Com Terras baixas, de Joseph O’Neill, a cidade de Nova York ganhou um de seus cronistas mais atentos à diversidade cultural das ruas, e os Estados Unidos, o romance que melhor define o Zeitgeist pós-11 de Setembro. A despeito disso, o objeto da trama é comum a qualquer cidadão que vive numa grande metrópole. “Pertencimento”, a saber, um conjunto de regras e conveniências que nos conectam às pessoas e aos lugares, em relações pautadas por instabilidades e perspectivas miúdas.
Outros autores exploraram — ou exorcizaram — a experiência da “guerra ao terror” que se seguiu aos ataques ao World Trade Center. Don Delillo (Homem em queda) e Ian McEwan (Sábado), por exemplo, ou Colum McCann, no recente e inédito no Brasil Let the great world spin. Poucos, porém, encontraram metáfora mais precisa que O’Neill com o jogo de críquete, cheio de nuances e de popularidade “zero” entre os americanos. O esporte de tradição européia se torna, em Nova York, uma atividade exercida por imigrantes e, mais que isso, uma promessa de harmonia, num mundo despedaçado pelo avesso da globalização.
O olhar estrangeiro que proporciona esse efeito peculiar à obra é autêntico. Nascido na Irlanda, de ascendência turca e irlandesa, O’Neill passou a infância entre Moçambique, Irã e Turquia. Na juventude, morou na Holanda e depois estudou Direito na Inglaterra, antes de se estabelecer com a família em Nova York para escrever romances. Publicou duas ficções e um livro de memórias, até ser consagrado com Terras baixas, vencedor do PEN/Faulkner Award 2009 e best-seller instantâneo por conta de uma recomendação do presidente Barack Obama.
O romance começa com o protagonista, o executivo holandês Hans van den Brock, recebendo uma ligação em Londres de uma repórter do New York Times. Ela relata o assassinato do amigo Chuck Ramkissoon, cujo corpo foi encontrado algemado no canal do Brooklyn. O enredo se desenvolve a partir das memórias de Hans no período passado nos Estados Unidos e que coincidiram com a queda das Torres Gêmeas em 2001.
A aparente simplicidade narrativa é um engano que oculta um escritor em pleno domínio técnico e estilístico. Isso fica claro na intrincada rede de idas e vindas entre os anos em Nova York até o retorno a Londres (1998 a 2003) e a morte de Chuck, em 2006, entremeada de recordações de viagens de Hans com a família e sua infância na Holanda. O interessante é como o autor costura tudo isso sem que o leitor se perca no meio do caminho.
Aftermath
Há duas histórias principais que se cruzam. Na primeira, o foco é a relação de Hans com sua mulher, Rachel, e o filho Jacke. Hans é um analista financeiro bem sucedido que trabalha em um banco de corretagem. Ele e a mulher, advogada inglesa, se mudam de Londres para os Estados Unidos a trabalho. Após os ataques, o casal é desalojado do loft em Tribeca, onde moravam, e passam a viver no Chelsea Hotel. É quando a ansiedade provocada pela tragédia — ou o estado de euforia e entusiasmo pós-apocalipse, segundo o autor — evidencia diferenças que levam Rachel a abandonar o marido para ir morar com os pais na capital inglesa.
A justificativa de Rachel é política: ela se recusa a criar o filho num país “ideologicamente enfermo” sob o governo de George W. Bush (será esse o discurso que fisgou Obama?). Hans, ao contrário, sente-se completamente apático frente às discussões públicas que antecedem a invasão do Iraque tanto quanto em conversas íntimas com a mulher. Ele descreve a si próprio como um “observador neutro” e um “idiota ético-político”, que sofria de um desânimo comparável à paralisia que se apossa das pessoas nos sonhos.
A partida de Rachel, entretanto, é uma fuga de um casamento monótono, sem novidades. “Cansaço: se havia um sintoma constante da doença que acometia nossas vidas nessa época, era o cansaço. No trabalho, éramos infatigáveis: em casa, o menor gesto de vivacidade estava além de nossas forças.”
Rejeitado, sem mulher ou amigos, Hans convive com os estranhos hóspedes do Chelsea. Entre eles, um jovem turco chamado Mehmet Taspinar, que se veste de anjo. Na rotina entre o trabalho em Nova York e viagens a Londres para ver o filho e tentar reconquistar a esposa, ele encontra uma ocupação ao descobrir jogadores de críquete em um campo mais ou menos improvisado no Randolph Walker Park, em Staten Island.
Underground
O segundo fio narrativo de Terras baixas é a relação de Hans com Chuck Ramkissoon, um carismático empresário de Trinidad e Tobago envolvido com negócios suspeitos. Eles se encontram pela primeira vez em agosto de 2002 num jogo de críquete em que Chuck atuava como árbitro independente. O críquete, descrito em minúcias técnicas por O’Neill ao longo da obra, torna-se o elo entre duas personalidades distintas. Enquanto Hans é indiferente e sem viço, Chuck é estimulante e sonhador, uma versão contemporânea de O grande Gatsby, de Fitzgerald. Segundo o escritor irlandês, “um homem animadamente operando no modo subjuntivo”.
Mais que isso, o críquete é uma imagem da América pós-colonialista. Hans é o único branco entre jogadores naturais da Índia, Paquistão, Sri Lanka, Trinidad, Guiana e Jamaica. No campo irregular para partidas do complexo esporte, no entanto, ele se torna mais um “estrangeiro”. Como diz Chuck: “Quer saber qual é a sensação de ser preto neste país? Vista o uniforme branco do criqueteiro. Põe branco para se sentir preto”.
Outra América aos poucos se desvela na amizade entre o executivo holandês e o negociante trindadense. Ocorre que Hans precisa fazer um exame para tirar carta de motorista americana e o amigo se oferece para dar aulas em seu Cadillac 1996, enfeitado de banners da bandeira norte-americana. Ao mesmo tempo, o protagonista acaba servindo de chofer para Chuck e se aventura pelos submundos do Brooklyn. Os negócios envolvem uma empresa lícita no ramo imobiliário, em sociedade com um judeu russo, Mike Abelsky, e uma loteria clandestina notória em Trinidad, chamada weh-weh. Chuck possui também dois aparelhos celulares e duas mulheres, representando sua vida dupla.
Alguns dos melhores exemplos da prosa de O’Neill, simples mas pontuada de imagens criativas e poderosas, emergem destas viagens às sombras nova-iorquinas. Como nessa descoberta de uma metrópole áspera, fria e inóspita, em que esmaece a referência literal aos Países Baixos que dá título ao livro:
E foi assim, em um estado de desamparo raivoso, em que pus os pés na obscuridade invertida da tarde. Ali parado, atordoado com o fluxo de pedestres saindo da Herald Square e com as amalucadas faixas diagonais do trânsito e com as poças aparentemente sem fundo nas sarjetas, fui tomado pela primeira vez por um nauseante senso de América, minha cintilante terra de adoção, subjugado pelo funcionamento secreto de forças injustas, indiferentes. Os táxis com sua película de umidade, sibilando na neve semi-derretida, reluziam como tangerinas; mas se você olhasse abaixo, no vão entre a rua e os chassis, onde a matéria gelada cola nos tubos e a água escorre pelos protetores de lama dos pneus, veria uma sórdida escuridão mecânica.
Os encontros aos finais de semana terminam sempre em um terreno localizado numa antiga pista de taxiamento no bairro, onde Chuck planeja construir um clube e estádio de críquete com capacidade para 8 mil pessoas. O campo seria batizado como Bald Eagle Field (Campo da Águia-calva, símbolo dos Estados Unidos). No local, eles aparam a grama e um incrédulo Hans ouve os sonhos de unir os povos, mulçumanos, hindus e americanos, por meio do esporte. “Pense fantástico” é o lema de Chuck Ramkissoon, e tudo termina com um corpo boiando no canal.
Terras baixas é cheio de sutilezas em sua crítica à era Bush. Em dois momentos, o protagonista usa o Google Maps, e as passagens definem o tom da análise do autor. Primeiro, Hans vê no computador a casa em que a mulher e o filho vivem em Londres, após a separação, numa cena repleta de ternura. Na segunda vez, em Londres, usa a imagem de satélite para localizar o terreno que seria o estádio de críquete projetado pelo amigo. Ali não há nada, apenas o vazio de uma América invisível.