Apostar na estréia de um jovem autor é tarefa das mais espinhosas e ingratas, cujo apontamento de motivos é de óbvia dispensa. Em se tratando do século 20, é longo o rol de exemplos de críticos e juízos atropelados pela história, que endossou estéticas e obras tidas como bizarrices num primeiro momento. Não fossem sua seminal (e genial) literatura destinada ao público infantil e sua atuação como verdadeiro homem público (apostando no petróleo e nos livros), Monteiro Lobato seria eternizado, num canto debaixo do tapete, como o reacionário que não compreendeu Anita Malfatti.
No entanto, existem casos de raríssima felicidade, como o de Antonio Candido, que aos 28 anos de idade (e com formação acadêmica na área da sociologia) percebeu a força de Guimarães Rosa, indicando-a no texto Nas veredas do Grande Sertão. Que o leitor não pense ter se tratado de uma previsão óbvia, pois o autor de Sagarana foi recebido por muitos com bastante resistência.
Pergunto-me se a crítica atual, quando não dada à mera descrição, ao elogio gratuito ou a certa “obrigatoriedade” de condenar, possui algum poder de interferência na literatura. Independentemente da resposta (é escusado dizer, e por isso mesmo imprescindível), o que nos move à análise de um novato, além do amor pelas letras, é a esperança de que deixaremos aos nossos descendentes o trabalho sincero e a contribuição de que a literatura permaneça viva num mundo em ininterrupta e mortificadora autofagia.
Inovação sem ineditismo
A passagem de um autor de contos ao romance costuma ser tensa, visto que este gênero requer, via de regra, concentração e fôlego maiores, a fim de que se garantam alinhamento e unidade, sem os quais a narrativa não consegue atingir seus propósitos maiores. Em tal caso se inscreve agora Carlos de Brito e Mello, com o “romance” (explicar-se-ão as aspas mais adiante) A passagem tensa dos corpos, livro subseqüente ao volume de contos O cadáver ri dos seus despojos, publicado em 2007.
Tomando a perspectiva do que é mais freqüente e mais celebrado em nossa literatura atual, o livro de Brito e Mello pode ser visto como um acontecimento. Seguindo o lema da busca pelo novo, o jovem mineiro, sem fazer algo inédito, escreve de forma inovadora.
Nesse âmbito, o maior feito de A passagem tensa dos corpos é estabelecer uma tensão entre a delimitação objetiva dos gêneros e as necessidades amplas da expressão artística (além de escrever, o autor participa do Coletivo Xepa, grupo performático ligado às artes plásticas), algo nitidamente verificável na estrutura da escrita, a fundir prosa e verso, tensão esta que aumenta pelo subjetivismo sensorial do livro — que, nesse caso, não ocorre somente pela escrita em primeira pessoa —, dando a ele certo teor de lirismo (explicam-se as aspas utilizadas anteriormente).
Embora também os odeie, semelhantes demais a mim
narrar é minha prova de amor aos mortos. A narrativa confere-lhes breve e último fulgor
enquanto desaparecem.
A exemplo da diluição das fronteiras que teoricamente segregam prosa e verso, o exercício metadiscursivo — mais forte pilar da literatura ocidental do século 20 e deste início de século 21 — é empreendido, como também se evidencia no exemplo acima, com a mesma ênfase por Brito e Mello durante toda a extensão do livro:
Qual será o aspecto do filho? Que aparência terá? Ensaiei para ele uma qualificação condizente com seus hábitos de preso, reunindo, na ponta da língua, muitos adjetivos prontos para ser imediatamente empregados. O adjetivo submete, o adjetivo constrange. O adjetivo serve como uma baia estreita.
Merece destaque a mão firme com que Brito e Mello conduz toda a narrativa. Baseado nas observações de um morto (a lembrança de Memórias póstumas de Brás Cubas é inevitável, mas não há nenhum tributarismo ao velho Machado), o livro conjuga dois relatos paralelos, sendo um a catalogação de óbitos nas cidades mineiras — “Em Caeté, Fronteira, Itabira, Itambé do Mato Dentro, Joanésia, Lajinha, Leopoldina, Matipó, Nova Era, Pedra do Indaiá, Ressaquinha, Santo Antônio do Amparo e São Francisco da Glória, homens e mulheres morreram simplesmente por morrer” —, e o outro a penetração no íntimo de uma família, em cujo lar encontra-se o moribundo C., o qual desperta a atração do narrador: “Retorno da rua à sala onde C. agonizou. Tenho razões para tanta expectativa e exasperação. Meu trabalho de observar e descrever mortes deveria terminar com esse último registro”. Pondo lado a lado a catalogação e o desenrolar do enredo propriamente dito, o autor torna a dicção do romance complexa, mas sem que isso comprometa a fluência discursiva, algo acentuado com o minimalismo de muitos capítulos, como o 51, em que se lê “Um cachorro late”, e o de número 102, indo mais fundo na concisão: “Viva!”.
A alternância de relatos prolonga-se a uma alternância de postura do narrador, que por vezes abandona a voz descritiva para manifestar uma voz dialógica — “Mulheres/ o que têm diante de si é um cadáver”, diz o narrador à esposa e à filha de C. Na medida em que o relato caminha, o defunto-narrador põe de lado a passividade do olhar para integrar-se ao objeto de sua contemplação: “Amanhã estarei ocupado com outro importante compromisso, a saber/ apropriar-me de C.”.
Entretantos
Mas é justamente a partir da aproximação entre narrador e personagens da família — C., sua esposa, e um casal de filhos, os únicos efetivos da narrativa — que o romance começa a mostrar-se lacunar. Enquanto C., morto ou vivo, definha numa cadeira da sala, mãe e filha planejam, desarmonicamente, o casamento da segunda, ficando o filho trancado no quarto por todo o tempo. Nesse sentido, a construção que Brito e Mello faz dos personagens traça um típico retrato contemporâneo — o da banalização da falência familiar —, mas não há em relação a eles qualquer aprofundamento de caráter psicológico, e as abordagens dos mesmos são algo rasas.
Mamãe, como se encontra um noivo?
Encontra-se primeiro um homem, minha filha. Então, ele pode se tornar noivo.
E o amor, mamãe?
Ora, de novo, o amor… Por que se preocupar com o amor justo agora, que vai decidir o tom das roupas de cama do seu enxoval?
Nesse sentido e em outras partes, a troca do foco, saída do filho recluso para evidenciar comentários do narrador acerca de aspectos sem maior sentido, talvez indique uma tentativa de ironia, que não parece alcançar êxito, como se verifica na seguinte passagem:
Desde o final da tarde aguardo, do lado de fora da casa, alguma luz acesa no quarto do filho de C. O trânsito das charretes e carroças está a diminuir. Prefiro charretes e carroças a qualquer tipo de veículo, da mesma forma que prefiro seus motores animais a qualquer categoria de motorista.
Como uma peça típica de seu tempo, não poderia faltar em A passagem tensa dos corpos a abordagem direta e crua do sexo, mas sem que isso também gere solidez ao escrito ou a algum de seus personagens:
A esposa dorme lindamente. Eu sinto grande vontade de me assentar ao lado das suas pernas, de lambê-las de fato, depois/ abri-las, para que minha língua avance um pouco mais em direção aos lábios vaginais que vi de perto na última e imaginária investida. Chegará a hora em que poderei me pôr de joelhos, subserviente e com a boca pronta para a xoxota.
A nosso ver, tais aspectos enfileiram-se pelo livro de Brito e Mello por ser comum que autores contemporâneos desprezem as ruminações de caráter sociológico, psicológico ou filosófico para o privilégio, quase exclusivo, do trabalho com a linguagem. (Numa recente edição deste jornal, o romancista gaúcho João Gilberto Noll, um dos mais emblemáticos de nossa contemporaneidade, declarou ser um escritor da linguagem). Tendo em vista que em muitas ocasiões o romance foi apenas um suporte para pesquisas das ciências humanas (em especial, no Brasil, da sociologia), o que sem dúvida caracterizou um erro, a literatura atual constrói seu “acerto” a partir da secundarização de tudo o que não seja especificamente literário. E é por isso que Carlos de Brito perdeu uma boa oportunidade de ir mais além com seu romance de estréia.
Talvez não seja coerente dizer que a arte erra ou acerta, mas é inegável que o trabalho deste jovem mineiro contentou-se com suas experimentações formais, deixando perceber um dedo da época em suas mãos. Tendo elaborado uma escrita bastante peculiar, pelos motivos apontados acima, A passagem tensa dos corpos ganharia em vigor caso encostasse mais no espírito humano, tornando maior sua originalidade.
Com este romance inicial, Carlos de Brito e Mello demonstrou duas virtudes imprescindíveis a qualquer escritor: o domínio da escrita, que não derrapa em incoerências de construção, e o conhecimento teórico da matéria artística de que se serve, sem o qual nenhuma experimentação é possível. E por isso seria interessante que, mais do que ninguém, o próprio autor aposte mais em si do que nas recomendações de sua época, para que seja intensa a sua passagem por nossa literatura.
Cinco perguntas para Carlos de Brito e Mello
Produzir uma experiência
• O que aguarda o leitor neste seu livro de estréia?
A passagem tensa dos corpos organiza-se em torno da morte: ela diz respeito tanto à figura do narrador quanto ao trabalho que ele realiza, contabilizando óbitos pelo interior de Minas Gerais. A morte também acomete um personagem central da narrativa, que, no entanto, permanece insepulto, mantido amarrado a uma cadeira em sua casa. Pretendi que essa “presença indesejada” não dissesse respeito apenas aos acontecimentos narrados, mas que sua linguagem e sua estrutura pudessem ser construídas como uma forma possível para morte — sob forma dos espaços vazios entre os parágrafos, do corte das frases, da fragmentação do texto, da ausência de nomes próprios. Não desejei, de modo algum, produzir um romance regionalista. A interioridade que está representada em A passagem… é, sobretudo, aquela que se relaciona à reclusão, ao sufocamento, à penumbra. Por esse motivo, as ocorrências vividas pelos personagens não podem ser sempre inteiramente visíveis, manifestas. Eu quis também que o narrador se confundisse com a própria língua que o sustenta, que sustenta o texto, e que, no ofício que realiza, pudesse empregar ironia, sarcasmo, acidez.
• O que a sua literatura, em geral, pretende?
Acredito que a literatura só possa ser compreendida como uma experiência — mais do que como uma representação. E a experiência marca encontro com o estranho, com o desconhecido, com o imponderável. O leitor pode viver essa experiência na leitura do livro, sem dúvida, mas eu não poderia nunca começar a escrever se eu mesmo não fosse submetido a ela: experimentar a palavra, mas sem pretender ser seu dono, pelo contrário, colocar-me como fraco diante dela, manejá-la como quem vive um pequeno transe. Não se trata de alcançar outros estados da consciência, nem de estados místicos, mas estados de palavra: sonoridade, cadência, queda, violação, êxtase, tolice, imobilidade, enfrentamento, covardia, fuga. Para mim, não se trata de retratar ou de contar algo, como quem conta um caso ou dá uma notícia, mas de produzir — e viver — uma experiência.
• Quais foram os maiores desafios, alegrias e tristezas durante a construção de A passagem tensa dos corpos?
A produção do romance veio com a bolsa oferecida pelo prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, em 2008. Poder destinar um tempo só para a escrita foi a maior das minhas alegrias. Foi incrível a sensação de ganhar, dia a dia, consciência da obra, de vê-la complexa e precisa. Ao final do processo, contei com três importantes leitores: minha mulher, Carine Reis, meu amigo Roberto Alves e Affonso Romano de Sant’Anna, que fizera parte do júri do prêmio. A leitura do Affonso foi decisiva para a publicação do livro. Alguns desafios são práticos: é preciso persistir mesmo quando as boas idéias vão embora, é preciso superar um dia ruim e, ainda assim, escrever, é preciso respeitar o ritmo às vezes incerto de produção. Eu, que até então escrevia contos, não imaginava como seria elaborar uma narrativa dilatada como o romance, e desenvolvê-lo foi, todo o tempo, desafiador. A tristeza talvez seja um componente de todo trabalho literário, pelo menos, do meu trabalho. Não acho que ela tenha pertencido a um momento particular do processo, mas que o atravesse, que o contamine, nem que seja um pouquinho, e que os meus personagens, nunca dotados de uma felicidade completa, de uma satisfação plena, sejam uma evidência disso.
• Quais os seus próximos projetos ficcionais?
Meu próximo projeto é um romance, já iniciado, que também convoca a morte para a cena, mas para uma cena aberta, ao contrário do que acontece em A passagem tensa dos corpos. A reclusão deve dar lugar ao espaço aberto, e os personagens circularão sem endereçamento certo. E pretendo ensaiar, nesse romance, uma forma para a política, mas não a política dos grandes discursos, dos grandes feitos: quero uma política dos homens ordinários, dos arrependidos, dos descrentes dos que não sabem como amar.
• Qual a sua opinião sobre a literatura brasileira contemporânea?
Sou professor universitário, e minha biblioteca tem de incluir toda a bibliografia necessária para a preparação de aulas. Além disso, faço formação psicanalítica desde 2007, o que me exige muita e sistematizada leitura. Gostaria, portanto, de contar com mais tempo para a ficção, para a poesia. Eu gosto de nossa literatura pelo simples fato de que gosto imensamente da nossa língua. Mas, para além disso, há mais e boas razões. Atualmente, tenho ficado muito entusiasmado com a quantidade e qualidade de obras de autores — inclusive, de novos autores — lançadas pelas editoras brasileiras. Gosto especialmente do prazer que tenho ao pegar um livro sensacional — como aconteceu, por exemplo, com a obra do Lourenço Mutarelli. E os livros sensacionais têm aparecido. Muitos escritores, no entanto, ainda produzem muito e com talento sem verem sua obra adequadamente lida.