Comemorou-se no passado dia 5 de maio, pela segunda vez, o Dia Mundial da Língua Portuguesa, data instituída pela Unesco como reconhecimento da importância geopolítica desse idioma “neto do latim e filho do galego”, hoje falado por cerca de 280 milhões de pessoas espalhadas por todos os continentes, algumas delas em cinco países africanos.
A propósito da efeméride, abordarei nesta coluna um aspeto pouco aflorado e de certo modo ignorado, inclusive, pelos usuários africanos, cada vez mais numerosos, da nossa língua comum: a influência africana na língua portuguesa. Devido à natureza e ao espaço disponível para este texto, trata-se apenas, naturalmente, de breves notas. Talvez os especialistas na matéria possam, um dia, estudar este assunto com mais conhecimento e profundidade.
Como aludi num poema que escrevi em 2009, Crónica verdadeira da língua portuguesa, ainda inédito em livro, esta é influenciada pelas línguas bantus africanas, particularmente angolanas (com destaque para o kimbundu, kikongo e umbundu), há muitos séculos.
Isso é mais visível na variante brasileira da língua portuguesa, o que a História, mais concretamente, o tráfico de escravos, explica. Os angolanos não só foram os primeiros africanos a ser levados para o Brasil como escravos, como foram os mais numerosos. Por isso, e fora, parcialmente, a religiosidade de origem africana — onde os traços dos povos do Golfo da Guiné são também muito visíveis —, a cultura brasileira é profundamente devedora da cultura angolana. Leia-se a obra fundamental O trato dos viventes, do historiador brasileiro Luiz Felipe de Alencastro, para aprendê-lo de vez.
A influência das línguas africanas de Angola no idioma português é, desde logo, de natureza lexical. Centenas de palavras originárias das referidas línguas foram incorporadas pela língua portuguesa, como, só para dar meia dúzia de exemplos, quitanda, quizomba, quitute, cafuné, muamba, carimbo e a celebérrima bunda. O Museu da Língua Portuguesa em São Paulo (no meio da pandemia sanitária e política que grassa neste momento no Brasil, foi uma boa notícia ter sabido da reabertura desse museu) tem uma secção apenas sobre essa herança. Acrescente-se, nesse sentido, que os estudos de Nei Lopes sobre o referido tema são muito interessantes.
Contemporaneamente, e numa espécie de segunda vaga dessa influência, várias palavras e expressões da gíria angolana, em especial luandense — como kota (os portugueses escrevem cota), garina, bazar, malaico e outras —, foram igualmente incorporadas por todos os falantes da língua. O “vazar” dos paulistas e logo espalhado por todo o Brasil pode ter tido origem no angolaníssimo “bazar”, que, como se sabe, significa “ir”, “ir embora”, “sair”. Eu, que morei alguns anos no Brasil, sou testemunha de que, quando os paulistas começaram a usar esse verbo, já os angolanos diziam “bazar”.
Além dessa influência lexical, as línguas angolanas de origem bantu também influenciaram de maneira clara a variante brasileira do português em termos de pronúncia, da abertura das vogais à própria tendência para a vogalização, que consiste em colocar sempre uma vogal entre duas consoantes (por exemplo, “pineu” em vez de “pneu”), assim como para omitir o “s” no plural (as línguas bantus também não usam “s” para o fazerem). Os dois últimos casos são percetíveis, sobretudo, na linguagem oral.
Por fim, podem ser identificadas influências das línguas africanas na estrutura do português falado e escrito no Brasil. Os exemplos mais comuns serão, talvez, a forma de conjugação dos verbos reflexos e a colocação dos pronomes.
Ou seja, a tão cantada plasticidade e sonoridade da variante brasileira do português resulta sobretudo das várias influências africanas que a mesma sofreu, sem esquecer, o contacto entre ela e as línguas indígenas ou nativas, de efeitos igualmente inevitáveis.
Além dessas relações históricas entre o português e as línguas africanas, é mister igualmente destacar o papel das literaturas africanas (como, desde muito antes, o da literatura brasileira) na expansão, rejuvenescimento e recriação da língua portuguesa. Mia Couto é, nos dias de hoje, o nome que primeiro vem à lembrança. Mas, a rigor, é imperioso convocar e lembrar, sobretudo aos mais novos, aquele que foi realmente revolucionário e fundante: José Luandino Vieira.
Recordo, aqui, a célebre frase de Amílcar Cabral: “A língua portuguesa é uma das melhores coisas que os portugueses nos deixaram”. Foi, precisamente, por terem-no reconhecido, que os povos das antigas colónias africanas de Portugal fizeram do português, como me disse Luandino uma vez em conversa, um “troféu de guerra”, transformando-o num instrumento não apenas da sua libertação, mas também da sua unidade interna, uma vez conquistadas as independências, e bem assim o seu primeiro veículo de comunicação internacional.
A língua portuguesa foi devidamente nacionalizada pelos nossos povos, tal como, antes, já havíamos nacionalizado a mandioca ou o milho, provenientes da América do Sul, assim como o cristianismo e, hoje, o fato [terno] e gravata, o computador e o smartphone. Por isso, ajudamo-la a construir-se, reinventar-se e expandir-se todos os dias, desde — repito — há séculos. Para dar um exemplo atual, os países africanos de língua portuguesa fizeram mais pela expansão do português em menos de 50 anos do que a antiga potência colonizadora em 500 anos.
A concluir, não posso deixar de observar que a crescente expansão da nossa língua comum deve-se igualmente à sua natureza. Para resumir, direi que a mesma é suficientemente plástica para absorver todas as influências, recriando-se, rejuvenescendo-se e modernizando-se permanentemente, sem pôr em causa a sua estrutura.
* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a variante angolana da língua portuguesa.