Enérgica velhice

"Roubai-vos uns aos outros" mostra como os vícios podem prolongar uma vida
Antônio Carlos Resende, autor de “Roubai-vos uns aos outros”
01/04/2010

Imagino que, após certa idade — 80 anos, digamos —, a pessoa se considere um sobrevivente ao mundo. Ela deve olhar ao seu redor e ver que grande parte de seus amigos já foi ou está tão doente que seria melhor já ter ido, que seus filhos já não são mais apenas filhos, mas pais de seus netos, e que seus netos falam uma outra língua e vivem num planeta aparentemente diverso do seu. Acima de tudo, essa pessoa deve flertar com a morte quase todo dia. Acordar deve ser uma luta ainda maior, pois se, aos 20, a morte parece impossível, aos 40, uma possibilidade e, aos 60, uma probabilidade, aos 80, ela é uma certeza estatística. O que a vida reserva às pessoas dessa idade, que prazeres a motivam, o que as faz sair da cama e encarar o mundo?

No caso de Heleno, 81 anos, narrador do último trabalho de Antônio Carlos Resende, Roubai-vos uns aos outros, sua motivação é o jogo. Heleno é viciado na jogatina, principalmente nas cartas. Ao longo do livro, vamos descobrindo que ele: já foi casado com Clarissa, 75; há quatro décadas, mantém um caso com Graciana, cerca de 60; e quer ter um caso com Joana, 55, que encontra sempre que vai aos Jogadores Anônimos. Para ele, o jogo é mais que uma paixão, é razão de vida, “diminui o peso das dores e da solidão”.

Durante a primeira metade do livro, os leitores que não têm vícios vão achar Heleno altamente repugnante. Em primeiro lugar, ele é viciado em jogo, e ainda que o jogo patológico seja considerado uma doença psiquiátrica pela Organização Mundial da Saúde desde 1992 (não que ele não prejudicasse ninguém antes disso), quem não joga considera os jogadores patológicos fracos e egoístas. Heleno perdeu a mulher por conta do jogo e, com ela, deixou de viver muitos momentos simplesmente por não conseguir se afastar do pano verde. Seu primeiro pensamento sempre esteve nas cartas; depois, vinha o resto do planeta.

Além do vício do jogo, Heleno também se recusa a aceitar a decadência de seu corpo, assumindo uma postura quase priápica. Ele insiste em tomar injeções de testosterona, tem sempre à mão, para qualquer eventualidade, a pílula azul do milagre masculino, e está sempre correndo para encontrar tais eventualidades. Sua vida sexual não se parece com a daquele protótipo do senhor de 80 anos, que anda arqueado e arrastando os pés. O contraste dessa vontade de Heleno de manter-se macho e ativo é ainda mais evidente em seus diálogos com Ricardo, o amigo de infância tornado médico na vida adulta, e que o adverte contra os perigos do excesso de jogo, álcool e testosterona. Ricardo é o cidadão modelo, devotado à família e aos pobres, profissional bem-sucedido. Heleno é o vagabundo das farras e dos jogos, traidor da esposa, sem nenhuma motivação que não seus egoísmos particulares.

No entanto, à medida que lemos Roubai-vos uns aos outros, entendemos que Heleno não é diferente de ninguém, ou melhor, o que ele tem é até invejável: sede de viver e sede de emoções. Seu comportamento é muito diferente do de seus amigos da mesma idade, pois ele continua procurando emoções fortes, ele quer os sustos, e os risos, e os choros, e os corações disparados que só a vida intensa pode nos trazer. Nada de ficar em casa vendo televisão ou lamentando a passagem dos amigos queridos. Não, Heleno não quer ver a vida passar, mas ser participante e protagonista dela.

Vontade de viver
O que acompanhamos ao longo do livro de Resende é essa vontade de viver de um senhor de 81 anos. Em alguns momentos, fica meio difícil crer no apetite e no desempenho sexual de Heleno, bem como em sua energia ao rodar os buracos de jogo de sua cidade. Mas isso deve ser porque ninguém sabe o que é ter 80 anos até chegar lá. E Antônio Carlos Resende já os tem. Não sei se Heleno reflete, em alguma medida, a personalidade de Resende, mas como ambos têm a mesma idade, o autor deve saber o que acontece na cabeça de Heleno. Felizmente, Resende não dá nenhuma resposta pronta, e nos deixa a imaginar o que acontece com Heleno, que narra o romance.

A vontade enorme de viver de Heleno e seus efeitos sobre sua longevidade podem ser “comprovados” (pois não há comprovação certa, apenas uma suposição) por meio da comparação entre ele e seus colegas sobreviventes. Para estes, acontecem coisas que lhes tiram a vontade de viver, e a decadência se instala rapidamente. Não direi aqui o que acontece para não estragar o prazer do leitor, mas tenha certeza de uma coisa: a Heleno também acontecem coisas, mas ele ainda quer viver, nem que seja para jogar. No fim, o jogo não é o que lhe mata, mas o que lhe dá vida. Seu vício é ruim, ele sabe disso, mas sabe que precisa dele para viver. Enquanto seus amigos desistem da vida, Heleno se recria para continuar nela, pois tem ainda sede de emoções.

O autor é econômico no uso das palavras. Não há trechos sobrando, não há descrições além das necessárias, não há desvios na história de Heleno. Resende usa do poder da síntese, mas sem pular nada, para contar uma história que nos prende desde o início, ainda que seja pela repulsa ao seu protagonista. Enquanto o romance avança, porém, vamos compreendendo um pouco melhor as motivações de Heleno, e as reviravoltas por que ele passa nos ajudam a mudar de opinião. Heleno tem fome de viver e mostra que isso é possível, não importa sua idade.

Não direi se o final é feliz, mas digo que é inesperado. Pode-se até terminar o livro gostando de Heleno e aprendendo algo com ele, depois de termos sido criticados pelo autor por termos, logo no início, feito um pré-julgamento, por termos apontado o dedo acusador para aquele viciado em jogo, dizendo: “A culpa é só tua”. O autor, ao manter o interesse do leitor até o fim do romance, sem um fechamento óbvio ou moralista, consegue escapar da modorra geral em que tudo parece previsível. Roubai-vos uns aos outros é um belo trabalho.

Roubai-vos uns aos outros
Antônio Carlos Resende
L&PM
136 págs.
Antônio Carlos Resende
Nasceu em Cachoeira do Sul (RS), em 27 de abril de 1929. É formado em Direito pela Universidade Federal do RS (UFRGS). Advogou por dois anos, mas ficou conhecido como locutor de rádio, tanto esportivo como comercial, tendo chegado a trabalhar na Rádio Nacional de 1969 a 1975. Seu primeiro livro foi publicado em 1978: Magra, mas não muito, as pernas sólidas, morena. De lá para cá seguiram-se outros tantos, como Roubai-vos uns aos outros e A obra-prima do teu corpo.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho