Que mistério tem Clarice/ Pra guardar-se assim tão firme, no coração?
(Caetano Veloso)
Sou tão misteriosa que não me entendo.
(Clarice Lispector)
“Ler Clarice é viver em permanente estado de paixão”, avisa-nos Teresa Monteiro. Na procura de uma resposta para o que faz que legiões de pessoas, de várias nacionalidades, se apaixonem pelos textos desta autora, os leitores convidados por Teresa Monteiro, escrevem, para cada um dos contos escolhidos, uma pequena introdução. Quando digo pequena, estou sendo precisa: na introdução escrita pela atriz Fernanda Torres, por exemplo, quase que só temos um grito: “CLARICE ME DEIXA MUDA”. Mas é preciso admitir: o que há para dizer diante de um conto como A quinta história, tirada de A legião estrangeira, publicado em 1964? Falsamente disfarçado de um pequeno problema prosaico, a mesma história vai se ampliando numa impressionante reflexão sobre morte, violência e arbitrariedade. E isso é apenas um resumo, uma porta de entrada para a interpretação do conto. Em outras introduções, chama-nos a atenção a concisão científica: para exemplificar um dos temas favoritos de Clarice, a epifania, o professor Affonso Romano de Sant’Anna escolhe o conto Amor (Laços de família, 1960) e em seu texto destaca a presença da “fratura” na “trivialidade da vida”.
Laços de família é a obra mais popular de Clarice. Talvez por isso mesmo haja uma maior incidência de escolhas recaindo sobre esse livro. Rubem Fonseca, escritor e amigo da autora, é um dos que retiram dele a sua história de cabeceira. Seu texto é uma defesa apaixonada da amiga. Depois de contar um caso do passado, ele nos revela que escolheu Uma galinha por que “tem humor”, porque “o conto é interessante e sua leitura é prazerosa”. Simples assim: apesar das interpretações poéticas e filosóficas, em primeiro lugar ele coloca o prazer da leitura. Do mesmo livro, o escritor Luis Fernando Verissimo, que também conheceu e admirou Clarice destaca A menor mulher do mundo — “o melhor conto que conheço em língua portuguesa”. Em sua introdução, ele destaca a amizade entre Clarice e sua família e deixa-nos a tarefa de penetrar na selva onde brota a “pequena flor”, uma chaga em nossas almas.
É sobre sua capacidade de nos surpreender que fala a escritora Adriana Falcão em sua apresentação do conto Ruído de passos, tirado de A Via Crucis do corpo (1974). Como nunca recua frente aos mistérios da vida, Clarice consegue surpreender seus leitores. Adriana Falcão demonstra a “rasteira” que Lispector passa em quem lê o conto sobre a velhinha de 81 anos sofrendo da “vertigem de viver”. Quando se pensa que a história se resolve nos problemas sexuais de dona Cândida Raposo, Clarice vai além e nos oferece ainda mais do que se espera.
A cantora Fernanda Takai tem a mesma sensação de rasteira com a leitura do conto destacado, A língua do “P” (a autora nos pega no contrapé, diz ela). A jovem e virgem Cidinha, que se faz passar por prostituta para escapar de seu destino, que se transforma no de outra pessoa, numa indiferença olímpica. Ainda de A Via Crucis do corpo é o conto Ele me bebeu, destacado pela atriz Carla Camurati, apresentado como “uma das mais interessantes tramas de amor contemporâneas que eu já li”. Mas, como os outros destaques ressaltaram, é uma história surpreendente, inusitada. E, nem por isso, menos verdadeira. Aurélia e seu maquiador, amigos e rivais, se enfrentam pelo amor de um homem, e a arma de Serjoca, sem ferir fisicamente, é mais letal que qualquer adaga ou revólver.
Apenas mulher
Do livro de contos póstumo, A bela e a fera (1979) o jornalista Artur Xexéo destaca A fuga, enquanto a atriz Letícia Spiller prefere A bela e a fera ou a ferida grande demais. Ambos são representantes de uma série de histórias em que a autora se dedica a explorar os caminhos de uma mulher que tem medo, mas que quer se transformar de um ser “classificado — mulher casada, mulher cansada, mulher confusa — num ser livre, apenas mulher”.
Apresentando Felicidade clandestina, conto tirado do livro do mesmo nome, a atriz Malu Mader, em texto conciso, revela que, ao ler Clarice consegue se reconhecer. Diz ela: “Quando estou com um livro seu aberto no colo, em êxtase puríssimo, sou uma mulher com sua amante, sou uma criança descobrindo o mundo”. No livro de 1971, as histórias parecem brotar de uma pessoa cujo dom da visão extrapola o fenômeno físico para focalizar o fenômeno da existência. Em Menino a bico de pena, revela-se a atenta observação de uma criança “antes da domesticação”. É sua capacidade de ver e de desenhar o instante que fascina a escritora Adriana Lisboa, que o selecionou. A atriz Beth Goulart, que encarnou a escritora nos palcos, propõe-nos a reflexão sobre o ambicioso Perdoando Deus, também encontrado em Felicidade clandestina (1971). Escolhe-o por revelar uma força, “estranha e atraente que ora nos abraça ora nos repreende de acordo com a lei de nossas ações”, esse grande “mistério do mundo” capaz de encontrar o que chamamos de Deus no sublime ou no degradado. Um conto que, segundo a atriz, não inventa Deus, mas sente a presença divina.
Do livro Onde estivestes de noite (1974), o jornalista José Castello selecionou O relatório da coisa, o qual é apresentado, pela própria autora, como “a antiliteratura da coisa”. A escolha de Castello deve-se a que o conto exemplifica o esforço clariceano para “chegar onde as palavras não alcançam”. Seu relato, ou melhor, seu relatório, exemplifica o fracasso que materializa a própria literatura. Apresentando outro conto deste mesmo livro, É para lá que eu vou, o cineasta Luiz Fernando Carvalho redige um texto conciso, em que transforma o nome de Clarice no verbo criador, ecoando o que ela mesma faz no conto, que se indaga, que se dobra, que se examina e se descobre amor.
A escolha da cantora Maria Betânia, Os desastres de Sofia, vem precedida de uma modestíssima introdução, onde Betânia se diz incapaz de comentar a obra de quem tanto admira. No entanto, confessa, “dizer textos dela posso, como intérprete”. O admirável é que o conto que ela escolhe, reflete a mesma situação em que ela se coloca. A “porcaria de criança” também se vê muito pequena diante das lições que só aquele professor vulnerável lhe poderia ensinar. Já que estamos falando de professores e de suas lições, O crime do professor de matemática, selecionado por Carlos Mendes de Souza do livro Laços de família, vem precedido de uma longa introdução, reveladora da familiaridade com a obra e da admiração que o professor da Universidade do Minho sente por aquela que ensina que os professores são aqueles que nos ensinam a vida fora da sala de aula.
Numa sintonia diferente, Benjamin Moser, professor que acaba de lançar mais uma biografia de Clarice Lispector, ressalta, em sua apresentação ao conto A procura de uma dignidade, também retirado de Laços de família, a árdua conquista de liberdade que a fazia andar “sempre na contramão”. A mulher que se perde num labirinto que só ela vê, composto de devaneios com Roberto Carlos e da consciência da velhice, máculas que só podem ser apagadas pela morte, é bem reveladora do alto preço que a autora se dispôs a pagar pela sua liberdade de ser alguém, com nome e sobrenome próprios. A sra. Jorge B. Xavier tem muito em comum com a protagonista de Feliz aniversário, história escolhida pela escritora Lya Luft dentre as de Laços… Esta mulher idosa também se vê dentro de “uma jaula”, um labirinto de desamor de onde, aos 89 anos, a aniversariante contempla o mistério da morte.
A jaula das convenções
Nenhuma situação é definitiva na obra de Clarice. Examinando uma outra refeição, “um almoço de obrigação”, a escritora transforma a jaula das convenções numa revelação de possibilidade de redenção. Isso é o que a jornalista Cora Rónai destaca em sua introdução ao conto A repartição dos pães, retirado de A legião estrangeira (1964).
A professora Claire Williams, ao escolher o conto O ovo e a galinha, do mesmo livro, chama a atenção para seu caráter de puzzle, um conto feito de fragmentos, de pensamentos costurados numa construção libertária.
O conto A imitação da rosa (Laços de família), escolha da escritora Marina Colasanti, tem o apelo de desvendar a natureza mesma da loucura. Laura, a personagem desenhada em tintas castanhas, “sai da normalidade da sala para ingressar na perfeição das rosas”, e assim nos revela “o reverso, o sempre oculto”, e avisa: “ele espreita”.
O olhar que Clarice derrama sobre as coisas foca e desfoca o mundo a seu prazer. A cada ajuste podemos penetrar no âmago das coisas mais banais e delas retirar sua essência mais profunda. Ou, com olhos embaçados, podemos fixar nossa interlocutora com a “fixidez reverberada de cego”. A jornalista Mônica Waldvogel escolhe, dentre os contos de A legião estrangeira, Evolução de uma miopia, já que ele trata do “olhar dos outros”, olhar que define o que somos. Sob o olhar desses leitores escolhidos por Teresa Monteiro, vamos percebendo as estratégias de Clarice para conquistar o amor e a devoção de seus leitores, que fazem de sua obra seus livros de cabeceira.
Em cada história, em cada palavra, Clarice ofereceu suas verdades. Ela nos ofereceu a mesa farta, generosa, repartindo conosco seu pão. E, no entanto, mantém-se íntegra e misteriosa, como um ovo.