visão o levou a descrever e praticar todas as possibilidades sexuais. E daí se cunhou o sadismo, que, no pensar de Freud, dá-se quando a pulsão de morte se liga à pulsão sexual e volta-se para o exterior, aflora. O sadismo ainda supõe uma ativa agressividade para com o outro, e aí já nem sempre entra em cena os fantasmas sexuais. E aí se chega, enfim, à certeza. Sade era sádico não apenas pelo que escrevia, mas sobretudo pelo que vivia, embora tenha feito isso para, mesmo na prisão, manter sua cara liberdade.