Filhos do sonho, do papel e da tinta

Em "Notas para a definição de um leitor ideal", Alberto Manguel traz reflexões sobre como a leitura ajuda o ser humano a ser um pouco menos idiota
Alberto Manguel, autor de “Notas para a definição de um leitor ideal”
01/07/2021

Ao longo da carreira, André Kertész (1894-1985), um dos maiores fotógrafos do século 20, capturou imagens de leitores em parques, ruas, telhados e estações de trem. Sentados, deitados, de pé, em qualquer canto, de todos os jeitos. O resultado foi o livro On reading (1971), em que essas figuras, ilhadas no próprio universo, compõem um maravilhoso retrato do ato de leitura, configurando uma espécie de poética do olhar — nossos olhos não se encontram, já que vemos os leitores, enquanto eles não nos olham, absortos na tarefa de fitar os livros.

Alberto Manguel vem praticando o mesmo gesto ao longo de sua prolífica trajetória: olhar sujeitos que leem, surpreendendo-os em sua prática, como na coletânea Notas para a definição de um leitor ideal. Mas aqui o crítico também se mira no espelho, outra forma de enquadrar uma imagem, à semelhança da fotografia de Kertész. Nessa moldura proposta, disserta sobre suas preferências e divide com os interlocutores amplo conhecimento: “Eu sempre quis ser leitor”, afirma. A declaração evidencia a condição de alguém que frui os textos, não de quem os escreve. Uma questão de perspectiva.

Mas, afinal, por que falar de leitura nesses 24 textos? Por mais que a literatura tenha perdido centralidade em um mundo dominado pela cultura audiovisual, pensar seu lugar hoje é de novo fundamental — a pandemia do coronavírus nos obrigou a olhar para dentro, e o convívio estreito com nós mesmos demandou a expansão de diversas formas de subjetividade, não somente pelas telas, também pelos textos. O aumento da busca por obras como A peste, 1984 ou Ensaio sobre a cegueira evidencia que a literatura nos amparou neste momento de profunda crise, mostrando um lugar específico de onde ver o mundo. Manguel, em sua estreita relação com o literário, faz mais uma vez valer essa equação entre leitura e experiência.

Relação essencial
Manguel lembra que há seis mil anos se iniciou nossa relação com a palavra escrita. Nos textos, vai de Platão a Pinóquio, de Alice à Bíblia, elencando preferências e estabelecendo diálogos com o passado. “Lemos os clássicos para darmos continuidade a uma linhagem de leitores ilustres”, sustenta. Ao pensar essas genealogias, coloca a leitura sempre em perspectiva, estabelecendo uma conversa com nossos ancestrais ao prolongar a conexão com todo esse rico repertório.

Como de hábito, o crítico identifica a imagem do leitor compulsivo, a fugir do mundo real. Para tal sujeito, a literatura é quase doença, uma entrada excessiva na ilusão, conforme já demostraram as figuras do Quixote, em sua relação com os romances de cavalaria, e Madame Bovary, com os romances sentimentais. Por outro lado, a literatura pode ser vista como tarefa de saúde, conforme apontado por Gilles Deleuze, que vê nessa atividade uma forma benéfica de vínculo com a vida. Manguel caminha nessa direção e pensa as ficções não como evasão, mas amizades “duradouras e necessárias”. Nesse ponto, coincide com a visão de Proust, que em breve ensaio aproxima amizade e leitura, afirmando que nunca estamos sozinhos, porque em tal atividade convivem comunicação e solidão.

Apesar da conhecida formulação do leitor como solitário, ele não estaria de modo algum desconectado da realidade. Manguel convoca uma questão fundamental, a de uma ética da leitura, como quando enfatiza o personagem do Quixote estreitamente relacionado com a honestidade moral e intelectual. O papel da literatura é também questionar o poder, realizando o que chama de “leituras guerreiras”: nesse momento entra em cena a pergunta
por onde andam os intelectuais, destacando a urgência e a importância de um posicionamento, já que essas figuras seriam testemunhas críticas do nosso tempo. “O que precisamos agora é de intelectuais engajados que digam em alto e bom som que estamos num rumo suicida”, afirma. Entre o falar e o calar, nos lembra que em certo sentido toda leitura é subversiva, em seu caráter de alerta.

Defesa da liberdade
Ainda que leitor apaixonado, o crítico não se coloca como arauto da verdade, de espada em riste contra os inimigos do literário e pela proteção dos leitores em um planeta onde a literatura está sob ameaça. Aqui não cabem dogmas, ideias totalizantes não fazem sentido, pois está em jogo a defesa da liberdade. Importa que “a arte de ler continue, que o livro perdure, que a literatura nos ajude a ser um pouco mais felizes e um pouco menos idiotas”. Para sermos menos idiotas, certamente se faz necessária a atenção ao uso deliberado das palavras que apenas fingem comunicar, estejam elas na política, nas redes sociais ou em outras formas de expressão.

E para sermos mais felizes certamente colabora o último texto do volume: as notas para a definição de um leitor ideal. Saborosas, configuram uma espécie de decálogo altamente libertador, sobretudo para nós, professores, críticos e pesquisadores, pois o autor sustenta que a literatura não depende de leitores ideais, mas apenas de “leitores suficientemente bons”. Ser suficientemente bom é abraçar sem medo a aventura de se lançar aos escritos sem a expectativa de uma leitura definitiva, ou de uma exegese que revire do avesso as tripas do texto, estabelecendo uma interpretação única. Leitores bons são leitores possíveis. E falíveis.

Manguel revela uma postura que ecoa a noção de caritas como valor a ser perseguido. Uma amostra disso é a formidável capacidade do autor de dar exemplos, materializando com generosidade pontos explorados de forma teórica. Vemos então surgir o referido entendimento amoroso sugerido por ele, como um bom professor que estende a mão para dividir com alegria o conhecimento. Desse modo, o saber fica mais perto, se multiplica.

Erudição e leveza
Vale pensar que o italiano Italo Calvino (1923-1985) e o argentino Ricardo Piglia (1941-2017) poderiam formar com Manguel uma espécie de trindade — todos pensaram a leitura com a virtude de aliar erudição e leveza. Além de pensar criticamente a figuração do leitor, os três escritores ressaltam, de diferentes formas, a questão fundamental do prazer: sem ele, tudo fica burocrático e árido. Lidos em conjunto (ou em contraponto) oferecem sólido caminho para indagar por que seguimos lendo, quem somos nós, e por que escolhemos a literatura.

Um dos motivos é que precisamos sobreviver, e se isso acontecer na companhia de bons livros, como ilustram as fotografias de Kertész, tanto melhor: “Mudarão certos instrumentos de escrita, mudarão certos modelos de leitura, mudarão certas técnicas editoriais, mas o ato literário não mudará em sua essência. Somos seres da palavra, nascemos com o dom da palavra, vivemos através da palavra, conhecemos e damos a conhecer nossa experiência pela palavra, e só quando morremos perdemos a palavra”. Nascer, viver e morrer surgem com força nessa declaração, lembrando a todos nós do ciclo inevitável da vida. Dentro dela, alguns gestos persistem, oferecendo um antídoto para suportar a dureza dos dias.

Notas para a definição de um leitor ideal
Alberto Manguel
Trad.: Rubia Goldoni e Sérgio Molina
Edições Sesc
168 págs.
Alberto Manguel
Nasceu em Buenos Aires, em 1948, e naturalizou-se canadense. Uma história da leitura (1997), Lendo imagens (2001), A biblioteca à noite (2006) e O leitor como metáfora: o viajante, a torre e a traça (2017) são alguns de seus livros. Vive no interior da França.
Stefania Chiarelli
 É doutora em Estudos de Literatura pela PUC-Rio e professora associada de Literatura Brasileira na UFF. Publicou o ensaio Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum e coorganizou coletâneas sobre literatura brasileira contemporânea. Sua publicação mais recente é Partilhar a língua – leituras do contemporâneo (7Letras, 2022).
Rascunho