Elogiemos os autores ousados

Em clássico do jornalismo literário, James Agee evita a indulgência ao retratar a vida de meeiros no Alabama dos anos 1930
James Rufus Agee, autor de “Elogiemos os homens ilustres”
01/03/2010

O lançamento de Elogiemos os homens ilustres é um claro sinal de que há hoje no Brasil um ambiente propício à apreciação de narrativas jornalísticas complexas, que escapam ao impressionismo sociológico superficial e nos ajudam a repensar tanto a filosofia quanto os métodos do jornalismo. Comparado com Hiroshima, A sangue frio, O segredo de Joe Gould e Na pior em Paris e Londres — os melhores títulos da coleção Jornalismo Literário, sem dúvida —, Elogiemos… é certamente o mais desafiador. O próprio coordenador da coleção, Matinas Suzuki Jr., que parece ter sofrido para produzir o posfácio, assumiu: “Sente-se uma hesitação formal: o livro parece não ter começo e não ter um fim”.

O que em princípio parecia “apenas” uma extensa reportagem extravagante sobre pobreza, ignorância e falência resultou numa perturbadora etnografia. Há um embate entre o jovem repórter culto residente em Nova York e “eles”, os meeiros brancos do Alabama, lugar tão distante da “nossa” sofisticação quanto o sol da lua; e o pano de fundo é a Grande Depressão, que afetou em cheio o sul dos Estados Unidos, principalmente.

Antes de tudo, é importante lembrar: 1) que a condição de miséria expressa no livro já existia nos EUA antes do Crash da Bolsa. Pior: ela continua a existir em outras partes do mundo; 2) a narrativa é precedida de 62 imagens estupendas do fotógrafo Walker Evans (1903-1975). Originalmente, as fotos não têm legendas, de propósito. Algumas imagens estiveram expostas no Masp, em São Paulo, no ano passado dentro de uma grande mostra sobre o trabalho de Evans.

Então, se você cair na armadilha de examinar Elogiemos… com base no presente do indicativo do jornalismo brasileiro (ou no que dizem por aí sobre “a literatura e o jornalismo”), você ficará tentado a dizer: “Mas que enrolação! E quanta mixórdia! Cadê o clássico, cadê?”. A forma atingida por Agee é tão engenhosa quanto confusa, e, claro, ela reflete o que o autor era: uma criatura extremamente agitada por dentro e por fora.

Vejam o que Evans escreveu na apresentação do livro (sob o título James Agee em 1936):

A fala, no fim, era seu grande traço distintivo. (…) Não se tratava de exibicionismo, e não era necessariamente fruto de uns tragos. O que estava por trás dela era a pura energia da imaginação. Que encontrava correspondência em sua energia física. (…) Muitas vezes você ficava com vontade de amordaçá-lo e amarrar uma caneta em sua mão. (…) No Alabama ele se viu possuído pelo trabalho, que o assoberbava dia e noite. Ele provavelmente não dormia. (…) No Alabama ele suava a se coçava com uma alegria profunda. (…) A rebeldia de Agee era irrefreável, autodestrutiva, profundamente ética, infinitamente penosa e, em última instância, inestimável.

O depoimento de Evans refere-se ao período em que conviveu com Agee no Alabama — julho e agosto de 1936 — a serviço da Fortune, revista que começou a circular logo depois do Crash e representava então o mainstream liberal do empresariado americano. A reportagem acabou não sendo publicada na revista, mas serviu de rascunho para o livro, que só conseguiu editora — a Houghton Mifflin — em 1941, mesmo assim com ressalvas (e por fim as vendas da primeira edição foram pífias: cerca de 600 exemplares).

Ética e moral
Além de certeiro, o depoimento de Evans mostra um Agee irrequieto e ambicioso. Dizem que ele era mesmo uma força da natureza, o protótipo das angústias americanas de então. A década de 1920 ficou conhecida como a Era do Jazz, com suas músicas “amalucadas” e seus indivíduos excêntricos à maneira de alguns personagens de Scott Fitzgerald (incluindo ele mesmo e a sua mulher, Zelda). Mas a farra terminou numa quinta-feira de setembro de 1929 com a falência da Bolsa de Nova York.

Na década seguinte, o índice de pobreza nos Estados Unidos era típico de “terceiro mundo”, e em parte por causa disso o país entrou num processo profundo de revisão de consciência. Era necessário desvendar, com ou sem o patrocínio do Poder Público, a “América dos norte-americanos”. John Steinbeck e John dos Passos, assim como muitos outros autores célebres da época, são também fruto daquele momento de realismo em que as mazelas sociais foram enfaticamente denunciadas.

Elogiemos… é uma das narrativas marcantes daquele contexto, e expressa como poucas as angústias em torno de temas como ética e moral. Seu tema central é, na verdade, a própria consciência do autor. Agee questiona seu papel como observador da “realidade”, o sentido do jornalismo, sua utilização, seu papel na sociedade, sua metodologia.

Quem, o quê, quando, onde e por quê (ou como) são o clichê essencial e o bem-estar do jornalismo: mas não quero parecer falar do jornalismo favoravelmente. Ainda não vi um artigo jornalístico que transmitisse mais que a mais exígua fração do que qualquer pessoa mesmo que apenas moderadamente reflexiva e sensível pretenderia e desejaria dizer com aquelas inatingíveis palavras, e mesmo essa fração nunca vi limpa de um ou outro grau de patente falsidade. (…) O sangue e o sêmen do jornalismo são uma ampla e bem-sucedida forma de mentir. Retire-se essa forma de mentira e não se tem mais jornalismo.

Somada a uma energia verbal incontornável, essa preocupação exacerbada consigo mesmo, sua profissão e seu tempo conduziu Agee a uma linguagem que esfacelava as referências básicas de comunicação jornalística então vigentes (não seria exato rotulá-lo como “hermético”, embora aceitável). O tempo todo ele se interroga também sobre os limites da expansão e da colocação do nosso olhar sobre as coisas animadas e inanimadas, e avisa-nos: “descrição é uma palavra de que se deve suspeitar”.

Sua habilidade com descrições (de geografias, objetos, feições, temperamentos, situações) é mesmo notável. No entanto, esse afã descritivo acabou reproduzindo o que ele próprio chamava de “ilusão de corporificação”. Agee confundia descrever com “decompor” ou “dissecar”. Daí ele se exaure:

O fracasso, de fato, é quase tão vigorosamente uma obrigação quanto é uma inevitabilidade em tal trabalho: e aí repousa a mais mortal das armadilhas da consciência exausta. (…) Dêem-me o nome de uma só verdade dentro do alcance do homem que não seja relativa e eu me sentirei um grau mais propenso a me desculpar por isso.

O mais desconcertante é que seu incrível approach ontológico amplifica tanto quanto diminui, reconhece tanto quanto nega a própria arquitetura verbal. Em algumas passagens tive a sensação de que estava em contato com uma obra contra si mesma, uma obra cujo objetivo é nos alertar para algo mais ou menos assim: “Estou tentando, pessoal, mas é impossível me desfazer da certeza de que a representação do real pela escrita é limitante e inútil”. Até parece que estou resenhando um ensaio e não uma super-reportagem escrita com técnicas de romance, certo? Certo. Mas este é apenas um dos aspectos.

Dois James
Falemos então de Agee em campo (um “trabalho de campo” sólido seria a primeira instância definidora de uma boa reportagem de jornalismo literário). Primeiramente, qual era o projeto original de Agee/Evans? Abordar a Grande Depressão pela convivência com meeiros plantadores de algodão do Alabama. A escolha deles foi arbitrária, como toda escolha em jornalismo, aliás: focar três “famílias típicas” de colonos brancos, tendo os Gudger (que na verdade eram os Burroughs) em primeiro plano. “Não encontramos uma só família que estivesse plenamente representada na totalidade dos colonos daquela região”, Agee escreveu logo na primeira página.

Embora sua profusão verbal se sobreponha à “informação referencial” ao longo do livro, há momentos em que consegue ser aberto, claro e direto:

Gudger — uma família de seis — vive com uma ração de dez dólares por mês durante quatro meses do ano. Ele já viveu com oito, e com seis. Woods — uma família de seis — até este ano não conseguia mais que oito por mês durante o mesmo período; neste ano ele conseguiu elevar para dez. Rickets — uma família de nove — vive com dez dólares por mês durante o período desta primavera e começo do verão. Essa dívida é paga no outono com juros de 8%. Cobram-se 8% também no fertilizante e em todas as outras dívidas que os colonos contraem.

Este obstinado James, seguidor do outro James, o Joyce, viveu com essas famílias e penetrou em todas as instâncias do ser daquelas pessoas. Registrou seus olhares, o modo de caminhar e falar, de comer, vestir, dormir; as escolas e as igrejas que (não) freqüentavam; a maneira como plantavam, colhiam e sofriam; pensamentos em voz alta; a arquitetura, a casa, a mobília, os odores, os bichos, o clima etc. Ele acreditava que uma “inspeção total” o levaria a uma compreensão profunda e irrepetível, apesar das limitações epistemológicas que ele mesmo aponta.

Aí reside a principal qualidade desta obra que se pretende “artística”: Agee deu o máximo de si para evitar a complacência e a indulgência. Diferentemente de certos trabalhos de mestres do JL da primeira metade do século passado, Agee não idealiza seus personagens e tampouco explora-os com o intuito de vender ideologias, como fizeram John Reed e Jack London, por exemplo. Outros traços elogiáveis, e que tornam Elogiemos… um dos trabalhos de meta-reportagem mais ambiciosos e corajosos de que se tem notícia, são, repito, a investigação íntima e a linguagem.

Reconheço que, com os olhos de hoje, todas essas características podem ser vistas também como deméritos, conforme o ponto de vista. Independentemente disso, porém, Elogiemos… continua capaz de implodir as falsas verdades (e as mentiras verdadeiras) de sempre sobre o que o jornalismo é e não é. Marcos Faerman (1943-1999), repórter durante período áureo do Jornal da Tarde, nos anos 1970, perguntava-se: “Como ser jornalista sem ler James Agee?”. Pergunto eu: “É honesto continuar fazendo jornalismo do mesmo jeito depois de ler James Agee?”.

Elogiemos os homens ilustres
James Agee e Walker Evans
Trad.: Caetano Waldrigues Galindo
Companhia das Letras
520 págs.
James Rufus Agee
Repórter, ficcionista, poeta, roteirista e critico de cinema, nasceu em Knoxville, Tennesse, em 1909. Aos seis anos, perdeu o pai num acidente de carro e foi enviado para um colégio interno. Seu conselheiro na adolescência foi o pastor anglicano James Harold Flye. Apesar de mau estudante, ingressou na Universidade Harvard. Casou-se três vezes e teve quatro filhos. Em 1942, abandonou a reportagem para se dedicar à crítica cinematográfica nas revistas Time e Nation. Seu ótimo texto A grande era da comédia, de 1949, publicado originalmente na Life, foi reproduzido no número 2 da revista Serrote, do Instituto Moreira Salles. Morreu de infarto dentro de um táxi em maio de 1955, em Nova York. Seu romance autobiográfico A death in the family veio a público postumamente. O escritor Truman Capote, em entrevista na Paris Review, disse que incluiria James Agee em sua “lista ampliada” de escritores que o influenciaram.
Sergio Vilas-Boas

É escritor e jornalista. Autor de Perfis, entre outros.

Rascunho