A evolução do desumano

"Refrão da fome" e "Pawana", de J. M. Le Clézio, tratam de questões como sobrevivência e destruição
Le Clézio por Ramon Muniz
01/02/2010

Refrão da fome é um romance sem herói, sem heroína, é um romance com sobreviventes. Sobreviver significa vencer a violência. Não importando a forma como ela se estabeleça.

Refrão da fome é uma história de tensão, do início ao fim. Essa tensão aumenta à medida que a menina protagonista cresce, não há trégua. O escritor Jean Marie Le Clézio vai descascando, camada por camada, a violência, algumas de suas nuances, que sobrevivem inclusive à guerra.

Em seu estilo preciso, claro, quase didático, Le Clézio, Prêmio Nobel de Literatura de 2008, pode ser classificado como um memorialista. Ele traz à tona retratos, repletos de minúcias do passado, para tensioná-los no presente. E quem sabe, também no futuro.

Em Refrão da fome, o escritor, mais um, examina, sem luvas, mas com delicadeza, a ferida incicatrizável causada pela Segunda Guerra Mundial. Vale lembrar que, excetuando-se o cenário, de guerra, tal ferida não difere em muito das feridas provocadas pelo homem na atualidade.

Refrão da fome retrata a tragédia de Ethel, da menina inocente aos 12 até seus vinte anos de idade, então sem resquícios da ilusão e ciente do potencial predador do ser humano. Entenda-se, também, por potencial predador, o fascínio pelos bens materiais. Fascínio esse capaz de levar o pai de Ethel a roubá-la. Do auge da ilusão ao apogeu da miséria. O período de sofrimento da menina, sua infância e a adolescência, tem início nos anos 30 e perdura até o final da guerra, em 1945. Refrão da fome é um romance de formação — se objetivarmos a trajetória de Ethel — e um romance com rastros biográficos — se partirmos para o lado do autor.

Voltemos a Ethel. Bem nascida, vive em um bairro nobre de Paris, gasta sua infância ao lado do tio-avô, Samuel Soliman. Le Clézio descreve a amizade entre eles utilizando um lirismo nada comum. Os passeios, a cumplicidade, a fantasia, o sonho compartilhado com Samuel — o velho comprara um pavilhão indiano na Exposição Colonial de 1931 —, a idéia de erguê-lo um dia em seu quintal, a expectativa dessa construção, que acompanhará Ethel até a frustração pressentida pelo leitor, o futuro desenhado pelo tio-avô. Caso você entenda Refrão da fome como um poema, um poema que trará seu último verso na morte de Samuel, você não terá cometido crime algum contra a literatura. Muito pelo contrário. E terá exposto sua sensibilidade.

Burguesia
Logo entra em cena Xénia, uma imigrante russa, de origem nobre, mas devastada economicamente. A russa despertará a amizade e a paixão de Ethel. Xénia, no entanto, será mais uma frustração na trajetória de Ethel. Ao desaparecer e logo participar seu casamento, e ao reaparecer como alguém extremamente arrogante e com ares de superioridade.

Alimenta um amor burocrático pelo inglês Laurent, militar atuando no front. Esse amor atravessará o romance. O único aspecto duradouro, apesar da fragilidade, na vida de Ethel. Vida que desce ao porão sombrio com a débâcle econômica da família, a guerra e seus tentáculos implacáveis, um deles, os alemães invadindo a França.

Le Clézio apresenta a desgraça sem exageros ou truques analgésicos, mostra uma família aparentemente tranqüila em sua rotina burguesa de tênues atribulações.

Por falar em burguesia, Le Clézio vai às entranhas da burguesia francesa, representada pela família de Ethel e suas relações. Burguesia alienada e, talvez a única escorregadela de Le Clézio, extremamente infantilizada. Ao longo da trama, vêm à tona assuntos relacionados com as ex-colônias francesas, os imigrantes árabes a “macular” o território francês.

Refrão da fome, insisto, é um romance de formação, é um romance político, é um romance que só poderia ser escrito por um francês. Do mesmo modo que François Truffaut é insuperável ao mostrar a infância no cinema, Le Clézio e Raymond Quenau, de Zazie no metrô, são insuperáveis na literatura.

Não se trata de contar uma história edulcorada, só porque ela tem uma criança como protagonista, coisa comum entre nossos autores, armadilha em que não cai Quenau e tampouco Le Clézio.

A violência está presente em ambas as histórias. Em Refrão da fome, vestindo alguns disfarces, guerra, miséria, trapaça, ganância, morte…

A violência que cresce, conforme a referência ao “refrão” de Bolero, de Maurice Ravel. “O Bolero não é uma peça musical como as outras. É uma profecia. Conta a história de uma cólera, uma fome. Quando acaba em violência, o silêncio que se segue é terrível para os sobreviventes aturdidos.” Palavras do narrador.

Passado
Em Pawana, Le Clézio mais uma vez retorna ao passado e deixa bem claro que o ser humano é incapaz de evoluir. O que evolui são seus eletrodomésticos. No homem, o que vem sendo aperfeiçoado ao longo do tempo é o seu talento de predador, a rapinagem, a inesgotável capacidade de arranhar o mundo e suas criaturas.

Pawana trata da descoberta de uma passagem marinha, que conduz ao ponto escolhido pelas baleias para dar à luz e, ao mesmo tempo, o local onde elas voltam no final de suas vidas.

Le Clézio conta a aventura obsessiva de Charles Melville Scammon, capitão do navio Léonore. Scammon e o grumete John, este nascido em Nantucket — também cenário de Moby Dick, de Herman Melville. Scammon e John recordam seus dias a bordo do Lénore.

A relação homem/natureza é exposta com a devida crueza. Ambos buscam dinheiro, John encontra algo mais. Talvez venha a modificá-lo.

O capitão acredita na existência de um local, por enquanto desconhecido, onde as baleias se reproduzem e para onde retornam quando chegada a época. Incansável em seu objetivo, alcança êxito em 1856, no Golfo da Califórnia, o local secreto de reprodução das baleias, o berçário.

A descrição da chegada da embarcação do capitão Melville à costa oeste do México, maternidade/berçário das baleias é de uma beleza impressionante. Le Clézio leva o leitor à beira do precipício enquanto este pensa estar pisando no inocente palco de um singelo, desde que sem a ambigüidade costumeira, conto de fadas. Tudo sob a luz da lua.

Logo o leitor despencará no precipício com a narração do extermínio das baleias. Detalhe por detalhe, a matança leva o leitor para o convés da chalupa, onde ele assiste de camarote ao banho de sangue. Alcançado o objetivo, “o resto é silêncio”. A beleza destruída dói no mais embrutecido ser humano. Scammon acaba se culpando por sua descoberta. A destruição é total, flora, fauna, índios. Anos mais tarde, o ambiente se resume à areia e aos restos brancos das carcaças das baleias. Infelizmente, a dor da natureza/beleza destruída é fugaz, não sobrevive ao ato. Logo o homem partirá para outra. Na época, o óleo de baleia era um combustível precioso usado na iluminação, e hoje, qual a sua serventia? Mas a matança continua, voltem ao começo do texto sobre Pawana. Talvez este aprendiz tenha cometido um equívoco; o ser humano evolui. Agora ele é Desumano.

Pawana é sensorial: o cheiro do sangue, do mar, o gemido das baleias, tudo isso chega ao leitor, em descrições, por mais absurdo que isso possa parecer, poéticas. A poesia que pode ser verificada na paixão do grumete John por uma índia, escravizada, também dominada como as baleias. A índia presta serviços, anseia por liberdade, empreende várias fugas e é sempre capturada. Até que na fuga derradeira, além de ser recapturada, é assassinada. John que tão somente espionara sua beleza e não conseguira amar a beleza da índia, deixa nítida a função dessa novela imprescindível: “Por que os homens matam aquilo que amam?”.

Refrão da fome
J. M. Le Clézio
Trad.: Leonardo Fróes
Cosac Naify
248 págs.
Pawana
J. M. Le Clézio
Trad.: Leonardo Fróes
Cosac Naify
64 págs.
Jean-Marie Gustave Le Clézio
Filho de pais mauricianos e nasceu em 1940, em Nice, no sul da França. Formou-se em Letras e, em 1963, com 23 anos de idade, ganhou o prêmio literário Renaudot por seu livro de estréia Le Procès-Verbal (Gallimard). Entre seus livros publicados no Brasil estão O africano, A quarentena e Peixe dourado. Ganhou o Nobel de Literatura de 2008.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho