Nas duas colunas anteriores, tentei mostrar que o passo de Vieira, no Sermão da Sexagésima (1655), que censura os chamados “estilos cultos” não significa uma crítica à Retórica ou aos ornatos empregados nos discursos, mas sim uma exigência de adaptação do sermão católico ao tipo de decoro que o torna mais eficiente, ou seja, aquele em que o pregador se reveste de uma autoridade sóbria, na qual não cabem procedimentos que possam descaracterizá-la como tal. O trecho seguinte do sermão pode deixar isso mais claro:
Na comédia o rei veste como rei e fala como rei, o lacaio veste como lacaio e fala como lacaio, o rústico veste como rústico e fala como rústico, mas um pregador vestir como religioso e falar como… não o quero dizer por reverência ao lugar. Já que o púlpito é teatro e o sermão comédia, sequer não faremos bem a figura? Não dirão as palavras com o vestido e com o ofício?
Ou seja, o ofício de pregador tem as suas exigências particulares para que funcione de maneira adequada, e a mais importante delas é a de que a composição das palavras não atrapalhe, antes se ajuste à figura conveniente do pregador, tendo em vista a imagem pública que lhe dá máxima autoridade moral junto ao auditório.
Isso não é tudo, porém. Há um segundo aspecto, ainda mais relevante, a considerar sobre as injunções particulares do gênero parenético, tais como desenvolvidas no Sermão da Sexagésima. Para introduzi-lo, é preciso considerar que os ornatos aplicados aos sermões têm necessariamente de ser pensados em função de sua base analógica figural ou mística, isto é, como atos intelectuais de revelação de relações ocultas já existentes entre as coisas criadas. Desse estrito ponto de vista, os artifícios do discurso não se opõem à natureza criada divinamente, ao contrário: são meios que o homem dispõe para investigar os nexos profundos guardados por ela — vale dizer, aqueles mais capazes de desvelar a orientação divina impressa nas coisas no ato inaugural da Criação. Dessa perspectiva, na qual os ornatos estão teologicamente naturalizados como signos da própria ordem transcendente, fica claro que a censura do padre Vieira jamais poderia recair genericamente sobre eles. O que, de fato, Vieira está tentando argumentar é que os sermões produzidos na Corte arriscam-se, mais do que aqueles produzidos nas missões jesuíticas, a perder de vista a relação essencial entre os conceitos engenhosos e os sinais divinos no mundo, entre as figuras da técnica discursiva e as da economia salvífica nas quais ganham o seu sentido fundamental.
Duramente repreendidos por Vieira, os pregadores cristãos não são culpados de empregar tropos ornamentais; eles não são culpados do pecado da retórica ou da eloquência — pois esta, enquanto domínio técnico, mostra propriedade e pertinência, senão piedade na eficácia do “mover” o ouvinte ou leitor cristão na direção do Bem. Eles são culpados de um ato muito mais grave, pois com maior consequência para a salvação da alma dos cristãos de que estão encarregados: são culpados de romper o vínculo místico entre a dialética controlada dos ornatos e os signos livremente dispostos por Deus no mundo criado.
São pregadores, digamos, sem disposição hermenêutica, que abdicaram de encontrar a substância oculta na vida dos sentidos, e que, portanto, deixaram de seguir a orientação transcendente na elaboração de sua homilia. Agindo assim, reduzem os signos divinos a uma matéria verbal autônoma, contentando-se em tratá-los como enfeites, indiferentes ao mistério sagrado. Ou seja, o que parece intolerável e impróprio é que os sermões produzam uma separação entre a retórica das analogias e a finalidade teológico-salvífica que lhe dá fundamento. Acompanhemos Vieira:
Nesses lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É isso o sentido em que os entendem os Padres da Igreja? É esse o sentido da própria gramática das palavras? Não, por certo, porque muitas vezes as tomais pelo que soam, e não pelo que significam, e talvez nem pelo que soam. Pois se não é esse o sentido das palavras de Deus, segue-se que não são palavras de Deus. E se não são palavras de Deus, que nos queixamos de que não façam fruto as pregações? Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer dizer o que elas dizem!
Perdido o decoro e autonomizada a forma no exterior de seu sentido inspirado, o aplauso do auditório ao pregador equivale a uma condenação, pois nada poderia ser mais condenável do que o esvaziamento da palavra de Deus da sua glosa pelo sermão:
Verdadeiramente não sei de que mais me espante, se dos nossos conceitos, se dos vossos aplausos. Oh! Que bem levantou o pregador! Assim é: mas que levantou? Um falso testemunho ao texto, outro falso testemunho ao santo, outro ao entendimento e ao sentido de ambos. Então que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus?
Uma reflexão análoga a essa que Vieira faz em relação ao sermão poderia ser feita em relação à celebração eucarística, clímax do andamento da missa, que é atingido justamente quando a pregação, memória atualizada das palavras de Cristo, encontra a presença real dele transubstanciada nas espécies visíveis do pão e do vinho. A pompa litúrgica — assim como a ornamentação retórica, pompa discursiva —, participa da consagração eucarística ajustada ao teatro católico da fé. A magnificência da cerimônia só é censurável quando concebida fora de sua integração à liturgia do ato persuasório total de que o sermão faz parte. Exatamente como no caso da retórica dos ornamentos, o decoro que organiza o espetáculo da missa tem de estar articulado ao modelo sacramental da presença divina nas espécies sensíveis. A dissociação entre a pompa e a finalidade litúrgica, ou entre esta e a realidade da presença divina, implica no fracasso da cerimônia inteira, e, em particular, da inteligência do mistério eucarístico.
Esse mesmo raciocínio vale para os projetos arquitetônicos das Igrejas erigidas pelos construtores mais notáveis a serviço da Contrarreforma, como Jacopo Vignola e Giacomo della Porta. Também eles articulam a magnificência dos templos à celebração sacramental, reconhecendo a força integradora do mistério na cena litúrgica e postulando a existência de uma unidade estrita nas representações iconográficas de capela a capela. O cerne da censura de Vieira não é outro, portanto, que a perda dessa ligação essencial entre a manifestação sensível — seja ela palavra, trigo ou argamassa — e a substância mística que fundamenta a pregação, e não o simples acúmulo de figuras discursivas. Para dizê-lo de outra maneira: o maior mal dos “estilos cultos” dos sermões não é o pedantismo da elocução, mas a ilusão de autossuficiência do discurso. Assim, segundo Vieira, “arte sem arte” não é menos arte, mas arte que não se encerra em si mesma, palavra que não ignora a sua origem e destinação cristã.