O som e a fúria

Hoje as palavras finais de Macbeth soam proféticas, porém a vida não pode ser uma história contada por um idiota, significando nada
Ilustração: Maíra Lacerda
01/06/2021

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Delicados, estes tempos, tecidos em polos opostos, passado e presente em disputa de representações do mundo. E nesse cenário, que se divide entre o ser ou não ser, entre o dizer e o calar, entre o esconder e o mostrar, a literatura para crianças e jovens fica cerceada, mais que de costume, por instrumentos de controle e censura.

Os livros podem ser um risco, é fato. Na medida em que a literatura é uma transfiguração da vida, traz em si os riscos da própria vida, gerando por parte da sociedade uma atitude ambivalente em relação ao livro, pois nem sempre o que é transmitido — por texto ou imagem — está adequado à manutenção de um status quo. Ao contrário, o livro mais pungente é, em geral, o mais visado para controle e suscita “por vezes condenações violentas quando ele veicula noções ou oferece sugestões que a visão convencional gostaria de proscrever”, diz Antonio Candido.

Vivemos querendo “proteger” a criança e o jovem, em procedimentos que podem carecer de bom senso. Em verdade, a pretensão está em controlar os sentidos no ato de ler, nos debates conjuntos ou nas perguntas suscitadas pela obra. Terá sido o que ocorreu com Enquanto o sono não vem, de José Mauro Brant, uma coletânea de histórias e cantigas do folclore brasileiro, na qual está A triste história de Eredegalda, pivô da retirada de mais de 90 mil exemplares das bibliotecas escolares em todo o país no ano de 2017. Qual a ameaça contida em uma narrativa, que nada mais é senão um reconto da história secular de Pele de asno, recolhida por Perrault?

O tema de ambas as narrativas é o incesto paterno e a luta das filhas para fugir aos desejos dos pais. No conto de Perrault, o desfecho é feliz, com o casamento da princesa com um príncipe e o arrependimento do genitor. Em Eredegalda, apesar de a protagonista morrer, em função dos castigos a que o pai a submete, há uma redenção no plano divino, com a aparição de quatro anjos e Jesus para levá-la ao céu.

O argumento para retirada dos livros das escolas consistiu na inadequação da temática para crianças pequenas. Em suma, a aparente proteção consiste em não falar sobre o que está aí e atinge muitas crianças, que encontrariam na escola o espaço possível de confidência e denúncia. A indignação de docentes e de parte da sociedade civil não foi suficiente para impedir o ato de franca censura e prejuízo de acesso à literatura e de discussão da própria vida. Posteriormente soubemos de várias escolas que não entregaram os livros para recolhimento, em ato de coragem e de respeito à expressão humana.

Reconhecemos ser rara tal atitude, sobretudo nestes tempos de concepções fundamentalistas, em que pessoas despreparadas sentem-se autorizadas a intervir em campos variados do saber. Os docentes têm sido há bom tempo alvo de deméritos e acusações, justamente por realizarem a mediação mais potente, em termos de público e repertório, pois é o que vem da escola que intervém diretamente na vida familiar. Os livros propostos por esses docentes suscitam perguntas muitas vezes inconvenientes, capazes de desestabilizar situações de hipocrisia e violência. Não é de estranhar o pânico que vem tomando o magistério nos últimos anos, na sensação de ter a cabeça a prêmio pelo simples ato de exercer seu trabalho.

Em uma escola de Ensino Fundamental, um professor realizou em sala a leitura de um conto maravilhoso, desses comuns, que fazem parte do imaginário de grande parte da população. A história de reis, rainhas, príncipes e princesas se pretendia simples e sem maiores questões. Todavia, a potência da literatura se fez presente na atividade, e o debate após a leitura trouxe à tona importante questionamento da turma sobre gênero: mas as princesas podem fazer outras coisas além de ser princesas? Elas podem trabalhar? E os príncipes, também podem fazer qualquer coisa? Rapidamente, as crianças se apropriaram do assunto, respondendo elas mesmas aos colegas, se posicionando e levando a questões cada vez mais complexas, porque, afinal, princesas podem fazer tudo, inclusive beijar outras princesas…

Nesse relato, feito por um professor durante palestra de formação continuada ministrada por nós, gênero e sexualidade surgiram como decorrência de um texto literário sem que estivessem ali explícitos. Mas também poderiam estar. Aliás, devem estar. Afinal, retomando Candido, se a literatura é sobre a vida, todos esses aspectos participam do espectro de possibilidades humanas.

O debate se resolveu no espaço escolar, mas as questões reverberaram fora da escola, resultando em processos administrativos contra o professor. Pela literatura, o olhar das crianças foi ampliado, alcançando possibilidades além daquelas vividas em seu cotidiano familiar. E é essa abertura que costuma ocasionar ações que ferem a independência de cátedra, quando pais e mães decidem o que se lê e o que não deve ser lido, segundo crenças pessoais e modelos ideológicos.

Além de aprendizado do conhecimento formal, a escola deve ser espaço de construção da cidadania, e, mais ainda, lugar de amparo em situações de vulnerabilidade. Ao impedir o acesso das crianças a determinadas obras, nega-se muitas vezes a única via de interrupção em um contexto abusivo; rasura-se o reconhecimento de si e do outro, e, pela via de identificação com a personagem, nega-se ao indivíduo uma saída salutar em situações conflitivas. Embora seja difícil recomendar um comportamento quando não estamos no lugar do outro, entendemos ser crucial que o magistério não se submeta a intervenções inapropriadas e ilegítimas. Não será demais recomendar a união entre docentes, o apoio a cada colega sob constrangimento, e ainda o posicionamento efetivo da sociedade, enfatizando que uma escola de posição político-pedagógica firme mostra-se bem menos suscetível a ataques fundamentalistas.

O alvo da censura não está no livro em si, está na força crítica do leitor competente. Para isso, os poderes interessados normalmente agem antes de que se forme o leitor, sendo a proibição direta a forma que mais chama atenção. Retirar uma obra de circulação, desacreditá-la, tornar seu consumo inviável em função do preço são tantas outras formas de exercer a censura. Serão sempre delicados os tempos em que a censura sobre a arte não enfrente impedimentos à sua ação. Tempos em que as palavras finais de Macbeth soem adequadas e proféticas. Porém, a vida não pode ser uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando nada. Todo o empenho da arte, a literatura em nosso caso, é exatamente para que a vida, em seu som e em sua fúria, tenha sentido. Que sentido para a vida senão reconhecer o que nos aflige, dar nome à razão da aflição, buscar consolo e alternativa?

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ___. Vários escritos. 4. ed. reorganizada pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul; São Paulo: Duas Cidades, 2004. p. 176.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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