Para ler como um escritor

A partir do livro “Para ler como um escritor”, da americana Francine Prose, a autora compartilha alguns aprendizados sobre leitura e escrita
Ilustração: Igor Oliver
01/08/2021

A pandemia nos obrigou a passar mais tempo em casa, confinados, longe da família, das amizades, das salas de aula. Boa parte das pessoas passou a desempenhar seu trabalho de forma remota, o que, como quase todas as experiências, trouxe perdas e ganhos. Uma das mudanças mais importantes desse novo modo de vida foi a nossa relação com o tempo. Sem ter que nos deslocar pelas cidades, sem poder realizar muitas das atividades sociais às quais estávamos acostumados, acabamos descobrindo que uma fatia generosa de tempo estava disponível e, paradoxalmente, muita gente teve dificuldade de acomodá-la.

Relatos de tédio e de sensação de vazio passaram a estampar os jornais e as redes sociais. Mesmo entre quem costumava encontrar na leitura uma ótima forma de fruir o tempo, uma parte passou a enfrentar dificuldade de concentração. Mas os livros podem ser ótimos amigos em todas as situações, e aliados ainda mais importantes em tempos desafiadores. Então como podemos resgatar o prazer de ler, recuperar ou incorporar o hábito de leitura num momento tão difícil?

Pensei em compartilhar aqui alguns aprendizados que a escritora e crítica literária norte-americana Francine Prose reuniu no seu ótimo livro Para ler como um escritor, publicado no Brasil pela Zahar com tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Embora o subtítulo seja: Um guia para quem gosta de livros e para quem quer escrevê-los, não é preciso necessariamente se interessar por escrita para acompanhá-lo. Mas, claro, se você também estiver interessado em escrever melhor, a indicação vale em dobro. Para isso, fiz uma lista com o título “O que aprendi com Francine Prose em dez lições”. Aqui vai:

 1. Ler com atenção e presença (em detrimento de velocidade): o nosso mundo cobra celeridade e pragmatismo, mas quando aplicamos esses valores à experiência de leitura, estamos usando uma lógica que não respeita o tempo de contemplação e assimilação individual. Nas redes sociais, vemos colegas começando e terminando livros num piscar de olhos, enquanto a gente pode estar sentindo dificuldade de caminhar. No lugar de estimular a leitura, isso pode ser muito frustrante e pode acabar nos afastando de vez dos livros. Cada pessoa tem o seu próprio tempo e a leitura, diferentemente de rolar o feed do Facebook, Twitter ou Instagram, é um exercício ativo, que pede implicação. Se pudermos reduzir a velocidade e nos autorizar a operar em outra marcha, também se torna possível passar pelo texto com mais atenção e mais presença, tendo uma experiência de mais qualidade.

2. Qualidade > Quantidade. Outra coisa que pode nos afastar da leitura é a ideia opressora de quantidade. “Ah, adoraria ler esse livro, mas são quatrocentas páginas, uma leitura que não cabe na minha vida agora”. E quarenta páginas por dia, será que seriam possíveis de acomodar? Assim, em apenas dez dias você terá conseguido terminar a obra. Se quarenta ainda não for uma meta viável, então que tal vinte, que tal dez? Ler um pouco por vez, com qualidade, é uma forma de seguir adiante sem adotar um marcador geral de produtividade — uma lógica de consumo no lugar de uma lógica de aprendizado, de contemplação, de descoberta. Vamos devagar e sempre.

3. Julgar menos, apreciar mais: quando estamos diante de uma obra literária, podemos deixar de lado os julgamentos apressados e severos que a cultura tanto nos condiciona a fazer em outros campos. É possível ler uma história sob a perspectiva de um assassino, por exemplo, sem ter que ocupar a posição de promotor ou juiz. A literatura é um espaço em que a complexidade humana pode ser representada e explorada, com toda a sua ambivalência, com todos os seus paradoxos. Podemos nos deixar sensibilizar e enriquecer por essas experiências, sem tentar aprisioná-las em rótulos e caixas. Podemos apreciar mais a jornada.

4. Literatura é forma + conteúdo: pode parecer óbvio, mas é sempre bom lembrar. Vejamos, por exemplo, o caso de Grande sertão: veredas, obra consagrada de João Guimarães Rosa, repleta de acontecimentos, de ação, de reviravoltas, de questões filosóficas. Mas, sem dúvida, o grande mérito do romance está na forma, na perspectiva de Riobaldo, no trabalho poético de Rosa, na composição de cada parágrafo, de cada frase. Quando lemos prestando atenção apenas ao que uma história conta, e não a como se conta, uma parte significativa da experiência de leitura se perde.

5. Grandes escritores podem ser grandes professores: Francine Prose parte da premissa que podemos aprender a escrever melhor se nos tornamos leitores mais atentos das grandes obras. Temos muito o que aprender sobre os detalhes com o russo Anton Tchekhov, por exemplo. No livro, a autora cita muitos exemplos e analisa trechos de romances e contos a partir do método de leitura cerrada, demonstrando o que quer dizer quando defende uma leitura que privilegia a forma.

6. Outras formas de ler são válidas (só não são parte do método específico que ela propõe): Mas e as leituras que fazemos por mero entretenimento? Temos que estar atentos à tessitura do texto mesmo quando queremos ler um romance policial sem pretensões literárias durante as férias? Às vezes, a gente lê só para descobrir quem matou, ou por que matou, ou o que vai acontecer a seguir. Por mera diversão. E se a diversão não fosse algo a ser levado a sério, estaria contradizendo outros itens desta lista, quando falo da importância de desacelerar e de descartar a lógica utilitária. Todas as formas de leitura são legítimas. O que Francine Prose propõe é uma forma específica de ler, que pode ser muito valiosa por suas próprias razões, algumas das quais estamos discutindo aqui.

7. Ler se aprende lendo, assim como escrever se aprende escrevendo: por mais teorização que se possa fazer, quando falamos de leitura nada substitui a experiência. Fracionar as páginas e estabelecer uma meta viável é uma boa forma de consolidar o hábito de leitura de modo sustentável. Outro caminho que costuma ser estimulante para quem enfrenta dificuldade de concentração é participar de clubes de leitura ou outras atividades que promovem leituras conjuntas. Ter com quem conversar sobre as páginas lidas pode ajudar muito nesse percurso que pode soar solitário. Também é legal perceber como o mesmo livro pode ser lido de maneiras diferentes, como cada pessoa empresta a sua própria perspectiva, oferece as suas interpretações a partir de seu repertório pessoal, de sua subjetividade. Então essas trocas podem ser muito ricas.

8. Repertório é importante: quanto mais leituras a gente vai acumulando, mais associações vai fazendo, mais rica vai sendo a jornada. Mas não se cobre caso se sinta em falta. Repertório se constrói com o tempo. Todo mundo começou de algum lugar, e todo mundo tem uma história diferente. O importante é respeitar a sua.

9. Ler inclui reler: com alguns livros, a gente precisa ir e voltar mais de uma vez numa frase, num parágrafo, às vezes numa página ou capítulo inteiro. Pode acontecer também de a gente interromper uma leitura porque sente que ainda não é o momento para ela e, então, um dia, resolve dar uma nova chance e descobre que tudo faz mais sentido. Estamos em transformação e as nossas leituras e releituras nos acompanham nesse processo.

10. Léxico familiar: o que a gente lê vai formando o nosso vocabulário, a nossa sintaxe, a nossa forma de falar, de escrever, de se comunicar. Por isso é tão importante ler mais literatura brasileira, por isso é tão importante valorizar boas traduções de literatura estrangeira. A boa notícia é que absorvemos muito mais do que imaginamos. Então mãos à obra.

Fabiane Secches

É psicanalista, crítica literária e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Autora de Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência (2020).

Rascunho