A alma do nome

"Yuxin", de Ana Miranda, transforma a fala indígena em romance que radicaliza a linguagem
Ana Miranda, autora de “Yuxin”
01/04/2010

“Iracema é América”, cantava o cearense Ednardo, dialogando com o conterrâneo José de Alencar. Yuxin é alma, e alma cearense também, por ser uma criação da fortalezense Ana Miranda. Sua criação, a índia caxinauá Yarina, por sua vez, é do Acre, quase um anagrama de Ceará, mas é também a transmutação ficcional da voz de Ana Miranda. Século e meio separa Iracema de Yarina, mas as duas índias representam ainda o mesmo e antigo projeto de usar o índio como forma de dar voz a uma certa identidade. Só que, entre uma e outra, um índio “sem nenhum caráter” passou por nossa literatura e a modificou para sempre. A partir do modernismo e de Macunaíma, começou a se desfazer a idéia de uma identidade nacional uniforme e a pluralidade de nossos caracteres foi avançando rumo ao multiculturalismo com que nos reconhecemos hoje. Após suas investigações ficcionais sobre a imigração libanesa, em Amrik, pelos olhos de Amina, e da mulher portuguesa nos primeiros anos do Brasil colônia, pelo relato de Oribela, em Desmundo, Ana avançou em seu projeto de “dar voz feminina a uma multiculturalidade brasileira”, e radicalizou ao transformar a fala indígena em um projeto de romance de linguagem radical, narrado por Yarina.

Miscigenação, migrações, imigrações e emigrações são temas que fazem parte da coluna vertebral da literatura brasileira e é este veio, igualmente presente em outros de seus romances, que Ana Miranda retoma em Yuxin. Recuperando aspectos centrais da literatura do século 20, Ana nos traz um alento em meio ao predomínio do meta-romance urbano dos últimos tempos. Além do seminal Iracema, Yuxin remete a livros como Quarup, de Antonio Callado, de 1967, e Maíra, de Darcy Ribeiro, de 1976. E, se pensarmos no Acre e no ciclo da borracha, podemos aproximá-lo ainda de Mad Maria, de Márcio Souza, de 1980, que se passa naquele estado em época muito próxima ao período em que Yarina por lá caminhava. Para sorte da cunhatã, no entanto, ela não esbarrou nas hordas de trabalhadores semi-escravos que vieram de vários lugares do mundo para o inferno verde da floresta amazônica deitar os trilhos que ligavam o “nada a lugar nenhum” da malfadada ferrovia Madeira-Mamoré.

Yarina habita justamente esse “nada”, como era vista a selva então. Foram necessárias algumas décadas de discurso ecológico e vozes se erguendo, em reconhecimento aos povos da floresta para que nos déssemos conta de que o nada e o lugar nenhum da Amazônia eram, na verdade, quase um outro planeta, habitado por seres de uma inteligência muito peculiar e que hoje inspiram blockbusters de Hollywood. Historicamente, faz bem pouco tempo que os índios restantes se transformaram em um problema social reconhecido na geografia humana brasileira, envolvidos em conflitos, passeatas e ocupações de prédios da Funai. Ainda assim, a questão indígena continua distante demais de nossa realidade urbana para quebrar aquele imaginário construído ao longo dos séculos, o do índio como o bom selvagem, habitante de um mundo fantástico e paradisíaco, povoado de seres lendários que alimentam o nosso folclore.

“A índia sou eu”
Ao longo do tempo, as representações do índio na cultura brasileira vão mudando conforme sopram os ventos da realidade que a ficção quer interpretar. Assim, em um dado momento, lá estava Iracema, a virgem dos lábios de mel e cabelos negros como a asa da graúna, mas que, para sobreviver, deve permitir que o homem branco leve seu filho embora — era ver uma Eva indígena a fundar a raça brasileira ao lado de um Adão europeu. Décadas mais tarde, o índio brasileiro passa a ser Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, que é índio, que é preto, que é branco, que é Grande Otelo e Paulo José, no filme de 1969, de Joaquim Pedro de Andrade.

E é com essa tradição que Yuxin dialoga. A personagem índia nasceu após uma longuíssima gestação. Ana Miranda conta que, na época em que ainda trabalhava em Boca do inferno, seu primeiro romance, publicado em 1989, sonhou com uma menina índia ajoelhada aos pés do padre Antonio Vieira, zelosamente costurando a barra rasgada da batina dele. No sonho, a menina não falava, e a maior dificuldade de Ana foi justamente a de encontrar sua voz.

Em entrevista ao jornal Correio Braziliense, Ana explica que “a índia na verdade sou eu, lidando com esses elementos, com o intuito de verbalizar universos interiores, anteriores a mim”. Fiel à prática do romance histórico, ela foi em busca de fontes, e sua maior dificuldade foi encontrar documentos e relatos dos próprios índios, sem a intermediação acadêmica, a fim de encontrar uma voz que soasse indígena de fato, e com a qual ela se reconhecesse de alguma forma. Uma parte interessante de sua pesquisa foi a verificação de que, muitas vezes, quando os índios se expressavam para os “brasileiros”, a linguagem perdia a naturalidade e acabava soando como uma tentativa de falar como o homem branco (que pode ser de qualquer outra cor, contanto que não seja índio). Finalmente, em meio a diversas outras fontes, ela chegou ao trabalho de mais um cearense, o historiador Capistrano de Abreu, a quem Yuxin é dedicado — 700 páginas em um volume onde estão compilados os depoimentos de dois índios caxinauás, Rã-txa hu-ni-ku-i: Gramática, textos e vocabulários caxinauás, uma edição de 1941 da Sociedade Capistrano de Abreu e da Livraria Briguiet. Ali, Ana encontrou a transcrição fiel da fala dos índios e foi a partir dessa fonte principal que ela criou a linguagem de Yarina.

O livro vem acompanhado de um CD, em que a irmã de Ana Miranda, Marlui Miranda, música e pesquisadora da cultura indígena, recita e canta trechos e capítulos. Ouvir o CD antes do livro permite entrar na leitura com uma sonoridade que facilita muito o mergulho na “biodiversidade” do mundo de Yarina. A fala da índia é repleta de onomatopéias e o texto pouco tem de linear, é uma leitura que exige esforço até que se pegue o ritmo. A gravação ajuda a dar naturalidade à leitura. Por sua originalidade e ingenuidade aparente, não admira que uma parte da crítica “inteligente” da imprensa não veja o propósito, o macrocontexto e a realização que esse trabalho representa.

Sincretismo
Em um texto intitulado Exotismo, da surpreendente coletânea de ensaios Pequeno manual de procedimentos, publicado pela Arte & Letra, o argentino César Aira contrapõe a literatura do “exótico” ao nacionalismo. Para ele, o recurso ao exótico é uma forma de enxergar a si mesmo. Ou seja, ao se transformar em Yarina pela via da ficção, Ana Miranda consegue fixar um ponto de vista exterior para examinar a si mesma e a cultura em que ela, e nós, estamos inseridos. A narradora de tom melódico, de fala entremeada pela fala dos pássaros, pelos esturros da onça e ruídos da floresta, que vive nas matas do Acre lá em 1919, acaba por se tornar uma observadora muito silenciosa da própria escrita da autora.

O sincretismo se amplia com a aproximação que Ana Miranda faz de Yarina e Penélope. A Odisséia é um poema narrativo praticamente fundador do romance ocidental. Uma quantidade impressionante de tramas, subtramas, técnicas narrativas e mudanças de pontos de vista estão presentes na obra de Homero. Pode-se até dizer que a Odisséia é o primeiro “romance total”, no qual foram beber autores tão diversos quanto Joyce, Cortázar ou Thomas Mann. E Ana Miranda, que corroborou essa visão ao dizer, em uma de suas entrevistas, que se inspirou na história de Penélope e Ulisses para estruturar Yuxin.

Durante boa parte do livro, Yarina borda, recorda e nomeia o mundo ao seu redor, enquanto espera o retorno do marido, que partiu levando o filho pequeno e não voltou. Assim, de um só golpe, essa Penélope da Amazônia perde seu Ulisses e seu Telêmaco. O ritmo de sua espera segue a trama do bordado que ela tece, é lento, chega a dar a impressão que de fato não avança, que talvez até seja feito de dia e desfeito à noite. Bordar é a escrita de Yarina, o registro. Ponto a ponto, ela vai registrando seus pensamentos, expondo seu conhecimento do mundo, o saber passado oralmente e pelo fio da trama da linhagem materna, da avó, da avó, da avó, da mãe da filha. Bordando também ela vai ouvindo o tempo passar, descrevendo e reconhecendo os sons que marcam o tempo e sua relação com o universo ao seu redor. Bordando, ela acompanha as estações, a época de cada fruta, de cada árvore, ou pau. E, igualmente, bordando ela vai narrando a história.

Mas, rompendo o paralelo com a Odisséia, em determinado momento, Yarina Penélope se transforma em Yarina Ulisses, e parte. É o momento da transgressão que a transformará. A partir de uma transgressão inicial, que foi mexer nas flechas de Xumani, o marido, além de afastar-se da aldeia para os lados de lugares perigosos, onde vivem as yuxin, almas ou espíritos da floresta, o universo de Yarina começa a se desfazer. O desaparecimento misterioso de Xumani — sentido por ela como punição pelos seus próprios e supostos erros — desestabiliza o mundo de Yarina e já não a sustenta mais. A espera acaba por se transformar em busca, não só do marido e do filho, mas de si mesma.

Após perdas diversas, do marido, do filho, da aldeia, após guerras entre tribos e parentes, com os peruanos, tudo narrado em um tempo de sonho, de idas e vindas, de misturas de passado e presente, tendo a extração da borracha como pano de fundo, Yarina se vê só e faminta em um mundo que não mais reconhece — ou que talvez já conheça demais. É o momento em que finalmente encontra as almas e aprende seu nome verdadeiro, que a transforma:

(…) tu, alma, és mulher? tu tu tu tu… mulher àqueles faz? alma, tu, tu, tu, tu, tu, tu, tu, tu, tu, tu te zangas? não te zangues! não sangue! tu tens nome? cuií-cuiú, tu, tu tens nome, alma? alma, diz teu nome! tu, tu, tens nome não! alma, teu nome? tu tu tu tu… teu nome… cuií-cuiú, tu tu tu tu… diz! digo não! né? né? né? né? tu tu tu tu… tu tu tu tu… dize, alma, o meu nome, dize, dize! qual é o meu nome? Yarina segredo! tu nome-alma! teu nome, Yarina, é Yuxin! Yuxin? Yuxin! Yuxin? Yuxin! Yuxin, meu nome!

Yuxin, que significa alma
Ao se encontrar com a alma, ou fazer sua anábase, na melhor tradição épica greco-romana, Yarina-Yuxin descobre-se Alma/alma. Assim como Macunaíma, o encontro de Yarina consigo mesma e com seu destino resulta em uma perda do corpo e de sua realidade. Transforma-se em alma, que, para a cultura ocidental, é a própria essência do indivíduo. Macunaíma, por seu lado, após perder sua muiraquitã tão duramente conquistada, acaba por subir aos céus e virar estrela. As possíveis leituras desses desfechos tão semelhantes e tão diferentes são inumeráveis, e ficamos por aqui. O que vale dizer é que Yuxin, como alta literatura que é, oferece grande alimento para nossas almas.

Yuxin
Ana Miranda
Companhia das Letras
344 págs.
Ana Miranda
Nasceu em Fortaleza (CE), em 1951. Morou em Brasília (DF), no Rio de Janeiro (RJ) e em São Paulo (SP). Hoje, vive numa praia do Ceará. Estreou como romancista em 1989, com Boca do inferno, traduzido em diversos países. Dias & Dias recebeu os prêmios Jabuti e ABL, em 2003. Também é autora de Desmundo e Amrik.
Daniel Argolo Estill

É tradutor e crítico literário.

Rascunho