A literatura brasileira atual cada vez mais se enfurna numa encruzilhada. Vencido o ruralismo dos anos de 1930 e assumido de maneira definitiva o urbanismo como cenário e ponto de apoio estético, entrega-se a dois temas básicos: a violência e o sexo. É certo que a violência bate à porta de todos cotidianamente e a sexualidade se tornou uma espécie de gênero de primeira necessidade, no entanto uma das mais caras chaves da literatura é debater e alertar para o que se esconde sob a superficialidade. Graciliano Ramos sistematiza a fórmula ao escrever todo um romance noturno, Angústia, no cenário solar de Maceió. Ao invés de transitar pela obviedade marinha, prefere circular por quintais soturnos, umidificados, plenos de mofo e musgos.
Já a maioria dos escritores atuais se entrega ao óbvio. Dau Bastos, romancista que estréia em 1984 com uma narrativa instigante, Das trips, coração, em seu mais novo romance, Reima, cai na facilidade dual do sexo e da violência. O livro se passa no Rio de Janeiro onde um condomínio de classe média, o Equitativa, no bairro da Santa Tereza, sobrevive entre os tiros dos traficantes encastelados nos morros dos Prazeres e do Cerro Corá. Neste cenário circulam personagens chapados, estereotipados e sintéticos, como o músico bissexual Boiô, a sensualíssima síndica Clara, o nordestino violento e sexualista Reimoso, o porteiro, líder comunitário e bom de cama Juca, o obsessivo e apaixonado Gabriel, o voluntarioso e tarado Camarão, a romântica e quase frígida Nicole, a encantadora e ninfomaníaca Manuela. Isso mesmo, cada personagem carrega seus predicativos como atributos indissolúveis do caráter.
A boa notícia é que, mesmo num romance que enfada pelo excesso de recorrências e repetição de fórmulas, percebesse que Dau Bastos manteve o controle narrativo. Em outras palavras, o desenvolvimento do drama foi urdido com segurança e precisão. O envolvimento paulatino de Nicole com o universo marginal, a ascensão criminosa de Camarão, as reviravoltas e descobertas das próprias potencialidades de Reimoso, as decisões adiadas de Rodapé formam-se como um caleidoscópio de tramas que são oferecidas aos poucos e que no final se fecha como um quebra-cabeça da complexa sociedade carioca. O problema é a sensação de déjà-vu que acompanha o leitor ao longo de todo texto. O maniqueísmo primário formado a partir de uma leitura social básica da realidade enfraquece o enredo, pois a cada nova página apresenta um novo elemento ao final óbvio e previsível, infelizmente engolindo o artesanato do controle narrativo.
Meio-termo
Há um conselho bem interessante que Autran Dourado escreve num texto curto intitulado Breve manual de estilo e romance: “Procure imitar os gregos, que diziam da maneira mais simples e concreta as coisas mais profundas; ao contrário dos modernos, que dizem as coisas mais banais da maneira mais rebuscada e fluida”. Dau Bastos se posta no meio-termo. Seu texto se constrói de maneira simples, sem qualquer rebuscamento lingüístico, até fluido, mas peca pela constante presença do lugar-comum tanto frasal quanto ideológico. Repetidas vezes mostra a violência como uma filha da miséria, o deslumbramento do estrangeiro frente ao exótico tropical, a xenofobia do europeu contra os pobres do terceiro mundo. E tudo dito com a linguagem deliberadamente franciscana.
Ao cair da tarde Nicole ia para o mirante e permanecia em pé, com os braços abertos, a saborear o vento. A visão do oceano levava-a a pensar no outro lado, onde se encontrava sua França querida, porém antiga e arrumada a ponto de relegar as novas gerações ao tédio. Enquanto isso, o Brasil ainda estava por ser feito, pois lhe faltava desde escolas até moradias, sem falar na partilha urgente do patrimônio nacional, que não podia ficar nas mãos de umas poucas famílias.
Supostamente para encontrar solução para estes, digamos, dilemas que assolam Brasil e França, dois personagens, Boiô e Nicole embrenham-se de cabeça na vida de estrangeiro. Aliás, os dois inicialmente são amantes, mas ele, bissexual assumido, a abandona, e ela se manda para o Rio de Janeiro à sua procura. Como ele já voltara para a Europa com a disposição de viver entre a miséria que lhe premia a música e o glamour que lhe oferecem os casos com ricos homossexuais, ela torna-se amante e conselheira do chefe do tráfico Camarão. Novamente se imbricam o sexo e a violência numa solução já fartamente explorada pelas pornochanchadas da década de 1970.
Há uma irrealidade cotidiana — termo cunhado por Umberto Eco — na prosa de Dau. Os fatos que falam são reais, estão em todos os jornais — guerra de traficantes, corrupção policial, descaso das autoridades com as matas e com as pessoas —, só que o tratamento ficcional que recebem tais fatos, os torna distantes, inverossímeis, quase irreais. Carmo, o comandante policial que chora na Confeitaria Colombo e confiante monitora a guerra nos morros, é uma reprodução caricata dos policiais mexicanos que infestavam os antigos faroestes.
Permanecendo na linguagem cinematográfica, os roteiristas defendem a tese de que, para um bom filme, é preciso ter uma grande trama — chamada de plot — que se monta a partir de outras tantas pequenas tramas — os sub-plots. Reima segue este caminho. Há duas tramas básicas que têm a função de segurar o enredo: a suspeita de Rodapé de que está contaminado pelo HIV e a perspectiva de guerra entre os marginais dos morros dos Prazeres e do Cerro Corá. No meio, uma seqüência de breves tramas, como o choque cultural de Boiô, a fatalidade de Seqüela, a sensualidade de Clara. O problema é que todo o final é bem previsível.
A verdade é que o autor descreveu o Rio de Janeiro dos noticiários, sempre violento, cheio de mulheres sensuais, machos perfeitos, sambistas, meninos de rua e sexo. No entanto, a leitura de escritores novos, como Rodrigo Lacerda e Marcelo Moutinho, mostra que a cidade está muito além dos morros e das areias de Ipanema. O Rio é uma cidade que, como qualquer cidade, não se limita ao estereótipo. As angústias e alegrias de sua gente já desconstruíram o folclore, como perceberam Machado de Assis e Marques Rebelo. Outros tantos, infelizmente, preferem a convencionalidade.
Narrador já de longo curso e com capacidade intelectual indiscutível, Dau Bastos errou ao preferir a facilidade, ao se postar entre Cassandra Rios e Paulo Coelho. Sua presença na literatura brasileira se dá em outro patamar, em um nível que se rebaixa com este fraco Reima.