Capítulo I
Posto tivesse a cabeça coberta por folgado capuz e a magrém do corpo escondida sob comprida sotaina de estamenha negra, não estaria longe da verdade quem estimasse pertencer ao gênero feminino o vulto assombradiço que, apressurado, calcorreava o piso de cantaria da pérgula do Colégio dos Jesuítas da Bahia, no início de cálida noite de julho do Ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1697.
A suspeita do gênero a que pertencia a abantesma já se justificaria pela circunstância de empunhar longo cabo de madeira, guarnecido à ponta por reluzente lâmina segadeira, recorrente antropomorfização da fúnebre figura, encontradiça em manuscritos, códices e iconografias medievais.
O indício mais revelador do sexo da descarnada criatura evidenciava-se, no entanto, pelo inconfundível reboleio que conferia aos quadris, saracoteando-os em andadura típica de fêmea, conseqüência de seu caminhar apressado.
Resoluta, a esquipática figura seguia em direitura da cela de agonizante jesuíta sermonário, com o firme propósito de dar curso aos seus lúgubres desígnios, obra de cumprir a soturna missão a que se dedicava, com rigorosa proficiência e inarredável determinação, desde a criação do mundo.
Não lhe conseguira interromper os passos nem um azafamado padre que, em abalada correria pelo passadiço do claustro, braços alevantados ao céu, antepusera-se-lhe no caminho, logo após evadir-se, espavorido, da cela do religioso moribundo, a gritar pelo cura sangrador.
Caminhando em sentido contrário, a cavernosa criatura transpassara-lhe o corpo com metafísica volatilidade, e olímpica indiferença, sem lhe obstar o corre-corre, como se fosse uma nuvem a transpor a torre de uma igreja.
À frente da cela do jesuíta morrediço, a Parca estacara a caminhada: um mal disfarçado olor de enxofre, dissimulado por aromas de jacintos silvestres, rosmaninhos e alecrins, provenientes do jardim do Colégio da Companhia de Jesus, invadira-lhe as narinas, a súbitas.
Desconfiada, a funérea criatura voltara-se, esquadrinhara a pérgula vazia, e dardejara um minucioso olhar de varredura pela aléia de arbustos que ladeava o passadiço do claustro. Não visualizara viv’alma; tampouco pressentira mort’alma.
Ressabiada, resolvera retardar por alguns instantes a visita que faria ao clérigo mortiço.
Ingressara no jardim, sentara-se num banco de pedra ao pé de frondosa amendoeira, colhera ao chão um crisântemo que, estranhamente, recendia a amêndoas podres, e olhara em torno de esconso.
“Pode-se saber o que Vossa Repelência faz aqui?”, indagara a Parca, num repente, a rolar o talo da flor entre as falanges do polegar e do indicador.
Estentórea voz, não pertencente a este mundo, gorgolejara-lhe às costas:
“O mesmo que Vossa Mortalidade: dou curso a meus desígnios…”
Sem se voltar, a Parca observara:
“A alma do jesuíta de quem tirarei a vida, à primeira hora do dia de amanhã, cujo corpo jaz, agonizante, no interior daquela cela com a porta aberta, nunca vos pertencerá, bem o sabeis: já está convocada para servir no reino de Deus.”
Um grunhido rouco e desumano antecedera a réplica rosnada:
“Jamais nomeeis esse Infame na minha presença! A simples menção ao seu nojento nome provoca-me engulhos!”
A Parca aspirava uma campânula azul quando replicara, ainda de costas para o interlocutor:
“Como devo referir-me a Ele, então, perante vós?”
Um breve silêncio precedera a resposta, vociferada ao cabo de cavernoso ronco:
“Meu Desafeto! Meu Inimigo!”
Rebuçada pelo capuz, a Parca esboçara um irônico sorriso. Ato contínuo voltara-se para o interlocutor a tempo de flagrá-lo a serpear pelo tronco da amendoeira em direção ao solo.
Ao chegar ao chão a víbora metamorfoseara-se, num átimo, após pequena explosão, seguida de denso fumaceiro, num alto e corpulento holandês afidalgado, entrajado de seda vermelha do chapéu até as botas — gibão, capa comprida, véstia, camisa e calções, tudo com as cores do Inferno.
Ao perceber que a Parca comprimira os lábios descarnados com as pontas dos dedos, obra de reprimir incontido risinho de deboche, o holandês cometera um afetado rapapé: empertigara o espinhaço, esticara o gibão debaixo do cinturão, retirara o chapéu da cabeça — abanando-o à frente do tronco curvado —, e solfejara um descabido “Voilà!”, ao cabo de uma reverência de mergulho.
A menear negativamente a cabeça, a Parca erguera-se do banco do jardim, apoiando o cavername no cabo da foice, e comentara:
“Convém lembrar a Vossa Repelência que o padre moribundo que visitarei foi em vida culto clérigo catequista, afamado sermonário cuja palavra calava fundo nos corações de seus ouvintes, letrados ou bugres, iniciados ou catecúmenos, além de ter sido respeitadíssimo conselheiro de reis, rainhas e papas, político sagaz, diplomata poliglota, freqüentador de palácios reais e salões das principais cortes européias, inclusive a de Holanda. Asseguro-vos que ele saberia identificar um holandês postiço, nomeadamente quando o impostor usa expressões idiomáticas galesas!”
Estomagado com o comentário, o Diabo enfiara o chapéu de volta à cabeça, arrepanhara a capa, dobrara-a sobre o braço, aprumara o corpanzil, e retrucara:
“Ora, minha senhora, despiciendas aqui essas ironias: recolha-se às insignificâncias do vosso ofício! Das artimanhas do meu, cuido eu! Pratico-as há milênios, com êxito e proficiência, arregimentando milhões de vassalos para meus domínios!”
A Parca, ainda estorvada com a espalhafatosa aparição do Diabo, reclamara:
“E a que veio aqui, então, Vossa Repelência, encarnado num holandês de bufonaria?”
Contrafeito, o Diabo replicara:
“O batavo, cujo corpo ora me hospeda, foi morto por setas envenenadas de bugres brasis, à época da invasão que os holandeses, tendo à frente o invencível almirante Jacob Willekens, levaram a efeito nesta cidade, setenta anos atrás! O jesuíta moribundo que Vossa Mortalidade vai tirar a vida era, à época, um jovem inaciano de apenas dezesseis anos de idade. Se a memória o ajudar, ele me reconhecerá como o holandês herege que saqueou, àquele tempo, uma das igrejas desta cidade, arremetendo com ódio e furor diabólicos contra as imagens do Filho do meu Desafeto, da Mãe Dele e dos santos daquele templo, absit invidia verbo.”
“O que o holandês fez com as imagens de Jesus, de Maria e dos santos?”, indagara a Parca, assustada.
“Cortou-lhes as cabeças, os pés e as mãos, a cutiladas, lançando os pedaços em uma apetecida fogueira. Em seguida profanou o altar do templo cristão, desarvorou e quebrou as cruzes ali existentes, conspurcou os cálices que portugueses e brasis usavam para consagrar o sangue do Filho do meu Desafeto, e neles serviu vinho para a tropa de invasores sob seu comando, em homenagem a Baco. Ao fim e ao cabo daquele gozozo sacrilégio, o holandês, não satisfeito, ainda violentou duas beatas baianas, ao pé do altar da igreja!”, respondera o Demônio.
“Cruz credo! E o que o jesuíta morrediço teve a ver com isso?”, insistira a Parca.
“Então um jovem noviço, ele jamais esqueceu aquele festim: descreveu-o, pormenorizadamente, em carta ânua ao geral da Companhia, intolerável ordem religiosa que leva o nome do Filho do meu Desafeto, absit omen, relatando, com detalhes, aquela invasão batava à Bahia”, respondera o diabólico holandês.
A Parca soltara um muxoxo de indiferença, espichara o olhar para a cela de porta aberta, e replicara:
“Ainda não atinei com o propósito da vossa presença aqui. Afinal, se aquela alma não vos pertencerá, o que dela ainda pretendeis?”
O Diabo ressumara um ar de espanto, abanara negativamente a cabeça, e ironizara:
“Quanta ignorância…”
Ato contínuo, arrependido do comentário descortês, o diabólico holandês emendara de pronto:
“Queira perdoar-me, senhora. No exercício de vosso ofício não precisais cultuar a palavra para exercê-lo, tampouco careceis negociar ou persuadir vossas vítimas para deixar este mundo, porquanto sois indiferente ao destino que é dado às almas, após lhes ceifar as vidas…”
A Parca retrucara:
“Abrenúncio! Quanta impiedade digo eu! Como se já não me bastasse o trabalho insano de sacrificar vidas, diuturnamente, era só o que me faltava ainda ter de convencê-las a morrer! Não pode haver prazer, gozo ou alegria na morte, convenhamos! Vossa Repelência há-de convir: quanto mais diligente eu for, e mais rapidamente agir, sem avisos, negociações ou discursos, mais eficiência obterei com o meu trabalho!”
O holandês, surpreso com a reação da Parca, exibira um esgar de admiração, cofiara a hirsuta barba ruiva, e, meditabundo, exclamara:
“Belo achado trazeis à baila, senhora: acabastes de precisar a diferença primacial entre nossos desígnios! Com efeito, enquanto eu trabalho, incansavelmente, para prolongar ao máximo a vida dos mortais, obra de lhes oferecer satisfatória fruição dos prazeres que com eles contrato, na contrapartida da vassalagem de suas almas, o tempo da vida é inteiramente irrelevante para Vossa Mortalidade, pois de ordinário buscais abreviá-lo, quem sabe pela ausência de outros interesses para o cumprimento da vossa missão. A propósito, senhora, se me permitis a observação: creio carecer de significado, talvez de representação mental, quiçá de significância, o vosso trabalho neste mundo!”
Contrafeita, a Parca reagira:
“Dispenso o interesse de Vossa Repelência para com o meu ofício, porquanto sempre me desincumbi a contento de minhas obrigações, sem a necessidade de reconhecimentos, pagos ou recompensas! Agora basta de tantos circunlóquios, sois o mestre da enganação, e eu tenho mais o que fazer! Dizei logo o que pretendeis de mim e do jesuíta de quem vou tirar a vida”.
O holandês abrira um largo e diabólico sorriso, e ponderara:
“De Vossa Mortalidade apenas a gentileza de me deixar assistir à visita que fareis ao afamado padre sermonário. Tendes a minha palavra, reconhecida como de fé por todos aqueles com os quais acertei acordos, contratos e convênios, que não interferirei, nem estorvarei, o vosso trabalho. Do célebre clérigo morrediço, no entanto, que neste exato momento encontra-se em delírio agonizante em sua cela, e ainda levará profícua e interessante meia dúzia de horas antes de Vossa Mortalidade extrair-lhe o último suspiro, apreciaria testemunhar-lhe os últimos momentos, ouvir suas alucinações pré-agônicas. Se a senhora não se importar, tentar dele obter, durante seu transe terminal, alguma novidade pedagógica sobre o uso da palavra, como meio eficaz de doutrina e persuasão, reconhecido orador e escritor que ele sempre foi, autor de interessantíssimos sermões sobre a arte da pregação, além de outros, desafortunadamente a maioria, de louvação a meu Inimigo. Bem o sabeis, senhora, a palavra, quer a escrita, quer a falada, quando bem trabalhada e empregada, é capaz de causar grandes impactos às pessoas que as lêem, ou as ouvem, inspirando-as e animando-as a promover as grandes transformações que movem o mundo.”
A Parca, a demonstrar indiferença, dera de ombros, e desabafara:
“Nunca ouvi dizer que as palavras têm o poder de mudar o mundo.”
O holandês de pronto replicara:
“Nem eu, senhora. As palavras não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas: as palavras mudam as pessoas, como ensinou Caio Gracco, em tempo anterior à vinda do Filho do meu Inimigo a este mundo.”
Indiferente ao pedido do holandês, a Parca repisara o dar de ombros, e boquejara:
“Não me oporei a que assistais à visita que farei ao jesuíta moribundo, porquanto me é indiferente vossa presença na cela, desde que não importuneis o meu trabalho. Ademais, avalio a preocupação de Vossa Repelência com o poder das palavras inútil literatice, coisa de copista desocupado. Belas letras têm serventia apenas para lazer de ociosos.”
O holandês retirara novamente o chapéu da cabeça, agradecera a deferência ao seu pedido, estendera o braço, cavalheirescamente, obra de acompanhar a Parca até a cela do jesuíta agonizante, e a convidara:
“Permiti-me, então, acompanhá-la, senhora, lembrando que otium sine litteris mors est et hominis sepultura, isto é, o lazer sem as belas letras é como a morte e a sepultura do homem vivo, assim ensinou Sêneca.”
Capítulo II
Senhor meu, a um semestre de alcançar a escandalosa idade de dezoito lustros, devastado pela decrepitude, achacadiço, nas vascas da agonia, sem outros meios de me comunicar a não ser por balbucios e gemidos, acometido de diversas enfermidades (até um par de sangrias me receitaram, num espaço de apenas oito dias), vistas falhas para ler qualquer letra, por grande que seja, falto de dentes, ouças moucas, mãos estropiadas e sem serventia (não tenho mais forças nem para juntá-las, obra de orar em Vossa louvação), sinto que o meu fim está próximo.
O meu fiel amigo e secretário, padre José Soares, coitado, impressionado com a dispnéia que se me acometeu instantes atrás, à qual reagi com gorgorejos agônicos, a expectorar um catarral medonho, abalou-se há pouco da cela, em busca desesperada do cura sangrador.
Encerrado nesta cela do Colégio dos Jesuítas da Bahia, privado do exercício de pregar e de escrever, atividades com as quais alcancei muitos louvores, posto que sofridas provações, sou obrigado a reconhecer que a minha vida, como declarei em remota carta a um confrade da Ordem, foi sempre uma comédia: quando quero ou chorar ou rir, ou admirar-me ou dar graças a Deus, ou zombar do mundo, não tenho mais que olhar para mim…
Se preguei para reis e rainhas, e representei Portugal em ricos salões de cortes européias, entrajado em fidalgos vestidos, as mais das vezes vesti a pobre roupeta da Companhia de Jesus, obra de catequizar gentios catecúmenos e bugres ferozes, por sítios e caminhos que Deus nunca andou, e o Diabo só obrigado.
Sempre me abalancei na vida por empresas dificultosas, embora a razão me alertasse que mais segura é uma ignorância bem aconselhada que uma ciência presumida.
Não estou, Senhor, por birra de velho enfermiço, a lamentar-me da morte próxima, bem O sabeis: sempre acreditei, como Sêneca, e fiz dessa crença assunto de alguns sermões, que a morte é um nascimento para a eternidade, porquanto a existência humana é, inequivocamente, um caminho para a morte: o homem é pó, e ao pó retornará. Debemur morti nos nostraque, ensinou o grande Horácio.
Sempre procurei confortar os que me procuravam, com temores injustificados, pela certeza inexorável de um dia terem de perder a vida, alertando-os para a circunstância de que era preferível perdê-la neste mundo, para ganhar uma nova no Céu, do que guardá-la infinitamente no Inferno.
Sempre lhes fiz ver, procurando desfazer o engano da suposição da imortalidade, que o principal seria tomar consciência de suas obras e ações em vida, boas ou más, visto que elas não seriam ignoradas, senão consideradas, num julgamento divino.
Se assim preguei, é porque acredito nestas verdades, razão pela qual aceito resignado os achaques e males que me acometem neste final de vida, porquanto aprendi a morrer enquanto vivia. Ave Maria.
Ordinariamente preguei, e amiúde escrevi: as artes ou ciências práticas não se aprendem só especulando, senão exercitando. Como se aprende a escrever? Escrevendo. Como se aprende a esgrimir? Esgrimindo. Como se aprende a navegar? Navegando. Assim também há-de se aprender a morrer, não só meditando, mas morrendo, porquanto saber morrer é a maior façanha.
Reafirmo, Senhor: isto não são queixumes de um macróbio moribundo, visto que sempre temi o fim da vida, e me preparei para o pior, embora muito gostasse de viver. Não obstante, nunca fui apologista da morte, senão um ardoroso amante da vida, sempre obediente a Vosso Evangelho.
Louvado seja o Senhor, Vosso Altíssimo Pai e Vossa Santíssima Mãe.
Senhor meu, na cela acabam de ingressar, do muito pouco que minhas vistas falhas ainda deixam entrever, dois vultos desconhecidos, os quais só me foi possível distinguir graças a uma intensa e brilhante luz que, a súbitas, entrou pela janelinha, a jorrar sobre o meu catre, apesar de a noite já ter coberto o colégio dos jesuítas com seu manto negro.
Devo estar acometido de delírios pré-agônicos. O vulto mais alto e encorpado, ao entrar na cela, logo se escondeu atrás da porta, a reclamar da serôdia luminosidade:
“Essa luz, é mais uma baixeza do meu Inimigo, contramedida para proteger esse jesuíta morrediço!”, rezingou numa voz que jamais ouvi alguém emitir neste mundo.
O outro vulto, sem detença, sentou-se numa cadeira ao pé do meu catre, a portar uma agulha de crochê e uma bordadura, e redargüiu:
“Os mortais costumam dizer, em conhecido rifão, que o Diabo não está sempre atrás da porta. Se ao primeiro percalço Vossa Repelência atrás dela se esconde, mal aviada está a Holanda com tais covardices…”
O vulto oculto atrás da porta reagiu, irritadiço:
“Repilo as ironias de Vossa Mortalidade, porquanto é legítimo a qualquer um defender-se de ameaças à sua integridade, desde os tempos de Ulpiano!”
O vulto, que já tricotava, replicou:
“Ulpiano? Quem foi esse? Algum de vossos validos?”
Escondido, o vulto de voz masculina respondeu:
“Quanta ignorância! Ulpiano foi um dos fundadores do direito romano!”
A crocheteira soltou um muxoxo de desprezo, colocou a bordadura sobre o colo, depositou uma ampulheta sobre uma mesinha, cone cheio de areia voltado para cima, e motejou:
“Caio Gracco, Sêneca, Ulpiano… Vossa Repelência veio realmente pejado de referências e alforjado de citações para esta visita! Aconselho, contudo, que vos avieis: restam menos de doze viradas deste relógio de areia para esse afamado jesuíta despedir-se deste mundo!”
Senhor meu, ou meus bestuntos já entraram em falência, arruinados pela agonia da proximidade da morte, cedendo lugar ao tresvario, ou desconfio que estou a receber a visita de um batavo herege, que mantém relação de intimidade com o Demônio, ou é o próprio, acompanhado de uma das três deusas, Cloto, Láquesis ou Átropos, mais provável esta última, que determinam o curso da vida humana na mitologia grega clássica, mais conhecidas do vulgo pelo apodo de as Parcas.
Abrenúncio!
Qualquer a situação que esteja a ocorrer, Senhor, quer um surto de insânia pré-agônica, quer a real aparição em minha cela de tão indesejáveis e pérfidos visitantes, má quadra de tempo deve aguardar-me à frente, porquanto até uma luz de sol de meio-dia invadiu a janelinha do cubículo, já caída a noite sobre Salvador!
Enquanto a luz brilhante entrou pela janelinha da cela, por fragmento de tempo que durou não mais que o despencar de um poucochinho de grãos do relógio de areia, a dupla de visitantes observou silêncio tumular, só quebrado pelo ruído que a Parca fazia com a agulha, furando e puxando a linha, no pano esticado da bordadura.
Nesse entretempo, a luz brilhante que jorrava no interior do cubículo foi lentamente arrefecendo, até que minguou por completo, deixando a cela quase às escuras, alumiada apenas por uma candeia de pavio de algodão, embebido em óleo de baleia, presa à parede.
“Vossa Repelência já pode sair detrás da porta, porquanto vosso Desafeto já se ausentou da cela”, ironizou a Parca, a olhar de soslaio para o céu estrelado entremostrado pela janelinha.
O vulto avantajado saiu detrás da porta, retirou o chapéu da cabeça, aproximou-se do catre onde jazia meu corpo inerme, e vociferou:
“Que Ele tenha ido para os quintos dos céus!”
Ato contínuo solfejou um “Voilà!”, semelhado ao que o cardeal Mazzarino costumava exclamar, sobrecenho carregado, quando o assunto diplomático o contrariava.
Um bodum de podridão, recendente a chiqueiro de porcos, invadiu-me as ventas e excitou-me a pituitária, provocando-me severo ataque de espirros, que, se algum alívio me proporcionaram, desafortunadamente muito ranho suscitaram.
“Father Anthony Vieira, I presume”, cumprimentou-me o vulto avantajado, num inglês apedantado, fitando-me com seus bugalhos rútilos, misto de curiosidade e de más intenções.
Senti um calafrio e um frêmito nervoso percorrerem-me o corpo, ao tempo que rara coragem, e inusitada audácia, que pensava tê-las deixado no passado, em uma aldeia de botocudos antropófagos, quando com eles travei contato pela primeira vez, proveram-me de ânimo:
“Sim, sou eu, ou pelo menos o que resta dele, mas quem é o senhor? Fidalgo holandês, francês ou inglês?”
A Parca emitiu um abafado risinho de deboche, e em seguida continuou a tricotar.
O vulto avantajado dardejou um olhar de desprezo para a crocheteira, empertigou o corpo, voltou-se para mim, e grunhiu:
“Eu sou uma legião, padre! Sou muitos, senão único! A primeira vez que o padre me despertou a atenção foi aqui mesmo neste colégio, quando eras apenas um noviço, setenta e três anos atrás! Eu era um dos oficiais do almirante batavo Jacob Willekens, cuja frota invadiu a Bahia, em 1624, causando pesadas baixas e severos transtornos aos seus habitantes.”
Meu corpo estremeceu com a notícia. Consegui reunir algumas forças, e voltei a perquirir o visitante:
“Foste tu, então, o holandês herege que, àquela quadra, profanou e conspurcou a igreja de Nossa Senhora da Ajuda, decapitando as imagens dos santos do templo com a espada?”, indaguei, temeroso da resposta.
“Digamos que eu fui a consciência dele, padre, porquanto aquele holandês já morreu, há muito tempo, e sua alma, presentemente, presta vassalagem ad aeternum em meus domínios, com submissão e zelo exemplares”, respondeu o Diabo com pedantaria.
A terrível revelação enregelou-me o corpo, já debilitado de tantas moléstias e achaques.
Senhor meu, que sacrifícios mais terei de enfrentar antes de Vos entregar minh’alma? Receber a visita, à hora da minha morte, de tão desditosas personagens, não constitui provação excessiva? Ou essas alucinações nada mais são que produto da insanidade delirante que se apossou de meus bestuntos senis?
Nos tenros anos de minha puerícia, como bem O sabeis, supliquei rogos a Nossa Senhora das Maravilhas, minha santa de devoção, obra de aquela Santíssima Senhora interceder por mim junto a Vós, na tenção de que me fosse concedido o benefício de mais luzes para alumiar o meu então fraco entendimento, à época ofuscado por trevas que me oprimiam a inteligência e me enfraqueciam a memória, causando-me sérias dificuldades de aprendizado.
Inesquecível foi o momento em que minhas preces foram ouvidas: num repente, deu-me à cachimônia poderoso e sonoro estalo, ouvido por todos que estavam por perto, sobrevindo-me tão bestial e brutalíssima dor de cabeça, que estimei morreria, ali mesmo, ainda miúdo.
Vossa Mão Onipotente, no entanto, após o famoso estalo, milagre que correu notícia nesta colônia e chegou até a Metrópole, aperfeiçoou-me tão milagrosamente a razão, dotando-a de tamanha clareza, agudíssimo engenho e poderosíssima memória, que passei, em menos tempo do que se reza um credo, da condição de miúdo bestiola à de noviço iluminado, no tratamento que me dispensavam mestres e companheiros de noviciado.
Após fitar-me longamente, em silêncio, cofiando a hirsuta barba ruiva, o diabólico holandês arrepanhou a capa rubra que arrastava pelo piso da cela, sentou-se numa cadeira ao lado do meu catre, em lado oposto ao que se encontrava a Parca, e indagou-me:
“Satisfaça-me uma curiosidade, padre: o que te fez, quando ainda eras um puto, querer tornar-se um religioso e ingressar na Companhia de…” (neste passo o demoníaco batavo interrompeu a indagação e expectorou uma tossidela fingida) “… do Filho do Meu Inimigo, com perdão da má citação?”
Sem encará-lo, voltei minhas fracas vistas para a janelinha da cela, em busca, debalde, de alguma luz protetora das Alturas, e respondi:
“A partir de um estalo que se me deu à cabeça, quando eu ainda era um miúdo, após suplicar a ajuda da santa da minha devoção, na tenção de me aclarar as idéias e me desemperrar os bestuntos travados.”
O holandês emitiu um grunhido de desconforto, mexeu-se na cadeira, e, em tom lamentoso, comentou:
“A considerar tua biografia, foste plenamente atendido em teus rogos pueris…”
A Parca, sem tirar os olhos da bordadura, observou:
“Como se o Inferno não estivesse sempre a par do que acontece no mundo dos mortais…”
O holandês desferiu um olhar de desprezo para a crocheteira, ajeitou o corpanzil enxundioso sobre a cadeira, e voltou a me indagar:
“A propósito, padre: quando foi que o senhor tomou conhecimento, pela primeira vez, do Diabo e do Inferno?”
Balbuciei um gemido de horror, reuni alguns restos de coragem, e respondi:
“De uma pregação do Auto de São Lourenço, feita pelo padre Manuel do Couto, aqui mesmo neste colégio, antes de ingressar no noviciado da Ordem. Fiquei tão impressionado com o que o padre Couto pregara sobre o reino das trevas, nomeadamente as vivas e terríveis descrições que ele fez sobre os tormentos infligidos às almas habitantes daqueles satânicos sítios (freqüentes espetadelas com tridentes pontiagudos, sofridos banhos em caldeirões de águas ferventes, dolorosas queimaduras no fogo eterno que lá arde), que resolvi abraçar a vida religiosa, colocando-me a serviço de Deus e da Igreja, obra de combater o Mal e livrar as almas pecadoras de tão terrível destino!”
O holandês diabólico dardejou-me um olhar de debochada ironia, mexeu a carnadura balofa sobre a cadeira, e, contrafeito, redargüiu:
“O padre não vai querer agora me convencer, com o entendimento privilegiado que já possuía, nomeadamente após o advento do famigerado estalo, ter acreditado nas historinhas ridículas daquele pregador néscio sobre o meu reino e a qualidade da hospedagem que ofereço aos meus vassalos! Convenhamos! Quanto mais não seja pela prosaica razão de, na qualidade de responsável por um reino alternativo para as almas, em contraponto às promessinhas diversionistas do Céu e do Paraíso, anunciadas pelo Filho do meu Inimigo, quando por este mundo passou, rapaz mimado e desocupado, que vivia de ociosidades, sem trabalhar nem ajudar a família, em escandalosa e nada recomendável vida de vadiagem a que sempre se dedicou, na companhia e liderança de um bando de desertores de lares!”
Nesse instante, a Parca levantou as vistas da bordadura, admirada com a retórica galhofeira do holandês, liberou um riso escarninho, e voltou a tricotar.