Novo México

Em uma terra desértica e de cores intensas, J. M. Le Clézio promove uma luta consciente contra o show da literatura
Novo México. Foto: Adriana Lisboa
01/02/2010

Há pouco mais de três anos, uma sugestão do escritor Silviano Santiago me levou a abrir pela primeira vez um mapa buscando a localização do Novo México, um lugar no mundo inteiramente desconhecido para mim. Para parte dos americanos, é apenas a terra de cores intensas e desérticas que inspirou as pinturas de Georgia O’Keeffe — suas flores, pedras, ossos de animais e paisagens secas. Um lugar exótico cravado no mítico sudoeste, que ocupa mais os imaginários do que os itinerários.

Foi sabendo pouco mais do que nada e com um mapa aberto no carro que cheguei pela primeira vez ao estado, em setembro de 2006. A estrada fatiava a imensidão de terra plana e desocupada, as plantas do deserto se enroscavam debaixo de um céu sem fim onde seqüências de pinturas se borravam, umas após as outras, como se um artista inquieto ficasse trocando cores sem se decidir por nenhuma. As Montanhas Rochosas empunhavam seus picos nevados a oeste, num desafio.

Ao longo dos anos, repeti essa viagem algumas vezes, e aos poucos fui descobrindo algumas coisas sobre o Novo México. A poesia de Joy Harjo. A memória do Projeto Manhattan em Los Alamos, onde o viajante cruza uma rua chamada Oppenheimer Drive (dizem que Oppenheimer citou as escrituras hindus depois da primeira explosão atômica no estado: “agora eu me torno a Morte, destruidora dos mundos”). A feiúra dos cassinos dos índios, que brotam no meio de lugar nenhum com letreiros chamativos. Ilustres moradores, como o inacessível Cormac McCarthy, que povoa seus livros com o imaginário da fronteira.

Na viagem mais recente, levava comigo a edição número onze da Pen America, a revista do PEN American Center, e através dela descobri que Jean-Marie Gustave Le Clézio, prêmio Nobel de literatura em 2008, é também um desses ilustres moradores. A revista traz uma entrevista concedida por ele em 2009 a Adam Gopnik e intitulada The Habit of Voyaging.

É inspiradora para qualquer um que se interesse minimamente pela escrita. “Durante algum tempo,” diz Le Clézio a Gopnik, “pensei que escrever seria uma espécie de enumeração das coisas do mundo. Um dos primeiros autores modernos que li foi Jerome David Salinger. Ouvi dizer que ele ia para uma cabaninha em seu quintal e escrevia palavras no papel. Fazia uma enumeração. Então eu disse a mim mesmo, ‘Isso é escrever. Este é um bom escritor. Eu deveria fazer a mesma coisa’. Então, tentei imitar Salinger enumerando coisas, enumerando palavras, e depois escolhendo-as e utilizando-as — porque cada palavra é um mundo. Abre-se para um cenário, uma história, uma lenda ou um mito. Cada palavra contém um mundo”.

E prossegue: “[Salinger] me ensinou que pode haver uma confrontação entre o poder, o poder que vem da escrita, e o eu interior que expressa a literatura”.

“A alma da literatura contra o show da literatura”, sintetiza Gopnik.

“Sim. O poder para Salinger significava algo estático, enquanto que o eu interior, a alma, significava algo difícil de definir, algo que se move o tempo todo, que não é estável”.

“Sua obra vem sendo uma série de fugas, num certo sentido”, continua Gopnik, “num esforço para ficar perto da alma da literatura e longe do poder da literatura”.

“Sim, ter essa percepção evasiva do mundo, cheia de detalhes, mas incapaz de chegar a um ponto em que você diz, ‘Sei algo’. Você nunca sabe algo. A literatura é o contrário da sabedoria — é fazer perguntas. É o contrário da afirmação”.

“Ou de ter uma mensagem”, completa Gopnik.

Le Clézio promove uma luta consciente contra o show da literatura, em defesa de um “humanismo sem seres humanos no centro”, contra a “moral da história”, contra a escrita de romances panfletários. E isso numa época em que tudo parece passar pelo marketing pessoal, inclusive a literatura — feita mais de contatos importantes do que dessa alma arredia evocada por Le Clézio.

Desde os anos noventa ele divide seu tempo, ao que consta, entre Albuquerque, no Novo México, Nice, onde nasceu, e as Ilhas Maurício. Diz que hoje se considera mais um novo-mexicano do que qualquer outra coisa. Aliás, foi parar ali como muitos outros imigrantes: “Eu estava dando aulas numa pequena universidade na região central do México, em Michoacán, e a situação por lá ficou bastante ruim (…). Então minha mulher e eu decidimos nos mudar e fizemos como a maioria das pessoas no México: cruzamos a fronteira”.

No caminho que costumo fazer para chegar ao Novo México, traçando uma linha reta de norte a sul pela Interestadual 25, tudo é intenso, muito seco, muito árido, a planície comprida demais, as montanhas altas demais. O espaço sobra, o silêncio é impositivo — dizem que o deserto é muito mais perceptível aos ouvidos do que aos olhos. Algo tão diferente da experiência engavetada das grandes cidades, em seu excesso de vozes e rostos e ruídos e movimento, em sua solidão acompanhada. Algo tão diferente, também, de qualquer tipo de regresso-à-natureza orientando uma fuga para uma vida rural bem organizada.

Ou, como escreveu Baudrillard: “a América da liberdade vazia e absoluta das auto-estradas (…), a América da velocidade do deserto, de motéis e superfícies minerais. (…) A desumanidade de nosso mundo ulterior, a-social e superficial encontra imediatamente sua forma estética aqui, sua forma extática. Pois o deserto é apenas isso: uma crítica extática da cultura, uma forma extática de desaparecimento”.

Acho que Cormac McCarthy entendeu isso, e Le Clézio também. Eu, de minha parte, continuo apenas deslumbrada, e termino o artigo com a impressão de não ter dito nada do que de fato gostaria de dizer.

Adriana Lisboa

Nasceu em 1970 no Rio de Janeiro (RJ) e atualmente vive nos Estados Unidos. Entre romances, contos, livros infantis e infanto-juvenis, possui mais de dez títulos publicados. Possui três títulos em poesia: Parte da paisagem (2014), Pequena música (2018 — Menção honrosa no prêmio Casa de las Américas) e Deriva (2019).

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