Não se compreende, não faz nenhum sentido que pelo menos uma parte das 1.064 páginas (digitadas de um só lado, em três cadernos) do Diário do pintor Francisco Brennand permaneça nadando no mar da indiferença dos editores brasileiros.
Essas páginas contêm observações do artista sobre a vida, a pintura, a literatura, etc. — desde o dia 10 de janeiro de 1949, no Rio de Janeiro, quando Brennand estava à espera de embarcar no navio Alcântara, rumo a Paris. O conjunto total das anotações — de toda ordem — progride até 11 de junho de 1999, data de aniversário do pintor-escritor. Na época, ele achou conveniente “parar de escrever, pois naquela data completava 50 anos de Diário”. Entretanto, dados os acontecimentos a partir de 2001 (entrada do terceiro milênio), percebi a necessidade de ainda esclarecer uma centena de coisas que me afligiam, mais diretas e menos literárias, é verdade. Cheguei a optar pela ficção, para dar vazão àquilo que muito justamente me indignava. De certo modo, como você costuma fazer — na sua boa literatura —, dando os nomes aos bois…
Nossos editores, historicamente, sempre alegaram cumprir, na profissão, uma espécie de “sacerdócio cultural”, desde os velhos José Olympio, Álvaro Machado e outros, até os atuais donos dos selos mais importantes, hoje impregnados de um pragmatismo, digamos, que ainda não dispensa, mesmo nos tempos pragmatíssimos que correm, as tinturas ou o rouge de um resquício daquele “mecenato” alegado pelos fundadores das nossas casas editoriais mais antigas.
Porém, será que as anotações desse escritor de primeira água que é Brennand (83 anos) — nosso mais importante pintor vivo — precisariam de uma ação no plano do “mecenato”, para virem à luz, editorialmente falando? Sabem, os nossos editores menos e mais “sacerdotes” (ainda), do que se trata, não só em termos de memorialística, esse vasto Diário? Ou, enfim, o que significaria publicar os escritos de Francisco de Paula Coimbra de Almeida Brennand?
Não importa que, muito recentemente, ele tenha quase ironizado o assunto: “É claro que me lisonjeia a idéia de publicação ao menos de parte dos três cadernos, embora, por conta de minhas confusões anteriores, jamais estivesse convicto da real necessidade dessa edição, desse ato de expor uma vida para o grande público”…
Apresentaremos fragmentos dessa parte “ficcional” do Diário de FB nos próximos meses, neste Fora de Seqüência especial em que se oferece uma amostra, apenas, daquilo que os editores brasileiros estão deixando passar debaixo dos seus narizes de muitos faros (alguns dos quais levados para a Feira de Frankfurt anualmente, em busca de autores europeus de importância altamente duvidosa).
Velhinhos e meninos do mercado editorial tupiniquim, é mais ou menos isso — na parte francesa das 1.064 páginas — o que vosmicês estão “perdendo”:
Paris, começo do inverno de 1951
Nós fomos um diálogo.
Hölderlin
No catálogo de uma exposição de Balthus no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, coloquei numa página em branco uma reprodução em cores do La leçon de guitare (1934). Essa pintura realizada pouco tempo depois da primeira versão de La rue e de La toilette de Cathy, ambas de 1933, é uma das menos conhecidas do pintor, em face do erotismo, mais que explícito, de sua figuração que, de uma certa maneira, torna proibitivo o seu registro. O próprio artista reconhece a natureza equívoca deste quadro, e, segundo me disseram, tentou destruí-lo, não o fazendo, porém, devido à sua precipitada venda a um anônimo colecionador americano, que, pasmem os incrédulos, depois de alguns anos foi descoberto como o grande crítico James Thrall Soby. Inclusive, já conhecia um dos inúmeros desenhos preparatórios reservados para a execução definitiva da pintura (publicado na revista Voir, em 1948) e posso dizer que este desenho é — sob todos os aspectos — mais terrível ainda do que o quadro. Veio-me à lembrança abordar este assunto pela enorme similitude da expressão facial (rictus) da “eventual professora” de guitarra (que manipula sexualmente sua ainda impúbere discípula) com as figuras só aparentemente risonhas, de Leonardo: aquele mesmo “insondável sorriso unido a algum funesto presságio”, de que nos fala Pater. Na sua expressão pervertida, a manipuladora parece retirar um especial prazer em conduzir (estranha orquestra!) a sua vítima, instrumentalizada, por mãos ávidas e dedos velozes, até o orgasmo final. A pintura revela (e o desenho, mais ainda) o supremo interesse desse rictus, como máscara adequada aos condutores do êxtase. Perdoem-me a interpretação, mas este obscuro sorriso é leonardesco até a medula… E, certamente, o velho bruxo o aprovaria.
As notas parisienses começam a escassear, embora mantenham ainda um sem número de pequenos lembretes. As noites insones em perseguição da pintura, o fervoroso empenho de acertar com aquilo que Gauguin aconselhava: (“o principal é saber se estamos no bom caminho…”), os nomes de quadros, registros de leituras, dúvidas e até revolta contra algumas opiniões de Lhote — como bom francês — sempre excessivamente cartesianas.
Em outras anotações, insossos relatos de passeios nos arredores de Paris, Bougival, os encantos do rio Sena e às vezes — só muito raramente — as tentativas de falar sobre a nossa situação emotiva. A distância e a separação da nossa pequena filha, que ficara no Brasil, era propiciadora de amplos tormentos, sobretudo em Deborah, bastante mais acentuados nela do que em mim.
Os raríssimos encontros com os bons amigos, amizades que devemos muito mais ao espírito social e solidário de Aloísio Magalhães do que propriamente à nossa sempre canhestra iniciativa de nos aproximar de pessoas estranhas… Devemos, portanto, ao Aloísio, o conhecimento do jovem físico Carlos de Lira, do designer Geraldo de Barros, de Leda e também de Radha Abramo (estudantes de arte) e Paulo Emílio Sales Gomes, ligado à cinemateca de Paris, do lendário Paulo Carneiro. Enfim, era este o círculo das relações de Aloísio de que ele, certamente, nos supondo isolados, tentava nos aproximar. Creio que os poucos que chegaram até ao meu atelier (ex-Picabia) devem ter, no mínimo, se surpreendido de que alguém pudesse viver em Paris, naqueles tempos, num tal isolamento. Até o excelente Baltazar da Câmara temia pela nossa sobrevivência e por várias vezes tentou catequizar Deborah para que se insurgisse contra uma tão insólita situação. Suponho que o mais surpreendido de todos seria eu, se algum dia minha mulher resolvesse escrever as suas memórias ou, se mesmo na época, secretamente, mantivesse um diário e falasse na sua versão dos fatos, enfim, revelando tão e simplesmente a sua quase crucificação…
Os dias caminhavam, as árvores perdiam as suas folhas, e o frio reinava por toda a parte. No interior do antigo atelier de Francis Picabia não existia lareira — luxo de gente rica. Resolvemos, sem consultar a concierge, acender o velho aquecedor de ferro fundido. Monsieur Bousquet, o marido da velhota, já havia consertado todos os condutos que levavam à chaminé, e, segundo o que pensamos, era o bastante para iniciarmos o ritual do fogo: acender no atelier a nossa fogueira particular.
Éramos “marinheiros de primeira viagem” e nada entendíamos de limpadores de chaminés, a não ser nos contos de Dickens e nos filmes cômicos americanos. No ano de 1949, chegamos a Paris no mês de fevereiro, portanto, em pleno inverno, mas acontece que atravessamos os períodos mais rigorosos num hotel, com calefação central e todas as comodidades modernas, daí porque idealizamos o frio; não sabíamos em profundidade o que era o frio. O vento gelado vindo do leste, o mistério das endiabradas “courant d’air”, que tanto assustava os franceses, as camas igualmente geladas, os cobertores e agasalhos insuficientes e, para completar, no começo das manhãs, a água gelada nas torneiras, anunciando no seu choque diário que a vida recomeça ou deve recomeçar. E deve recomeçar no frio. Não tínhamos, portanto, por onde apelar. Urgia corrigir o frio com o calor do fogo, e assim foi que, sem o saber, empreendemos nossa primeira aventura. O fogo não pegava de jeito nenhum, mesmo diante de toda a ortodoxia empregada correspondente aos iniciais conselhos da concierge. Queimamos todos os gravetos disponíveis, apenas para verificar que não havia nenhuma tiragem na chaminé. Uma nova carga de gravetos surtiu melhor efeito, e o fogo rugiu no velho aquecedor; enfim, chegara o momento de colocar as simpáticas bolas de carvão em seu interior, e assim o fizemos. Para nossa surpresa, também o carvão comportou-se como devia, e logo meia-hora depois todo o atelier parecia aquecido. Era particularmente agradável ficar nas imediações do velho fogão, sentindo as suas ardências, quando, de repente, o quarto encheu-se de fumaça, como se não houvesse chaminé alguma para sugá-la. Abrimos, às pressas, a janela que dava para a Rua de Chateaubriand e a porta de entrada para fazer circular a fumaça. E, de fato, ela foi embora. Mas o frio e o vento gelado não nos permitiram esse luxo por muito tempo.
Novamente o fogo mostrou-se instável, para logo em seguida resfolegar e atirar cortinas de fumaça negra dentro do atelier. Eu não entendia de poêle, mas nascera praticamente dentro de uma cerâmica, não ignorando, portanto, o que vem a ser um forno e a indispensável complementação de uma chaminé. Um não podia existir sem o outro. Qualquer dona de casa ou cozinheira conhece esse mecanismo. A essa altura me preocupava com os vizinhos, pois a fumaceira que descia escada a baixo me fez descerrar a porta do andar térreo, justamente aquela que dava para o pátio, comum a todos os moradores. Esperava encabulado que a qualquer momento aparecessem bombeiros e curiosos para debelar um começo de “incêndio” na casa dos brasileiros.
Retornei ao serviço pesado, o rosto, mãos e roupas recobertos de fuligem, lembrando um desatento personagem de comédia. O fogo mais uma vez manteve-se estável e isto me animou a prosseguir em novas tentativas. Já não havia fumaça, mas estranhamente notei que minha mulher parou de ajudar (ela sempre tão ativa), mantendo-se sentada à distância, numa atitude entre sonolenta e sonhadora. Perguntei-lhe se estava bem e ela com voz sumida disse que sim. Depois, levantou-se, dirigiu-se para a cama, onde permaneceu sentada na mesma atitude, indiferente. Parei o trabalho e, supondo que tudo aquilo não passava de cansaço, ajudei-a a deitar-se o mais comodamente possível, puxando a coberta e agasalhando-a como se fosse para dormir. Ora, ainda nem ao menos havíamos jantado e aquele sono repentino de Deborah começava a afligir-me e intrigar-me. Note-se que não foi por muito tempo, porque eu também demonstrava repentinamente carregar nas costas ou na altura do pescoço um peso de pelo menos cem quilos, com olhos lacrimejantes, gestos que se faziam cada vez mais lentos e um caminhar desigual — pernas muito abertas — lembrando aquele de certos marinheiros no momento da tempestade. Eu também estava prestes a desabar. Foi a minha vez de sentar-me na cadeira, amortecido por um vago torpor que não me atingia ainda a consciência, mas, seguramente, para quem me observasse de fora, me tomaria por um sonâmbulo ou por um ator que, representando gestos em câmara lenta, exagerava no seu papel.