Não era só porque ele tinha cabelo branco e pele flácida, não. Adalberto não via mais sentido em continuar vivendo porque já havia sido privado de sentir cheiros e gostos, tivera as pernas paralisadas, um dos pés amputados, convivia com uma tosse crônica — fruto de seu amor pelo cigarro —, era praticamente surdo e não controlava muito bem suas necessidades fisiológicas. Inferno seria fichinha diante do que lhe sobrara. Logo ele, que sempre fora um apaixonado — pela vida, pelo mar, pelo filho e pelas mulheres —, condenado a ser apenas espectador de histórias alheias. Histórias, aliás, que ele mesmo inventava. Do alto de sua cadeira de rodas motorizada diariamente posicionada na varanda do apartamento com vista para o mar de Salvador, imaginava as belas vidas que teriam aquelas pessoas do outro lado da rua.
O protagonista do romance O momento mágico, estréia literária do médico soteropolitano Márcio Ribeiro Leite, sofre com a decrepitude de seu corpo de 88 anos. É um zumbi, pele e ossos que a dona morte esqueceu de levar. De vez em quando, ao observar o sol lambendo aquela água salgada e deixando tudo dourado, lembrava de sua própria vida. Bem ordinária, na verdade. Não fez nada de muito interessante. Sequer teve coragem ou disposição para aprender a surfar, apesar do desejo de domar as ondas, como o faziam todos os dias aqueles garotões sarados que ele admirava de longe. Teve três filhos: um homem e duas mulheres. O preferido, ainda muito novo, foi levado pelo mar — bem aquele que dividiam a bordo de um barquinho. As duas meninas que sobraram… Bem, ele não gostava muito das filhas. Acontece. Da mulher, Iracema, não gostava de lembrar. Ela já estava a sete palmos do chão havia muito. Mas não era por isso que a lembrança o incomodava. Era por culpa, mesmo. Fidelidade nunca foi seu forte. Experimentou todo o tipo de rabo-de-saia que passou por seu caminho. E — memória intacta, interessante! — lembrava delas todas, para seu desespero. Ter um harém mental e não poder fazer absolutamente nada a respeito era tortura chinesa. Foi por isso que, num estalo, decidiu que não ia passar dessa para melhor sem sentir pela última vez o gosto de uma mulher. Até foi ao calçadão, escolheu uma delas e levou para o apartamento. Mas não conseguiu fazer nada do que havia planejado. Pelo contrário. Ficou sem ar, desesperado e completamente roxo. Cereja do bolo, a puta lhe tacou alguma coisa pesada na cabeça e lhe roubou todo dinheiro.
A vida de Adalberto era mesmo um inferno. Por que não tinha morrido com a porrada na cabeça? A morte só podia estar de brincadeira! Então, o negócio seria desafiá-la. Como? Suicídio é complicado. Não é qualquer um que consegue dar cabo da própria existência. Deus podia não gostar. Mas, como não era, assim, um grande fiel, decidiu que ia se matar. Ele tinha esse direito. Não dizem por aí que há o livre-arbítrio? Então, ia escolher o caminho que quisesse. Tentou várias alternativas: inanição, tiro, queda livre pela janela do apartamento… Mas a morte não chegava. Nem mesmo por suas próprias mãos. Além de inválido, velho e infeliz, Adalberto era um suicida fracassado. Teria de esperar sua vez. Gostaria que fosse ao nascer do sol, quando o mar estivesse brilhando feito ouro. Se não morresse nesse cenário, pelo menos que as duas filhas respeitassem seu desejo de ser cremado e de ter suas cinzas espalhadas pelo mar, ao amanhecer.
Dignidade
O romance, que recebeu o Prêmio Sesc de Literatura de 2008, é resultado da experiência do médico com pacientes idosos — muitos deles terminais. Escrito em apenas dois meses, O momento mágico parte do seguinte questionamento: quando não há mais como viver com dignidade, ainda vale a pena continuar respirando, comendo bolachas, tomando banho? O que se passa na cabeça de alguém que não tem mais nenhuma perspectiva de felicidade? Felizmente, o livro não nos dá respostas ou lições de moral. O escritor preferiu se dedicar ao pensamento, às vezes confuso, de um homem que já não vê na passagem do tempo mais do que tique-taques intermináveis. Não há preocupação em justificar os desejos e ações de Adalberto. Isso não importa. O que importa é que aquele velho está completamente desprovido de dignidade e quer ter o direito de morrer.
Mais de uma hora se passou até que alguém viesse limpá-lo. Sentia toda a impotência de estar sobre um monte de merda, deslizar sobre ele, e nada poder fazer, a não ser esperar. Esperar que alguém o alcançasse em sua dignidade ferida, e fosse capaz de condoer-se a ponto de ajudá-lo. Aquele lugar ensinava-o a virtude da resignação, pois, quando a impotência supera todos os limites, é a única coisa que resta.
O momento mágico provavelmente seria mais contundente se se estruturasse como uma novela, muitíssimo mais curta. O fôlego necessário para um romance é pequeno. O final é totalmente previsível. Ainda falta um pouco de traquejo para o escritor baiano. A escrita é regular, sem muitos sobressaltos, mas o texto poderia correr mais suave, sem buracos. Como quando passamos por lombadas na estrada, somos lembrados a todo instante que: Alberto tem 88 anos; o filho preferido morreu; ele acha que a morte o esqueceu; o corpo dele é decrépito e flácido; ele ama o mar; na frente do apartamento dele há uma baiana vendedora de acarajés, uma floricultura e surfistas; ele nunca aprendeu a surfar; ele acha que a melhor parte do dia é o amanhecer, quando o sol tinge o mar de dourado; as filhas dele são chatas; ele quer morrer; ele quer ser cremado e jogado no mar. É visível a preocupação em colocar o leitor na pele do velho. Ao ler uma e outra e uma terceira vez o mesmo pensamento, a mesma vontade mórbida de se encontrar com o filho afogado, sentimos na pele o tédio, o desprazer e a angústia daquele homem. De que o leitor vai querer que Adalberto morra — e logo —, não há dúvidas. O problema é distinguir se ele quer que o velho seja levado por Caronte por se condoer e compreender sua situação ou porque está cansado da ladainha.