— O Lourenço Mutarelli poderia ser homenageado por uma das escolas de samba de Curitiba, bem que poderia.
Estou na Avenida Cândido de Abreu. Você, leitor, leitora, percorre com os olhos um texto que foi feito, ou aconteceu, durante o final da tarde e o início da noite do dia 13 de fevereiro. Sábado de carnaval.
Quero um espeto. E uma cerveja.
Caminho por uma das laterais da passarela do samba de Curitiba. É uma noite só. Amanhã cedo, domingo dia 14, direi: “Esta noite foi o melhor presente de 2010 para mim, pelo menos até aqui”.
— Acho mesmo que uma dessas escolas de samba poderia homenagear o Mutarelli.
— Mas será?
— Claro que sim. Veja, coloca na comissão de frente uma múmia.
— Múmia?
— Do livro Miguel e os demônios.
— O que tem a ver a múmia?
— A múmia é o mistério, o rosebud ou o rififi do Mutarelli.
— Mas e o público iria entender?
— O público iria gostar.
— E?
— Uma múmia. Pronto. Daria uma alegoria bonita. E não tem esse negócio de entender. Tem que gostar.
— Pois é, gostar já é alguma coisa…
— Mas olhando isso, tenho a impressão de que o livro Miguel e os demônios daria um enredo bacana pra desfilar no carnaval de Curitiba.
— Por quê?
— Bom, pra começar, quem é você?
— Eu sou o Anti-Marcio.
— E isso existe?
— Pois você está falando comigo, muito prazer.
— Oi.
— Mas me conte…
— Ei, de onde você é?
— Do mundo…
— Desse?
— E importa?
— Bom…
— Fique tranqüilo, falávamos, você falava que Miguel e os demônios, do Mutarelli, poderia dar samba aqui em Curitiba…
— Acho que daria rock.
— Rock?
— Rock em pleno carnaval.
— Como?
— Sei lá, uma escola de samba poderia convidar as bandas da cidade, o Terminal Guadalupe, o Copacabana Club, o Bardot em Coma, e, com elas, fazer todo o desfile em homenagem ao Mutarelli.
— Você acha que…
— Veja, Miguel é um personagem repleto de problemas, como qualquer pessoa. Mas ele tem uns demônios, que são temas ao redor, que prendem a atenção, que tendem a…
— A segurar o leitor no livro, é isso, Marcio?
— Isso.
— E o que mais?
— Quer um gole de cerveja?
— Eu não bebo.
— Não?
— Eu sou o Anti-Marcio…
— Ah…
— Também não como carne…
— Bom, mas eu falava mesmo o quê?
— Do Miguel…
— É isso, lembrei. O protagonista do romance do Mutarelli é um policial que, durante o livro, tem toda a sua vida desmontada, desconstruída…
— Isso significa que se trata de um bom personagem?
— Sim. Ele se separa, passa a se relacionar com uma outra mulher, até que se apaixona loucamente por uma garota de programa.
— Bom, isso é até que comum…
— Não, não mesmo, porque a garota de programa é um travesti que tem ligações com uma sociedade secreta que existe desde a antiguidade…
— Ei, Marcio.
— O que foi?
— Você acha que esse enredo funcionaria na passarela do carnaval curitibano?
— Até demais.
— Mas como você iria fazer essa representação?
— Com alegorias, com o Miguel, com a ex-mulher, com a nova mulher, com o travesti, com a múmia, com elementos…
— Mas carnaval rima com alegria, não com isso que você está me contando…
— Ei, ainda não pensei em como representar na avenida o enredo do Mutarelli, mas isso eu penso depois…
— Depois?
— É, depois.
— Depois quando?
— Depois que eu terminar esse texto.
— Mas e o leitor, e a leitora do Rascunho?
— O que é que tem?
— Acho que eles esperam que você justifique, ainda neste texto, o porquê de dizer que o enredo do Mutarelli daria samba na avenida do carnaval curitibano.
— O livro fala sobre absurdos, e a vida, a realidade muitas vezes, se não sempre, é um absurdo.
— Você acredita mesmo nisso, Marcio?
— Não sei, mas é uma idéia.
— E esses que passam aí?
— Sensacionais.
— Mesmo?
— É bloco Rancho das Flores, tem até ambulância. É a turma da terceira idade…
— E aquele músico ali?
— É o Glauco Sölter, o baixista. Conhece?
— E quem não conhece o Glauco Sölter, Marcio?
— Pois é. Acho que todos conhecem.
— Escute: “Sai pra lá, mau humor/ Vem pra cá, alegria”.
— É a letra da canção “Água, vida e fantasia”, do Thadeu Wojciechowski e do Luiz Ferreira.
Marcio e Anti-Marcio caminham pela lateral direita da Cândido de Abreu. Marcio come espetinho de carne e bebe cerveja na lata. E dança. Anti-Marcio apenas caminha. Em uma rua perpendicular à Cândido de Abreu, há um palco com uma banda de rock que faz protesto contra o carnaval de Curitiba, contra a festa momesca, contra os excessos do consumo de bebida durante esse período.
— Sabe, Miguel e os demônios tem uma narrativa que não é convencional.
— E como é?
— Há blocos, cenas variadas. Em determinado momento, o narrador reproduz um esquema de roteiro, com marcas, sugerindo que há zoom, aproximação, e coisas do gênero…
— Você gostou, Marcio?
— Muito. Sabe, tem outra coisa…
— O que é?
— Ano passado, na noite de entrega do Prêmio Portugal Telecom de Literatura, em São Paulo, estive perto do Mutarelli…
— Falou com ele?
— Falei. Foi a noite do apagão, do mais recente. Eu disse que o livro dele provoca alucinações…
— Por quê?
— Por causa da tinta verde.
— Tinta verde?
— Em Miguel e os demônios, ao invés de preto, foi usada tinta verde para imprimir o livro…
— E isso te provocou…
— Eu li com luz de lâmpada amarela, numa madrugada…
— Então você leu faz tempo?
— Faz. E reli agora.
— E viu coisas?
— Vi muita coisa. Os livros do Mutarelli sempre me perturbam.
— De que maneira?
— Os personagens são perturbados, têm problemas, vivem cotidianos difíceis, e a atmosfera que ele cria me perturba…
— Isso é bom ou ruim, Marcio?
— Mais que bom, mais que ruim, é fato: perturba, provoca sensações…
— E você gosta?
— Me emociona. E gosto de texto que de uma maneira ou de outra me provoque alguma sensação forte…
— Você é viciado em sensações fortes?
— Sou.
— Eu sei disso, Marcio.
Marcio chega em uma barraca e tira uma nota de cinco reais e outra de dois reais. Paga sete reais por mais uma lata de cerveja e outro espetinho. Pega a lata e o espetinho e sai dançando, sorrindo e cantando. O Anti-Marcio apenas observa.
— O final do livro do Mutarelli é genial…
— Genial?
— Não vou contar, até por que gostaria que você lesse o livro…
— Eu ler? Não vai dar, Marcio. Já esqueceu? Sou o Anti-Marcio…
— Mas não vou contar.
— Por que não?
— Porque é um final que não pode ser resumido. Te dizer que foi assim, ou de outro jeito, seria reduzir demais uma cena que mostra como o ser humano se vinga, como o olho por olho e dente por dente é o motor humano…
— Você também pensa assim?
— Não sei mais o que penso, não tenho opinião, não tenho opiniões pra tudo…
— Eu sei, Marcio. Conheço muito você.
— Mas, me diga uma coisa…
— Até duas…
— Você vai ficar ao meu lado por quanto tempo?
— Apenas por essa noite.
— E depois?
— Vou embora.
— Pra sempre?
— Sim, pra sempre.
— Mas por que você veio justamente hoje?
— É que você, Marcio, durante muito tempo falou mal do Carnaval de Curitiba…
— É que eu não tinha voz, eu repetia o que outros falavam…
— Pois é, mas agora que você viu, gostou e sabe que é bom, que é realmente inventivo e autêntico, eu, o Anti-Marcio, decidi estar com você pra ver e sentir…
— E qual a sua opinião?
— Vou usar uma fala sua: “Não tenho opiniões pra tudo”.
— E sobre o livro do Mutarelli?
— Pelo que você me conta, é bom, deve ser bom…
— Mas é bom, mesmo.
— E que nota você daria pra ele?
— Pro livro?
— Sim, para Miguel e os demônios?
— Pelo enredo, pela quebra na linearidade, pelo diálogo com o cinema, pela recriação da realidade, pelas sacadas excelentes, pelos diálogos funcionais, pelo humor e pela brincadeira com a noção de autoria, pelo mistério sedutor, no mínimo, nota 10.