Desde J. D. Salinger não surgia escritor mais excêntrico, recluso e enigmático do que Juan Uranga. Como Salinger, e o nosso Dalton Trevisan, Uranga não dá entrevistas, não se deixa fotografar (aliás, não se conhece foto sua) e sequer há certeza sobre a cidade ou país onde mora. O pouco que se sabe dele é por informações de terceiros.
O agora chamado Caso Uranga começou quando há pouco mais de um ano o escritor e tradutor brasileiro Mauro Saldina bateu às portas da prestigiosa editora Usina de Letras, de São Paulo, tendo debaixo do braço os originais de um livro de contos de Uranga, intitulado “Alma das pedras”, que, segundo disse, acabara de traduzir do espanhol. Saldina contou na ocasião a seguinte história: fora procurado em 2007 em casa, depois de um telefonema solicitando a visita, por um homem de fala espanhola, de nome Montanaro, provavelmente, pelo sotaque, colombiano ou mexicano.
— Vim procurá-lo, aproveitando esta viagem ao Brasil, a pedido de um amigo, o grande escritor Juan Uranga — disse Montanaro, sentado no sofá de Saldina — Ele gostaria que você traduzisse o seu livro de contos, que está prestes a ser publicado no México e que no momento está sendo traduzido na França.
— Juan Uranga? Nunca ouvi falar.
— Não me surpreende — contrapôs Montanaro — Uranga é um recluso, que devota ódio feroz ao exibicionismo e superficialidade da nossa sociedade de consumo, à indústria de fabricação de celebridades instantâneas, para consumo descartável das massas alienadas. Despreza em especial, e com todas as forças, a feira de vaidades e favores mútuos a que se dá o nome de mundo literário. Não tem agentes, nem blog na internet. Aliás, recusa-se a ter computador, cabeça dura escreve numa velha maquina Remington elétrica de décadas passadas. E quando falei que iria inserir verbete a seu respeito na Wikipedia, respondeu prontamente que isso me custaria a sua amizade. Portanto, é um autor fora do mainstream, embora dotado de grande imaginação e que escreve lindamente, como você poderá constatar.
— Mas como ele me conhece?
— Ele leu as traduções que você fez de alguns contos de autores de fala hispânica, como Leopoldo Lugones, Horacio Quiroga e Augusto Monterroso, e gostou muito. Comprou então por via postal o romance e o livro de contos que você publicou e encontrou identidades entre a literatura de ambos. Ele me disse que gosta sempre de ser traduzido por outro escritor. E com quem sinta afinidade.
— Mas ele sabe português?
— Uranga morou dez anos no Brasil. Fala fluentemente sete idiomas, além de ter boas noções de latim, grego, árabe e japonês.
E foi então que Mauro Saldina municiou-se de algumas informações sobre o autor. Filho de pai espanhol e mãe venezuelana, sendo ela por sua vez filha de alemão com portuguesa, Uranga nasceu no México e passou a infância e juventude fazendo do mundo a sua casa, por causa do trabalho do pai, engenheiro de petróleo. Viveu no país natal, na Argentina, nos Estados Unidos, na Indonésia, na Inglaterra, no Oriente Médio, na África. Na meia idade, percorreu o Brasil de ponta a ponta, acabando por se fixar em São Paulo durante dez anos, cenário de alguns de seus contos. Mudou-se depois para Barcelona, passou longas temporadas em Paris, em Houston e Austin, no Texas, de lá se mandou para a Colômbia, sobrevivendo como tradutor e professor de idiomas. Cigano sem paradeiro certo, já na metade de seus sessenta anos, divide-se hoje, na maior parte do tempo, entre a Colômbia e o México, vivendo em cidades do interior, como Cartagena e Cuernavaca. Devido à vida errante, não formou o que se costuma chamar de “velhos amigos” e ao que parece não teve filhos. Decorrência da vida móvel, sofre de um profundo sentimento de desenraizamento, que procura combater bebendo uísque um pouquinho a mais do que deveria. Cidadão do mundo, arrepia-se com sentimentos xenófobos e nacionalistas. Socialista de leve matiz anarquista, despreza a burguesia e sua voracidade cumulativa. Mas ao contrário do que se poderia pensar está longe de ser um misantropo mal-humorado. Canta, toca violão, gosta de dançar e de festas, ainda que necessite também de períodos de silêncio e isolamento. Aprecia futebol, pela estética do jogo: recusa-se a torcer por qualquer equipe, alegando não gostar de nenhum tipo de religião. Leitor voraz, consome o que lhe cai nas mãos, gosta tanto de Borges quanto de Rulfo, e sua descoberta mais recente são os autores africanos, que acredita cheios de vitalidade, como seus países, em oposição a um, segundo ele, estéril cerebralismo europeu. Seus amigos são gente do povo, motoristas, porteiros de hotel, professores, garçons, músicos populares; aliás, embora raramente fale de si, Uranga deixou escapar que em diferentes épocas exerceu ofícios proletários para sobreviver: foi por curtos períodos carregador de malas num hotel londrino, lavador de pratos em Berlim, motorista particular na Cidade do México e músico de rua no Rio de Janeiro. Embora escreva desde jovem, só recentemente decidiu-se a publicar um livro, quase por imposição de seus poucos amigos educados. Atualmente Uranga conclui seu primeiro romance, com o título provisório de “El caminante”.
Mauro Saldina então pediu a Montanaro, conforme contou aos editores da Usina de Letras, para ler as dez primeiras linhas de seis dos 14 contos, escolhidos aleatoriamente; finda a tarefa, declarou que aceitava a tradução e, depois dela, o encargo de oferecê-la a alguma editora brasileira. Montanaro sorriu:
— Já contava com isso. Aqui está uma procuração de Juan Solis Uranga, dando-lhe plenos poderes para representá-lo no Brasil, inclusive para o efeito de recebimento de direitos autorais — disse, puxando do bolso um papel com carimbos e estampilhas. Deixou também a anotação do número de uma conta bancária e de um telefone para contato, ficando Saldina proibido de repassá-lo a quem quer que seja, não importa a alegação. Uranga defende sua privacidade como um leão.
O resto é sabido. O livro conseguiu boas resenhas nos principais jornais, revistas e suplementos literários brasileiros, que dedicaram ainda um razoável espaço para conjecturas sobre o misterioso escritor apátrida. Mauro Saldina teve de repetir a mesma história a algumas dezenas de jornalistas, não esquecendo de mencionar nas entrevistas o trabalho que lhe deu a tradução, por ter de encontrar correspondências em português para expressões da linguagem coloquial, que o autor curiosamente mescla com uma linguagem elaborada, “de recorte clássico, quase tradicional”, como observou um crítico. De modo geral, salvo um ou dois reparos, a tradução foi bastante elogiada. Em alguns meses “A alma das pedras” vendeu 8 mil exemplares, número considerado excelente para um livro de contos, num país que lê tão pouco.
A pressão para que Uranga viesse ao Brasil aumentou, até que Saldina anunciou em meados do ano que o escritor, contrariando seus hábitos, concordara em participar da Bienal do Livro do Rio de Janeiro, no final do ano. Um frisson percorreu as redações, ante a expectativa de se decifrar a esfinge e ver o monstro de perto. Por isso, a frustração foi muito grande quando, no início de outubro, o escritor divulgou nota em que afirmava: “Depois de muito ponderar, decidi que seria mais útil para mim e, quem sabe, para os leitores e a literatura, ficar em meu canto escrevendo, ao invés de me deslocar milhares de quilômetros para despejar nos ouvidos alheios uma suposta sabedoria, de que não me sinto detentor. O que penso da literatura deve estar expresso no que escrevo, não no que digo em tertúlias. Minha pessoa nada tem de especial e ninguém perderá muita coisa por não me conhecer. Ao contrário do que imagina boa parte dos leitores, os escritores são pessoas comuns, não raramente limitadas, exceto na vaidade — apenas são dotadas de um dom especial para a linguagem. Assim, embora hoje se considere que os autores devam ter também algo de um ator performático que encante platéias, acho mais prudente que os eventuais leitores formem de mim a imagem que lhes aprouver, sem terem de correr o risco de uma decepção.”
O recuo de Uranga provocou algumas reações indignadas e o editorial de um caderno de cultura mencionou que “alguns escritores cultivam o marketing do mistério, recusando-se a mostrar o rosto e a ter uma vida pública, o que é direito seu; mas causa espécie esse tipo de atitude, já que o escritor, queira ou não, é uma figura pública e não deveria se recusar a um diálogo mais amplo com o seu público. No fundo, tudo soa como uma espécie de sensacionalismo ao avesso, autopromoção travestida de modéstia”. Mauro Saldina limitou-se a comentar que um redator de jornal que se preze não deveria usar uma expressão como “causa espécie”, poeirenta e que ninguém sabe exatamente o que significa.
Tudo teria terminado por aí se há quinze dias a poderosa revista semanal Panorama não tivesse vindo às bancas com um título interrogativo demolidor: “Caso Uranga: uma farsa literária?”. Há perguntas que valem por uma afirmação.
A matéria vinha ilustrada pela reprodução da capa do livro, por fotos de Mauro Saldina e de Carlos Mônaco, diretor editorial da Usina de Livros, e de um quadrado negro sobre o qual se recortava um ponto de interrogação, com a legenda: Juan Uranga.
Sustentava a revista ter recolhido evidências para denunciar Mauro Saldina como um impostor, ao inventar a figura de um escritor inexistente. Enviara um repórter a Cartagena, na Colômbia; por mais que vasculhasse os meios jornalísticos, artísticos e intelectuais, arquivos da Prefeitura e serviços de saúde, ele não foi capaz de encontrar traço do suposto Uranga. O correspondente na Cidade do México fez idêntico serviço em Cuernavaca, com o mesmo resultado. Varredura na internet acusou a presença de alguns Urangas em diferentes setores de atividade, nenhum Juan. As muitas editoras consultadas em Barcelona, Paris, Cidade do México, Bogotá e Buenos Aires disseram ignorar o autor ou qualquer obra sua em processo de tradução. “Como é possível, indagava a publicação, que alguém nos dias de hoje trafegue por tantos países, ao longo de tanto tempo, sem deixar nenhum rastro?” E desafiava Saldina a apresentar a edição espanhola dos contos e a informar o nome do tradutor que estaria vertendo o livro para o francês.
A revista foi além: contratou dois analistas de textos, dois acadêmicos respeitados, para uma comparação estilística entre os contos de Uranga e os dois livros publicados pelo próprio Mauro Saldina, um de contos, o outro um romance. Eles encontraram algumas inquietantes repetições de padrões semânticos e até mesmo temáticos, destacados pela revista num quadro em que frases de ambos apareciam lado a lado em itálico, sugerindo que aquelas frases poderiam ter sido escritas pela mesma pessoa, ainda que os estilos não fossem exatamente iguais, o de Uranga mais derramado, o de Saldina mais contido, de frases curtas. “Temos sérios motivos para crer que o livro atribuído ao autor estrangeiro na verdade não foi traduzido e sim escrito por Saldina”, afirmou Panorama.
O editor Carlos Mônaco se declarou sinceramente surpreso. “Não tínhamos motivo para desconfiar da história que Mauro Saldina nos contou, por ocasião do oferecimento dos originais, ainda que a achássemos de fato bizarra; mas a debitamos à excentricidade característica de alguns integrantes do mundo literário. Temos em nossos arquivos cópia da procuração em que Juan Solis Uranga nomeia Mauro Saldina seu representante no Brasil. Vamos submeter o documento a perícia, para descobrir se foi forjado. A Usina de Letras é uma editora séria, de prestígio consolidado e não nos prestaríamos a uma farsa. Se por ventura o público tiver sido enganado, nós também o fomos. E o autor da eventual ignomínia, se confirmada, responderá na Justiça pelos danos que possa ter causado à imagem da nossa empresa”.
Mas por que teria Mauro Saldina apresentado à praça como tradução um trabalho ficcional que na verdade é seu? Também para essa pergunta Panorama acreditava ter encontrado uma resposta.
“Na varredura que procedemos no trabalho literário de Saldina — que pode ser classificado como de boa qualidade, ainda que sem a centelha do que se convencionou chamar de gênio — e que incluiu artigos que publicou esparsamente e entrevistas que concedeu nos últimos vinte anos a um ou outro jornal, sempre na busca de alguma pista que pudesse esclarecer o mistério, nos deparamos com um artigo que publicou num suplemento literário de Curitiba, alguns meses depois da publicação de seu romance A fome do tigre, que teve escassa repercussão e vendeu até hoje, segundo apuramos, apenas 400 exemplares. Nele, nosso autor, num tom irônico, defende a tese choramingas, certamente sem fundamento, de que a nossa grande imprensa não se interessa de fato pela literatura sendo produzida no país, só tendo olhos para o que vem de fora. ‘Nossa grande mídia’ sustentava ele, ‘é na maior parte do tempo mera reprodutora de matrizes culturais, quase sempre importadas de fora (vide a importância concedida à transmissão todos os anos da festa do Oscar). Vivemos no capitalismo e reproduzir em escala é muito mais barato do que produzir conteúdos. É a lógica do sistema. Embora não possa, ou não ouse, confessar isso abertamente, ela está se lixando para a nossa pobre, em todos os sentidos, literatura brasileira. Na medida em que nós, ficcionistas brasileiros, vendemos em geral quinhentos, mil, três mil quando vamos bem, exemplares, na medida em que as tiragens são pequenas, insignificantes mesmo, em outras palavras, na medida em que a literatura sendo feita não tem relevância econômica, ela também deixa de interessar aos meios de comunicação. Qualquer jovem cantor ou instrumentista lançando seu CD tem quase garantido que seu trabalho será avaliado, seja positiva ou negativamente, num maior ou menor espaço; afinal, a indústria fonográfica tem peso. Já o que determina hoje se um ficcionista brasileiro terá direito à glória de uma resenha, se um trabalho que consumiu às vezes anos merecerá míseras, ainda assim valiosas, vinte ou pouco mais linhas de apreciação, são fatores insondáveis e absolutamente aleatórios, que nada têm a ver com mérito literário — bem, se tiver algum, melhor’”.
E a revista concluía: “Panorama está convencida: essa visão inteiramente divorciada da realidade, baseada em meras suposições subjetivas, foi que levou o relativamente jovem escritor brasileiro a apresentar o trabalho ficcional de sua autoria como sendo a tradução de um autor estrangeiro em vésperas de explodir no mercado internacional. Ele imaginou que por meio desse expediente baixo iria merecer da nossa mídia uma atenção que de outra forma seu livro não conseguiria. E tem de se reconhecer, conseguiu seu intento. Infelizmente à custa da ética, fazendo de bobos não só os críticos e jornalistas que lhe deram atenção, e sua editora, mas principalmente os leitores, as maiores vítimas desta fraude”.
Perseguido por repórteres de diferentes órgãos de comunicação, Mauro Saldina anunciou que não daria entrevista, limitando-se a lhes entregar nota lacônica, quase telegráfica:
“Não vou dar atenção a suposições e aleivosias. Tenho a consciência tranqüila, não cometi crime algum. Se alguém acha isso, prove: estou pronto a responder por meus atos. O resto é silêncio.”