Tenho uma gata e uma cachorra, Mia e Samba. Em momentos de vertigem amorosa, me flagro tentando imaginar o que elas pensam, sentem ou o que também elas imaginam. Será que me amam também, sabem o que é o amor, distinguem querer de amar, o que a Samba pensa quando me olha fixamente fazendo ginástica, gesticulando, a Mia disfarça que não quer nada só para obter o que quer, a Samba tem vergonha de pedir mais ração, elas sentem ciúmes, têm medo de que uma roube o território da outra, a Mia sente ódio da Samba, elas gostariam de ir embora, se sentem aprisionadas?
A proximidade é enorme e confidencio a elas segredos que nem a mim mesma ainda articulei. Entretanto, o abismo persiste. Nada, como um animal, nos é mais estranho e a intimidade que estabelecemos é ainda mais misteriosa porque não diminui a distância, antes a requalifica. É mais fácil esquecer esse intervalo incontornável e pensar que eles, os animais, são nossos — filhos, crias, propriedades — e que existem por e para nós. Mas penso que a consciência dessa distância pode nos tornar mais proteicos, mais humildes em nossa condição não somente de donos ou sujeitos dessa relação, mas também objetos de uma percepção igualmente estranha em relação àquilo que nos une e àquilo que nos separa.
Começo por duvidar da frase que começa esse texto: “Tenho uma gata e uma cachorra”. Como é possível “ter” um ser? Sei que é força de expressão e também dizemos “tenho dois filhos”, “tenho um amigo”, etc. Mas até que ponto isso também se aplica à posse de um animal, em que, certamente, o verbo “ter” é utilizado com mais sentido de propriedade? Afinal, eles dependem de nós para sobreviver (será mesmo?). Se tenho um animal, posso pensar que também ele me tem, na mesma medida e simbolismo dessa noção. E se penso que não o possuo e que sua existência é, posso perceber a mim mesma como ser e não apenas como dona, cidadã, mãe, escritora, definições funcionais da minha identidade. Afinal, como me veem as duas animais que vivem comigo e com quem eu vivo?
No livro O animal que logo sou, Jacques Derrida discorre sobre o que significa estar nu diante de sua gata, que assim o encontra todas as manhãs, quando ela o segue até o banheiro. O que será que ela vê? Ao longo do livro, o autor mostra como a nudez, diante do animal, permite uma aproximação maior à nossa própria animalidade, já que a roupa é um dos primeiros sinais, na mitologia judaico-cristã, a designar um dos sentimentos mais humanos e que mais nos afastam de nossos irmãos animais: a vergonha. Despir-se dela e mostrar-se, de alguma forma, igual a eles, nos faz afrontar o insuportável — nossa mortalidade. Assim, mortais, nus diante de sua nudez não envergonhada, tornamo-nos vulneráveis e mais inocentes. Qual é meu nome nessa condição? Coloco, emparelhados, nossos dois nomes: Noemi e Samba. Esse nome é tão aderido à minha condição que não sei mais como separá-lo de mim. Mas tento. Somos humana e cachorra, nuas e sem nome. Num esforço sem esforço, imagino o que ela vê: os gestos como dança, as palavras como chamados, as expressões faciais como reações. Ela me fareja, sente cheiros que não identifico, tais como restos de poeira, de comida e de lugares que toquei. Ela mira fixamente coisas que mal reconheço, para quem sabe imitá-las à sua maneira. Falo com ela, conto do meu dia, dos sonhos, dos projetos e ela escuta, as orelhas se movendo conforme as entonações e chega a reconhecer algumas palavras. Se meu corpo está nu, uma outra tarefa, talvez ainda mais difícil, seja desnudar também as palavras, ainda mais carregadas de significados e conotações do que as roupas. Tentar dizer as coisas sem qualificativos ou simbolismos, buscando alguma imanência verbal, semelhante à dos sons animais. Mas também isso pode ser uma projeção. Será que para que eu possa ser vista pela Samba ou pela Mia, preciso também virar uma cachorra ou gata e que os sons que emito percam os significados? Em certa medida, sim. Preciso encontrar o que, em minha história individual e social, ainda resta de um tempo metamórfico, em que humanos e animais se transformavam uns nos outros pelas vias da superstição e da mitologia. Um tempo em que as palavras, antes de funcionais ou metafóricas, possuíam contornos mágicos capazes de fazer surgirem as coisas. Preciso estar como G. H. diante da barata, vazia.
Nada disso é possível, mas insisto. Olhando-a demoradamente, vou perdendo o entorno e os preconceitos, da mesma forma que, ao repetir indefinidamente uma palavra, ela vai perdendo o significado. Quero me despojar dos significados e ser o que ela vê, tentando não ser nada para mim mesma. Depois de algum tempo que não conto, percebo uma comunhão em nossos olhares, num cruzamento instantâneo de afinidades, que logo passa, mas que fica registrado no corpo. Nós nos entendemos integralmente por uma fração de segundo interminável.
A experiência é tão intensa, que imediatamente sinto vergonha de tudo: do corpo nu, dessa tentativa absurda, do vazio e do cadinho de verdade que experimentei. Me corrijo, falo, canto e me visto. Meu nome é Noemi e ela é a Samba, minha cachorra.