Duas elites

Os resultados e estratégias da “velha guerra” entre alta literatura e literatura de gênero
Ilustração: Tereza Yamashita
01/04/2010

Caro leitor, por um minuto esqueça que o mundo não é feito somente de extremos, que as coisas não são apenas pretas ou brancas. Esqueça todas as gradações, todos os matizes, todas as etapas intermediárias entre o sólido e o líquido, entre o líquido e o gasoso. Só por um minuto, vou precisar simplificar a realidade a fim de apalpar certo fenômeno que, como qualquer fenômeno deste mundo de certezas provisórias, sai irritantemente do foco sempre que alguém tenta capturá-lo. Agora venha comigo e procure pensar que no mundo literário existem apenas dois grupos antagônicos. Esqueça as outras possibilidades, os grupos menores de que cada grupo é feito, os conflitos e as contradições que agitam internamente as células de cada grupo. Só por um minuto, vamos simplificar.

Imagine um grupo chamado crítica acadêmica. Esqueça que os subgrupos que o formam — multiculturalistas, estruturalistas, pós-modernistas, sociológicos, teóricos da recepção, etc. — estão em constante combate ideológico. Imagine outro grupo, chamado literatura de gênero. Esqueça que os subgrupos que o formam — new weirds, cyberpunks, new wavers, góticos, adeptos da FC hard, etc., para ficar apenas na ficção científica — também estão em constante combate ideológico.

É sabido que a crítica acadêmica, praticada nas universidades e em boa parte da imprensa (a maioria dos jornalistas tem mestrado e doutorado, outros são professores universitários), torce vigorosamente o nariz para a literatura de gênero: policial, espionagem, ficção científica, fantasia, terror, etc. Também é sabido que os autores, os editores e os consumidores da literatura de gênero torcem o nariz, com igual vigor, para a crítica acadêmica e as obras que ela legitima. Isso deixa claro que o jogo literário, diferente do futebol ou do boxe, tem pelo menos dois conjuntos de regras. O critério aplicado pelo primeiro grupo na avaliação das obras literárias é o reverso do critério aplicado pelo segundo grupo.

São duas elites, cada qual com sua balança e sua régua. A primeira diz que trabalha apenas com a alta literatura, com a grande literatura, com a Literatura com inicial maiúscula. Ela acusa a segunda de trabalhar somente com a baixa literatura, com a literatura vulgar, fácil, de entretenimento. A segunda elite acusa a primeira de ser elitista, aristocrática e esnobe, de só apreciar obras de linguagem complicada e obscura. As obras abençoadas pela segunda elite geralmente vendem mais do que as obras abençoadas pela primeira, que se ressente muito disso. E se vinga, fundando um clube muito mais elegante e prestigiado, chamado establishment, ao qual jamais permitirá que sejam admitidos uma obra ou um autor da segunda elite, que também se ressente disso.

Os dois critérios de avaliação literária são:

Critério da elite acadêmica
1. Linguagem original, conotativa, que não possa ser atribuída a outros escritores do presente e do passado, por vezes avessa à norma culta. O autor deve se expressar de maneira única, inaugurando seu próprio modo poético.

2. Subjetivismo. Narrador modernista, tortuoso ou fragmentário, psicológico, pouco confiável, às vezes delirante.

3. Enredo frio, pobre em ação, sem muitas peripécias ou surpresas, próximo da vida comum. A forma literária é mais importante do que o conteúdo.

4. O mundo interior do protagonista e das personagens é mais importante do que seu mundo exterior.

5. Fuga do gênero a que (supostamente) pertence. Faz parte do desejo supremo de originalidade a rejeição das principais diretrizes do gênero a que a obra pertenceria. O novo romance quer transcender os limites do gênero romance, o novo conto quer transcender os limites do gênero conto, o novo poema quer transcender os limites do gênero poema.

6. Purismo. As obras fronteiriças ou mestiças, que apresentam elementos dos dois mundos, são violentamente rejeitadas pelo sistema.

Critério da elite da literatura de gênero
1. Linguagem transparente, denotativa, por vezes complexa, mas ainda assim reconhecível por uma vasta gama de leitores. O autor deve se expressar respeitando a norma culta que orienta o uso do idioma.

2. Realismo. Narrador clássico, organizado e disciplinado, pouco introspectivo, confiável, onisciente.

3. Enredo quente, rico em ação, cheio de peripécias e surpresas, afastado da vida comum. O conteúdo literário é tão importante quanto a forma, ou até mais.

4. O mundo exterior do protagonista e das personagens é mais importante do que seu mundo interior.

5. Adequação ao gênero e ao subgênero a que pertence. O romance ou o conto policial, de fantasia ou de ficção científica respeitam as balizas que definem o gênero e o subgênero a que pertencem.

6. Ecumenismo. As obras fronteiriças ou mestiças, que apresentam elementos dos dois mundos, se não são bem aceitas pelo sistema, ao menos não são sumariamente rejeitas.

Muitos autores do primeiro grupo caem em depressão ao perceberem que seu romance, ou sua coletânea de contos ou de poemas, é um retumbante fracasso comercial, apesar do amplo reconhecimento da crítica especializada. Jamais terão o número de leitores de que se julgam merecedores. Muitos autores do segundo grupo, diante do sucesso de vendas de seu romance, ou de sua coletânea de contos (raramente há poetas aqui), também ficam deprimidos ao perceberem que jamais terão o reconhecimento da crítica acadêmica e conseqüentemente jamais figurarão nas apostilas e nos compêndios do ensino oficial. Jamais pertencerão ao establishment.

Uns aceitam a contragosto a situação e seguem em frente. Outros esperneiam e brigam. Insultam. Dizem, os do primeiro grupo, que o Brasil não é um país de leitores (de leitores qualificados, é o que querem dizer), afirmam que a imbecilidade e a massificação reinantes são culpa da tevê e da péssima qualidade do ensino público. Dizem, os do segundo grupo, que os críticos acadêmicos confundem complexidade com complicação, afirmam que os membros dessa elite literária beneficiam as obras mais áridas e menos inteligíveis como estratégia de dominação cultural e social.

Mas o maior pecado que os membros de cada grupo cometem é avaliar as obras do grupo adversário com o critério errado. Avaliar as obras da literatura de gênero com o critério da elite acadêmica gera todo tipo de mal-entendido. Avaliar as obras da alta literatura com o critério da elite da literatura de gênero também. Confusão e encrenca. Nada de proveitoso pode resultar dessa inversão de valores motivada pelo puro chauvinismo.

Aí está o esboço em preto-e-branco do conflito alta literatura versus literatura de gênero. E se acreditarmos, concordando com o que Étienne Souriau escreveu em A correspondência das artes, que há certa analogia entre os diversos sistemas artísticos, esse esboço de uma luta de classes literárias poderá ser facilmente adaptado à esfera do cinema, do teatro, da música, etc.

Obrigado, caro leitor, por aceitar meu convite e atravessar comigo uma paisagem simplificada, que, apesar do desenho esquemático e sem detalhes, parece representar relativamente bem um conflito real, um dilema que não é de hoje. E chegamos ao ponto principal da caminhada. Não ao seu final conciliador — estamos muito longe de encontrar a solução para o impasse —, mas ao meio: à simples, clara e objetiva formulação do problema. Uma formulação que procurou evitar as falácias tão comuns (sofismas, falsos axiomas, observações inexatas, erros de acidente) nas mesas-redondas e nos debates on e off-line. Para que você agora opine, concordando, discordando ou mudando o ângulo de visada e propondo outro modo de avaliar a situação.

Leia a seguir o comentário de escritores sobre esta “batalha”

Eterna disputa
Ah, a velha guerra entre os estabelecidos e os outsiders, onde quem está em cima empurra escada abaixo quem tenta subir. E quem está embaixo dá uma de raposa das uvas e diz que nem queria reconhecimento mesmo… Mas os olhos brilham quando surge a chance de ser um dos caras lá de cima e começar a subir a escadaria. Até ser, obviamente, derrubado e retomar sua ladainha de desdenho. Na verdade, esse processo é reproduzido até dentro dos dois grupos que aqui aparecem como opositores, como bem lembrou o autor. É a eterna disputa do campo literário.

O grande ponto aqui é a busca pela legitimidade. Por muito tempo, uma cultura literária extremamente fechada e antimercado decidiu que a popularidade de um autor — ou seja, as suas vendas — seria um indício de sua falta de qualidade enquanto obra de arte, restando-lhe apenas a triste sina de produto, sem um valor maior que lhe merecesse um estudo aprofundado ou mesmo a posteridade. É curioso, porém, notar que com o afastamento temporal muitas das obras populares acabaram entrando para o cânone. Dom Quixote foi um sucesso de vendas — para o massivamente iletrado século 17 — mas extremamente criticado pelos eruditos de sua época. As lendas arturianas de Thomas Mallory e Chretien de Troyes eram lidas em voz alta para a população em praças, e circulavam em manuscritos por todas as cortes européias, mesmo sendo malvistas pelos doutores.

Claro que ninguém quer esperar três ou quatro séculos para ter seu talento reconhecido, muito menos no mundo de hoje, da instantaneidade, das celebridades de reality show. Porém o autor de gênero vem cada vez se preocupando menos com o brilho de críticas literárias positivas e mais em como viver da escrita — e de preferência tão bem quanto a J. K. Rowling —, tanto aqui, onde essa perspectiva é quase impossível, quanto em mercados mais promissores, como o anglófono. Esse movimento contribui para afastar ainda mais os dois pólos da nossa discussão. Quando o escritor pretende agradar apenas o mercado, ele tende a descuidar da qualidade de sua obra, dando motivos aos críticos que, por sua vez, generalizam, deslegitimando a literatura de gênero como um todo. A esta, por sua vez, resta apenas o reconhecimento do mercado, criando assim um círculo vicioso.

Não há como servir a dois senhores, mas não é o objetivo do escritor servir a ninguém. Ele pode ter, claro, seus objetivos como artista ou como profissional, e se focar neles. Mas sem sacrificar a sua obra a nenhum deles.
Ana Cristina Rodrigues • escritora e historiadora

Complexidade
O próprio Luiz Brás admite que nos apresenta uma paisagem simplificada. Em outras palavras, e com todo o respeito pelo Brás: ele nos diz, logo de saída, e com todas as letras, que não devemos confiar muito no esquema que nos oferece.

É claro que as coisas são muito mais complexas. De um lado, a “crítica acadêmica” não é um monólito. Está divida em muitos grupos e muitas tendências e escolas teóricas, e mesmo dentro de cada um desses grupos e dessas tendências existem imensas diferenças e cisões.

De outro, o que ele chama de “literatura de gênero” é alguma coisa muito imprecisa também. Tenho preferido falar, simplesmente, de Best-sellers, para me referir a uma literatura que tem como projeto e objetivo o mercado. Mas essa classificação, Best-seller, nada diz a respeito da própria literatura, fala apenas das idéias que a regem, dos objetivos materiais que persegue.

Entendo que a literatura (como a arte, em geral) é o terreno da singularidade. Todas as divisões, classificações, etc., só servem para achatar essa singularidade. Chamo de literatura Best-seller aquela que despreza esse caminho singular. Que, ao contrário, pretende seguir fórmulas (não importa quais, sem prestígio, ou com prestígio), e se guia pela cópia e pelo padrão, e não pela invenção.

O que define a literatura, e a arte em geral, acredito, é a invenção. É ela que leva à singularidade. E, se pensamos na perspectiva do singular, qualquer tentativa de organização, ou de classificação, seja qual for, da mais tosca à mais nobre, está fadada ao fracasso. Dizendo de forma bem dura: não serve para nada.

Se percorremos a história da literatura brasileira, isso fica muito claro. Fala-se, por exemplo, do Romantismo, mas na verdade esta é uma definição presa mais a elementos temporais. O que José de Alencar tem a ver com Joaquim Manuel de Macedo? O que o teatro romântico de Martins Penna tem a ver com a obra sertanista do Visconde de Taunay? Podemos esboçar um laço aqui, outro ali, mas eles nada dizem a respeito das obras.

São classificações que visam à escola e ao ensino, que facilitam a vida dos alunos e dos professores. Sim: que, de alguma forma, muito simplificada e precária, ajudam a pensar. Mas que passam por cima da literatura, que a arrasam. Então, eu me pergunto de que servem esses pensamentos. Se não é bem melhor simplesmente ler as obras e parar por aí.
José Castello • escritor e jornalista

Outra questão
Para falar a verdade, não chego a sentir como algo muito presente esse embate entre uma literatura supostamente culta e outra dita de gênero. Quero deixar claro que essa é uma percepção pessoal e que é bem possível que ela esteja afastada da realidade, já que não acompanho muito as discussões da vida literária. Pode ser, portanto, que essa questão preocupe a maioria das pessoas que de alguma forma está envolvida com literatura no Brasil e fora dele, mas pessoalmente não a vejo nem como uma questão nova nem como algo muito importante.

Por outro lado, talvez ela encubra outra questão que, esta sim, me parece relevante, não apenas para fazer a distinção entre grupos e igrejinhas, mas porque está diretamente ligada ao que determina quais livros e feitos por quem vão existir, ou seja, define a literatura que vai ser oferecida ao público: a questão do mercado editorial. E quando falo de mercado editorial não me refiro apenas a editoras, autores, agentes, livrarias, etc., mas a um sistema muito mais amplo, cujo número de participantes só tem aumentado nos últimos anos. Tem muita grana rolando em nome da literatura, do que de nobre evoca a literatura (que não vive nem nunca viveu só de nobreza). Basta ver o número cada vez maior de empresas se associando a “manifestações literárias” (feiras literárias, festivais literários, festas literárias, prêmios literários, etc.) — manifestações estas que se dão tanto fora quanto dentro da universidade, que é também mais um dos envolvidos no negócio —, para a gente se dar conta de que a literatura é isso mesmo, um excelente negócio.

Assim, uma literatura dita alta, com vocação para o cânone, não dá apenas prestígio para os que dela participam, direta ou indiretamente. Da mesma forma que uma literatura que vende bem não pode ser, na boa lógica do mercado, negligenciada. Imaginemos aqui também uma simplificação: a literatura sem valor monetário. Será que nesse quadro a tal briga entre alta literatura e literatura de gênero não ficaria esvaziada?
Amilcar Bettega • escritor

Dois anões
Isso dá um livro. Mas vou lembrar um conto de Ray Bradbury, O anão (em O país de outubro). O personagem diz que era filho de um casal quase de anões, e foi criado numa casa em que todos os móveis eram minúsculos, fabricados de acordo com a escala de tamanho deles; e ali viveu a infância inteira, ele, os pais, a casa. Tudo era proporcional a eles, e o garoto julgava viver num mundo normal. Um dia, a casa pega fogo, os pais morrem… E o menino se vê jogado num mundo de gigantes, onde tudo é desproporcional, imenso, ameaçador.

Pode ser uma alegoria do que acontece com o leitor do mainstream, que cresce nesse mundo de histórias realistas, com gente igual a ele, num mundo igual ao dele, só de coisas normais, e quando abre um livro de FC fica aterrorizado ao ver que para aqueles leitores o universo é gigantesco e ameaçador, que o impossível não é tão impossível assim, que a mente dele vai ter que se adaptar a outras leis da física e da biologia, bem como achar espaço para conceitos que botam abaixo sua noção de realidade.

Poder ser também uma alegoria do que acontece com um leitor de FC quando começa a conviver com o meio literário, as academias, as universidades, a crítica literária, e percebe que esse mundo cobra dele critérios literários muito mais exigentes e profundos. Ele percebe que a meia dúzia de recursos expressivos a que a FC o acostumou são insuficientes para dialogar com um mundo literário mais complexo. Ele se sente como um rabequeiro sertanejo chegando numa orquestra sinfônica.

São dois tipos de anões, e cada qual, ao conhecer o mundo do outro, recua apressadamente para o seu, para o mundo onde tudo é feito à sua escala e à sua medida. A dinamarquesa Isak Dinesen tem uma bela frase: “O homem e a mulher são dois baús trancados, e dentro de cada um deles está a chave do outro”. O mesmo acontece com a FC e o mainstream. Ou nadam juntos, ou afundam juntos.
Braulio Tavares • escritor e roteirista

Separação artificial
Étienne Souriau escreveu em A correspondência das artes, que há certa analogia entre os diversos sistemas artísticos, e outro francês célebre por quem tenho predileção especial, Teilhard de Chardin, lutou a vida inteira para demonstrar que ciência e religião não são excludentes. E esse padre-paleontologista combateu esse nem sempre tão bom combate nas décadas de 40 e 50 do século passado, época em que o sensus communis ainda ditava uma separação entre clero e cientistas maior ainda do que em tempos de clonagem e experiências com células-tronco.

Nunca me conformei com essa separação e só quando li Chardin entendi por quê: na verdade, ela não existe. Pode parecer wishful thinking da minha parte, mas o caso é que esta separação é inteiramente artificial e criada por nós ao longo do século 20. Da Odisséia de Homero e das Metamorfoses de Ovídio às Viagens de Gulliver, e mesmo às aventuras dos personagens de Mark Twain, Joseph Conrad e Jack London, hoje considerados clássicos, aventura e fantasia se misturavam o tempo todo à realidade. Só o século 20 nos condena (culpa da revolução industrial? Talvez, mas isso é assunto que dá pano para mais do que uma manga).

Eu acho que talvez estejamos, sim, avaliando essa questão da maneira errada. Talvez o hibridismo literário, ou seja, a fusão entre o dito mainstream e a literatura de gênero seja a verdadeira literatura, aquela que real e efetivamente se abre para todas as possibilidades. Em seu ensaio acadêmico Reading by starlight, Damien Broderick afirma que a ficção científica, com todos os seus subgêneros, há muito deixou de ser um gênero literário simples e ascendeu à condição de um metagênero, devido à sua complexidade. Eu defendo o casamento alquímico entre o chamado mainstream, ou alta literatura, e a chamada literatura de gênero, como a única saída honesta e verdadeira. E no Brasil esse casamento já aconteceu, ainda que à discrição (só no civil, sem pompa e circunstância), mas gerou filhos diletíssimos, como Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, Avalovara, de Osman Lins e Catatau, de Paulo Leminski, obras cuja guarda foi prontamente solicitada pela alta literatura, que entendeu sua importância, mas que na verdade não se encaixam em nenhum rótulo. A verdade é que elas deveriam ter sua própria chancela, a de metaliteratura, e servir de exemplo para ambas as metades dessa laranja conceitual. É apenas tudo o que eu desejo.
Fábio Fernandes • escritor e tradutor

Luta antiga
Interessante a sua abordagem. Apesar de óbvia, nunca tinha pensado em formalizar a antinomia que você propõe.

A luta entre high-brow e low-brow é tão antiga quanto a literatura propriamente dita. É uma briga de foice sem vencedores (por enquanto). Eu pessoalmente tento fazer a ponte com minha literatura: em um anseio quase hilemórfico, tento juntar conteúdo e forma de maneira inconsútil. Certamente que, dentro do fandom da FC, não há muita ressonância. O pessoal que gosta de FC quer mesmo todos os itens que você enumerou na categoria literatura de gênero.

Meu primeiro livro, Piritas siderais, foi bem recebido pela crítica (com exceções: Luciano Trigo, por exemplo), mas o fandom (com exceções também) não gostou… Sinto que, em geral, o fandom não lida bem com experimentalismos; prefere o feijão com arroz e o papai-mamãe.

Um editor me convidou para escrever um conto de FC com viés político e o recusou sob o argumento de que o texto não tinha ritmo nem ação. Com certeza ele nunca iria encontrar esses elementos num conto preocupado em discutir o futuro da ética política.

Portanto, a coisa é complicada… Estou sendo um pouco verborrágico. Tem uma discussão interessante aqui: http://ivanhegenberg.blogspot.com/2009/12/os-dias-da-peste.html

Também me manifestei sobre o assunto em meu blog: http://autofagia2.blogspot.com/2009/12/prontofalei.html
Guilherme Kujawski • escritor e jornalista

No mesmo barco
Eu diria que a chamada luta de classes literárias está exposta com uma clareza de raciocínio muito mais próxima das características da literatura de gênero. Claro que isso não significa que o Luiz Bras toma partido por um dos lados da contenda, mas que o problema está bem exposto de uma maneira que talvez um crítico acadêmico não conseguiria. Tenho a observar que se de um lado os acadêmicos, em tese, vendem menos e têm mais prestígio, ao menos num país de tradição cultural neocolonial como o Brasil, eles têm mais peso político e econômico para impor o que é bom e deve ser ensinado, conhecido, comprado e lido pelas pessoas alfabetizadas e razoavelmente cultas. Não preciso ir longe: ao oferecer um livro de ficção científica para minha namorada, ela torce o nariz e pede que eu a presenteie com Rubem Fonseca ou Vargas Llosa. Nada contra eles, veja bem, mas existe uma resistência ao que supostamente foge da ordem acadêmica. Já em termos de realidade brasileira, não se confirma que a literatura de gênero vende mais. Na verdade vende tão pouco quanto à acadêmica e ainda por cima é desprestigiada pelos críticos acadêmicos e sua entourage institucional. Ela tem procurado respirar pelas margens, através de uma resistente subcultura que, contudo, ainda não tem claro para si se o mais importante é popularidade ou prestígio. Ao que parece, os acadêmicos, bem ou mal, estão resolvidos quanto ao que são; os da literatura de gênero ainda buscam definir sua identidade e seus rumos. Daí talvez venha também uma fragilidade comparativa, pois apesar de mais vigorosos em termos de imaginação e militância, os autores de ficção científica, policial, fantasia e horror ainda não conquistaram um espaço editorial de mesmo calibre dos que estão por cima, os acadêmicos do establishment. Pelo fato de o mercado editorial brasileiro ainda ser modesto em comparação com o dos países desenvolvidos, essa diferença é mais sentida, e dos dois lados: tanto pelos acadêmicos, que zelam pela manutenção de seu prestígio hermético e auto-referente, como, principalmente, pelos autores de gêneros, que lutam para deixar de ser uma subcultura, num país que pouco apreço tem pela educação formal e pela literatura não só deles, como em geral.
Marcello Simão Branco • jornalista e editor

Textismo
Luiz Bras fez uma ótima síntese de uma problemática visível somente àqueles à margem do mainstream. Apenas expressá-la já soa subversivo, pois a alta literatura só pode ter tal status afirmando-se como o único caminho possível para a literatura; tudo o mais estaria no campo da indústria cultural. Falamos sempre na democratização de tudo — menos das artes, onde a arrogância aristocrática predomina. A acadêmica Marleen S. Barr chama a isso de textismo, “um sistema discriminatório de avaliação, no qual toda literatura relegada ao assim chamado gênero subliterário, não importando seus méritos individuais, é automaticamente definida como inferior, separada e não-igual”. Na década de 50, com o Sputnik, a bomba atômica e o computador, intelectuais brasileiros começaram a apontar a ficção científica como uma novidade literária importante para o século 20. De pronto, figuras de peso como Otto Maria Carpeaux, Alcântara Silveira, Wilson Martins e, mais tarde, Muniz Sodré, levantaram-se para dizer que não, a FC é mesmo subliteratura, apenas um produto da indústria cultural. Carpeaux, é claro, podia elogiar um romance de Olaf Stapledon — se não deixasse escapar que era de ficção científica. Os pontos que Bras elencou como critérios da elite acadêmica estavam na ponta da língua desses textistas do passado. Eu suspeito que Almir de Freitas, da revista Bravo!, seja um textista do presente, quando levanta a suposta questão da verossimilhança, para essencialmente dizer que FC não é coisa de brasileiro. Há muitos outros, claro, mesmo no campo da FC: primeiro, os que diziam “o que me impede é o rótulo” e “o que me impede são esses iletrados que só lêem FC”; hoje, os que dizem “o que me impede são esses iletrados que só lêem FC do passado” e “não quero essas antologias cooperativadas na mesma estante que eu”. Textismo não é sinal de bom gosto nem de cultura literária; textismo é coisa feia. É preconceituoso, é antidemocrático. Um caso grave de textismo é dizer, por exemplo, que 1984, de Orwell, é tão bom que não pode ser FC — é Literatura! Parece elogio, mas por que mascarar as origens da obra? Vamos nos livrar do textismo. Vamos deixar os textos falarem por si próprios, e não pelo seu pedigree. No fim das contas, literatura é literatura. Mas um dos fatores que tornam a literatura tão rica, são as origens particulares de cada texto. Mesmo aceitando que literatura é literatura, vamos deixar que a ficção científica seja ficção científica.
Roberto de Sousa Causo • escritor e jornalista

Ladainha de gerações
O velho embate entre dois gorilas empedernidos; teimosos até a vesícula, míopes e virulentos — uma ladainha antiga que vem acompanhando gerações. Cada vez mais vou acreditando que não há meios de fazer com que esses dois orbes possam interferir positivamente um no outro. Coabitam o mesmo ambiente. Batem ombros nas prateleiras das livrarias, dividem espaço nas gôndolas, olham-se furtivamente nos olhos.

Não dão o braço a torcer, não se flexibilizam, não ampliam os próprios horizontes, não aprendem um com o outro. Não há toque, não há resvalo. Qualquer aproximação é encarada com animosidade.

Inicio por encarar a literatura mainstream e a literatura de gênero como entidades fantásticas de quem ouvimos falar, mas duvidamos da existência. Claro que se trata de um desvario, um arroubo de insanidade. Mas há provas! Me dirão, apontando as obras, todas elas jogadas numa gôndola, as capas multicolores se fazendo notar, quase aos gritos. Vejo, mas me recuso a crer, cada vez mais obstinado dentro da loucura que me toma.

Não é uma infantil resistência aos fatos. Trata-se de resistir à idiotice. Se fossem gêneros inteligentes, trocariam conhecimentos, evoluiriam um com o outro. Mas são gêneros burros. Constroem altas muralhas em torno de si, se armam com óleo quente, flechas e lanças e põe por terra qualquer ecumenismo apregoado.

Pensei um dia que para o gênero se aproximar do mainstream bastava se aprimorar na forma. Pensei que para o mainstream se aproximar do gênero bastava trabalhar mais o conteúdo. Mas estava errado. É até melhor que ambos permaneçam assim, distantes um do outro vários parsecs, embora possam se ver, quase os narizes se tocando.

E que os autores mainstream vejam seus livros encalhados, ou escondidos debaixo da cama, felizes, porém, pelo reconhecimento do establishment, e que os autores de gênero vendam bastante, completamente alheios ao que a academia abraça como estética e tecnicamente aceitável.

Porque, vou dizer com toda a franqueza: autor de gênero não está nem aí pra academia. Quer mesmo é vender. Ter leitores. Não há reconhecimento acadêmico que suplante essa alegria. O resto é desprezível.
Tibor Moricz • escritor e publicitário

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho