Uma lacuna editorial brasileira (2)

Mais fragmentos do diário do artista Francisco Brennand
rancisco e Deborah Brennand com sua filha Maria Helena Brennand, no Engenho São Francisco.
01/04/2010

Prosseguimos com a excepcional publicação, nesta página, de fragmentos do “Diário” do pintor Francisco Brennand — um documento literário brasileiro ainda inédito, apesar da inequívoca qualidade e importância (não só memorialística, etc.) do que aqui vem sendo divulgado, desde o mês passado, com absoluta exclusividade:

Chamei Deborah. Nenhuma resposta. Chamei mais alto, mas mesmo assim ela não se moveu. Com um supremo esforço levantei-me da cadeira em direção à cama, quando ouvi batidas violentas na porta e o meu nome pronunciado em voz alterada. Não sei se demorei em atender, o fato é que o alarido e as batidas eram cada vez mais intensos, ou seria o contrário, cada vez menos distintas…

A porta foi aberta e me deparei com a concierge e o Monsieur Bousquet com ares espantadíssimos, a velhota sobretudo, que logo meteu-se sala adentro correndo para as janelas e abrindo-as de par em par. Quando voltei, a velha já levantava Deborah, dando-lhe leves tapinhas no rosto e falando muito rápido, como se pretendesse reanimá-la. O marido aproximou-se e igualmente passou a ajudá-la. Uma vez Deborah de pé, embora cambaleante, por recomendações expressas do casal que ainda gritava e gesticulava muito, saímos do quarto ainda aos tropeços e mal acertamos descer as escadas. O ar frio que entrara no atelier já nos fizera recuperar parte dos sentidos e o choque maior, em plena noite, ao caminharmos lentamente pelo pátio, nos fez entender o que acontecera ou o que poderia definitivamente ter acontecido: estávamos intoxicados pela fumaça, ou seja, pelos letais resíduos de monóxido de carbono.

Senti que a concierge não queria naquele momento ralhar conosco, antes nos admoestava para prosseguirmos caminhando e, se possível, darmos uma volta pelo quarteirão. Encarregar-se-ia de extinguir o fogo e, quanto a reacendê-lo, nem pensar antes do limpador de chaminés executar toda a revisão dos condutos e da chaminé externa. Resolvemos dormir num hotel das proximidades, o que fizemos logo depois que ela nos trouxe nossos agasalhos. Lá, chegamos sem nenhuma bagagem, o que não foi impeditivo para conseguirmos um quarto onde pensávamos passar umas duas ou três noites até que o nosso problema de “aquecimento” estivesse plenamente resolvido.

Logo de início, achamos a idéia acertada, mas não sei se pela falta de hábito ou até pela suspeição da verdadeira finalidade do lugar e da “gerente” que nos atendeu, resolvemos bater em retirada e sorrateiramente entrar em casa — mesmo se morrêssemos de frio — sem que a concierge nos visse. Quanto à chave da porta, eu me encarregaria de dizer-lhe que voltáramos apenas para pegar objetos de toalete. Mas a velhota já dormia e a chave nos foi entregue pelo bom Monsieur Bousquet que, em parte, era nosso cúmplice. Devo a esse bonhomme da Provença grande parte da pronúncia do midi que adquiri ao aperfeiçoar meu francês, e não me arrependi de que assim fosse. Ele devia se expressar com reminiscências da língua provençal que o poeta Frédéric Mistral tanto amou ou, talvez, com o mesmo sotaque com que o tímido Cézanne exigia inutilmente à Legion d’Honneur. No outro dia fomos dormir, de fato, num pequeno hotel bem mais familiar e bastante adequado para aguardarmos a nossa entrada solene nos portais do inverno. O serviço foi mais rápido do que pensávamos, e o nosso poêle, com a sua respectiva chaminé desobstruída, funcionou a contento até o final de nossa temporada, quando saímos de Paris nos últimos dias de fevereiro de 1952, em demanda aos trópicos úmidos do Recife.

Pintei este fogão à noite, numa tela, não muito tempo depois, envolto pelas sombras do atelier, aceso no seu único ponto luminoso, ostentando orgulho e resistência às intempéries e pronto para atravessar muitos outros invernos. Recordo que o impulso de pintá-lo nasceu não só da gratidão pelo calor que nos proporcionava, como também pela sua indiscutível beleza plástica. Era uma peça antiga e o seu negror, disfarçado pelo tempo, acrescentava-lhe uma incomparável originalidade. Um outro detalhe contribuiu para este quadro: Delacroix havia elaborado algo semelhante numa pequena tela, num canto de seu atelier, onde igualmente funcionava o seu velho, heróico e desmantelado poêle.

Reconhecidamente, não sou homem de ação, e a esta altura dos acontecimentos já ficou bastante claro, neste diário, que os poucos ou quase nulos episódios aos quais me dediquei com ímpeto narrativo, sempre estiveram visceralmente ligados à minha própria atividade de pintor, acontecendo, por assim dizer, como uma conseqüência lógica dessas atividades e não porque eu estivesse permeável às aventuras. Embora admire os aventureiros, decididamente, não sou um deles.

O frio foi suportável na noite seguinte, e pude verificar que todos aqueles que habitavam o pátio fronteiriço não pensavam, nem remotamente, em acender os seus aquecedores. Suponho também que alguns daqueles apartamentos, dos dois lados simétricos do prédio, tinham sido modernizados e deveriam, com certeza, possuir calefação central e, quem sabe, muitas outras comodidades. Via-se por fora as fachadas mais bem tratadas do que a nossa, e de relance, pelas janelas entreabertas, de cortinas esvoaçantes, os interiores denunciando belos móveis lustrosos e paredes pintadas com as cores da moda, como o bege, o grená, o grafite etc. Contudo, nada invejava daquilo, abstraído que estava por diferentes impulsos que me distanciavam da realidade circundante e me colocavam imune num sítio qualquer, onde se caminha rotineiramente para alguma missão obscura, desprovido de qualquer interesse, senão, aquele da confirmação de um desígnio, talvez monstruoso mas que, mesmo assim, deve a todo custo prosseguir.

E prosseguia, quase numa rotina conceitual, eu com os meus intrincados afazeres — nem sempre tão silenciosos, desde que urgia igualmente defini-los com palavras e até com rugidos —, enquanto Deborah, em perfeito silêncio, trabalhava como uma pequena abelha dourada, tentando transformar um chiqueiro numa colméia, cumprindo assim, com um rito, suas obrigações herdadas ainda de seus ancestrais nos engenhos de Pernambuco.

Na partilha dos pães, cabia-me sempre o maior pedaço e, mesmo nos mais pesados serviços domésticos, ela habitualmente evitava o meu compromisso, a não ser quando, despertando para o impossível, deixava a meio caminho das escadas um pesado saco de carvão, apelando então para o meu quase extinto cavalheirismo.

A peça que habitávamos não era pequena, talvez mais um salão do que um quarto; apenas com uma divisória de madeira que recriava ao mesmo tempo uma exíguo dormitório com duas camas, um vestíbulo ainda menor e um banheiro compartilhado com a cozinha. Lembro que pintei amorosamente uma tela, mostrando Deborah em pleno trabalho doméstico, com um ar sonhador de uma ninfeta de Balthus, diante de um fogão a gás.

Ainda hoje, lastimo que esse quadro não tenha permanecido em nossas mãos. Por onde andará? O restante da peça era o que sobrava do antigo atelier de Francis Picabia, naquele momento ainda marcando forte presença pelos seus inúmeros quadros, disseminados por toda grande parede que fazia face ao janelão de vidraças empoeiradas com sua grande cortina negra, típica dos ateliers de pintores. Esses quadros, na sua maior parte emoldurados, eram extremamente escuros e abstratizantes, revelando pertencer a uma fase mais ou menos recente do pintor, embora alguns deles recordassem períodos anteriores — nos seus reconhecidos processos de superposições de figuras, umas sobre as outras —, reminiscências vagas das máquinas irônicas, cujo princípio elementar era a sua perfeita inutilidade. Pilhas de desenhos e guaches guardadas em gavetas de velhos móveis abandonados, e desenhos nos armários e até debaixo da cama, quando o formato excessivo não lhes permitia melhor esconderijo. E tudo isso sob a égide de um universo inviolável de poeira que não admitia revisão.

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Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

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