“Precisamos de rupturas”

Em seu quinto romance, "O som do rugido da onça", a pernambucana Micheliny Verunschk mergulha na “cosmovisão indígena”
Micheliny Verunschk, autora de “O som do rugido da onça”
01/05/2021

O quinto romance de Micheliny Verunschk, O som do rugido da onça, nasce de uma certa obsessão. Ao visitar uma exposição da Brasiliana no Itaú Cultural de São Paulo, a autora estava percorrendo os 500 anos de história do Brasil até se deparar com litografias de crianças indígenas que foram levadas por cientistas alemães — “como exemplares da fauna brasileira” — para a Munique no século 19.

Ao voltar para casa, buscou mais informações sobre o acontecimento, mas ficou no escuro. “Como não encontrei muito material, e sentia essa necessidade de pesquisar mais sobre elas, percebi que precisava escrever”, diz a vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura 2015, que contou com a ajuda de uma amiga de Munique para acumular material a respeito do crime cometido pelos alemães.

A pesquisa “bruta”, no entanto, foi apenas o começo da empreitada. Ao dar voz às crianças indígenas, e não aos exploradores, a autora se preocupou em acertar bem o tom da narrativa. “Os estereótipos sempre me incomodaram muito. Eu tinha muito medo e espero não ter resvalado nisso ao colocar o pensamento indígena”, explica.

Para fugir dos clichês, Micheliny conversou com indígenas e escritores indígenas, na intenção de chegar a uma expressão que fosse “verdadeira e respeitosa, sem cair no didatismo”.

No princípio, a ideia era fazer um romance histórico clássico, o que se reflete na levada antropológica da obra, mas o texto acabou seguindo outros caminhos — até os rios ganharam voz, por exemplo, em uma aproximação com a natureza que é cara à prosadora e muito representativa para a história.

E foi justamente na natureza que a escritora encontrou a “cereja do bolo”. Para conseguir se conectar com as personagens, que lhe pareciam fugidias, ela foi a um ritual de ayahuasca e, respeitosamente, fez duas perguntas à bebida: “Quem é minha narradora?” e “que relação posso ter com ela?”.

“Tenho certa implicância com uma literatura que acaba entrando nessa corrente indigenista e que trata o indígena de uma forma edulcorada, tutelada.”

A partir daí, lembrou-se de um episódio da infância, quando passou um dia todo perdida no Recife. A partir dessa lembrança, conseguiu sentir o “que é ser uma criança fora de casa, extraviada do afeto dos seus”. O livro ficou pronto três meses depois da experiência com o ayahuasca.

“Acho que ele [o ritual] conseguiu me aproximar de uma forma de narrar que não é mais a forma do caçador, mas a do olhar empático, de quem viveu a mesma coisa”, conta.

Com essa manobra literária, Micheliny põe em prática sua forma de perceber as coisas: não há mais tempo para embates entre um mundo que quer acreditar no discurso conciliatório entre predadores e presas e o outro, que acredita na conciliação possível. “A gente só deve fazer o novo doa a quem doer, precisamos de rupturas.”

O som do rugido da onça conta a história real de duas crianças indígenas raptadas no Brasil e levadas por cientistas alemães para Munique no século 19. Como você soube dessa narrativa e por que escreveu sobre ela?
Soube da história em uma exposição da Brasiliana no Itaú Cultural de São Paulo. O recorte curatorial dizia “500 anos de história”. Eu estava seguindo o percurso cronológico da história do Brasil nessas imagens, quando entrei numa sala muito impressionante, porque tinha essas litografias das crianças. Eu já conhecia essas imagens de algum lugar, reproduzidas em algum livro, mas quando as vi no original — são grandes, parecem muito vívidas —, me chamaram muito a atenção. O texto de parede dizia que tinham sido levados para a Europa “como exemplares da fauna brasileira”. Quando cheguei em casa, fui pesquisar. Queria saber mais sobre essas crianças e não achei muita coisa. Comecei a ficar um pouco obcecada pela história e por aquelas imagens. Voltei várias vezes à exposição, observando e refletindo sobre aquelas crianças. Com o passar do tempo, me perguntei o que eu queria com aquilo. Como não encontrei muito material, e sentia essa necessidade de pesquisar mais sobre elas, percebi que precisava escrever. Tive o auxílio imenso de uma amiga que mora em Munique e começou a me mandar material de lá. Quando comecei a pesquisa, além de consultar a coleção de três livros Viagem pelo Brasil (1817-1820), de Spix e Martius, esse material que me foi enviado abriu outra perspectiva, porque ele dá conta mais aprofundadamente do que aconteceu com essas crianças lá. No livro A nova Atlântida de Spix e Martius: Natureza e civilização na Viagem pelo Brasil (1817-1820), da professora Karen Macknow Lisboa, ela conta dessas rasuras que Martius faz. A história dessas crianças é extremamente mal contada por eles, é rasurada mesmo, em um momento ele diz uma coisa, depois diz outra. O que se desconfia é que essas rasuras foram intencionais, como uma forma de despistar o crime que eles cometeram.

• O livro traz não só um vocabulário indígena, mas todo pensamento e cosmologia desse povo. Como foi o processo de transformar material histórico e antropológico em texto literário?
Os estereótipos sempre me incomodaram muito. Eu tinha muito medo — e espero não ter resvalado nisso — ao colocar o pensamento indígena. Tive cuidado para que essas cosmologias não ficassem de uma forma folclórica, de uma forma que não capturassem bem a grandeza desses pensamentos. Acho que a forma mais eficaz de fugir dessa armadilha foi me aproximar dos narradores indígenas, de escutar. Conversei com indígenas durante o período de feitura do romance, me aproximei também dos escritores indígenas para tentar chegar a uma expressão ao mesmo tempo verdadeira e respeitosa, sem cair no didatismo.

• A polifonia da obra é perceptível. Há uma transição de vozes da floresta para a cidade — e para nosso presente. Muitas vezes, enquanto lia, fiquei com a impressão de que o leitor ideal talvez fosse um indígena.
Tem uma frase de que gosto muito do Viveiros de Castro, que venho citando nas conversas sobre o livro. Ele diz que no Brasil todo mundo é indígena, exceto quem não é. Gosto de adaptar essa frase: no Brasil todo mundo é onça, exceto quem não é. Então, quando se pensa no leitor ideal, em para quem esse livro foi escrito, eu gostaria que o livro conseguisse comover diferentes leitores. Que um leitor indígena se sentisse mobilizado do mesmo modo que um leitor não indígena (que também é indígena).

“Eu só poderia escrever esse livro de uma forma que não fosse a forma tradicional, tive que realmente ajustar o olho e sair do meu lugar.”

• Tem se falado muito de identidade na literatura contemporânea, mas gosto também de pensar a literatura como uma força de alteridade, como uma possibilidade de imaginar como é estar em outra pele, sair um pouco de si. Qual sua visão sobre o assunto?
Me incomoda muito o discurso da identidade porque ele pressupõe uma fixidez e um essencialismo que absolutamente não combinam com quem somos, com essa pluralidade de modos de ser e de viver e de pensar e de agir. E não combina também com a própria arte. Tenho uma certa implicância com a palavra identidade, essa coisa da raiz. O que é uma raiz? As pessoas usam a raiz como sinônimo de algo que fica plantado e estático, mas as raízes são as partes caminhantes da planta, então tudo é mobilidade, fato que o conceito de identidade não consegue abarcar.

• O romance faz com que o leitor se sinta na aldeia com a personagem, experimente a sua dor. Como os indígenas brasileiros assimilaram a narrativa? Já tem algum relato dessas leituras?
Nós fizemos uma live de lançamento (disponível no YouTube da Companhia das Letras para quem quiser assistir) com o Ailton Krenak, que assina a quarta capa do livro e foi um dos primeiros leitores. Eu estava muito nervosa com a leitura dele e acho que ele captou bem a atmosfera, a paisagem e a construção da narrativa. Principalmente os narradores não humanos. Ainda não tenho leitura de outros indígenas, espero ter e estou bem curiosa. Mas também estou ansiosa por outras vozes que contêm essa história, outras vozes indígenas inclusive, porque acho que essa história merece ser contada por outros narradores. Tanto do ponto de vista histórico quanto do ficcional.

O som do rugido da onça é uma narrativa de viagem que não fala de imigrantes europeus ou escravizados africanos vindos para cá, são crianças indígenas sendo levadas para o exterior. Como imagina a recepção do livro fora do Brasil?
Imagino esse livro sendo lido fora do Brasil no sentido de uma reflexão decolonial. Imagino ele sendo lido na Alemanha e em Portugal, não exclusivamente, mas porque esses foram lugares de passagem das crianças. Eu também sei que foi escrito um romance na Alemanha, na década de 1940, sobre essas crianças.

• No Brasil, tivemos a chamada “literatura indigenista”, em geral com autores brancos escrevendo histórias sobre personagens indígenas. Você entende seu livro como parte desse subgênero histórico-literário?
Como eu disse antes, é uma relação de estranhamento. Tenho certa implicância com uma literatura que acaba entrando nessa corrente indigenista e que trata o indígena de uma forma edulcorada, tutelada. Tenho uma preocupação grande em não repetir isso. Mas, ao mesmo tempo, não sou uma escritora indígena, sou uma escritora branca, com os meus privilégios de escritora branca. Não tenho como fugir a uma certa tradição que me antecede. O que faço com essa tradição é o que interessa, e se consigo ou não escapar das armadilhas dessa tradição. Isso não sou eu quem vai dizer, se eu consigo dar esse salto, é o leitor.

“Eu gostaria que esse livro conseguisse comover diferentes leitores. Que um leitor indígena se sentisse mobilizado do mesmo modo que um leitor não indígena (que também é indígena).”

• Além de o livro aproximar o leitor da personagem, como se estivesse junto dela na aldeia, há focos narrativos não humanos — rios e afins. Houve um cuidado especial nessa construção?
Sim. Comecei a escrever o livro como um romance histórico clássico, com aquela visão do outro que está ali apartado de mim. Mas vi que aquilo não funcionava. Eu só poderia escrever esse livro de uma forma que não fosse a forma tradicional, tive que realmente ajustar o olho e sair do meu lugar. Isso se deu de várias formas. Quando digo que fui procurar narradores indígenas para sair do narrador tradicional, da forma ocidental de contar uma história, tive que me perguntar quais eram as vozes que estavam concorrendo ali para falar. Não foi um trabalho simples. A minha narradora fugia de mim o tempo todo. A sensação que eu tinha era exatamente aquela de quando você vai conversar com alguns indígenas menos aculturados. Eles são bastante fugidios, e com razão. Quando estava escrevendo, tinha a sensação de que ela não queria me olhar nos olhos. De que ela não tinha interesse na minha curiosidade sobre ela. Essa sensação me acompanhou por um bom tempo na escrita, até que resolvi me aproximar dela de uma outra forma — e essa forma foi o uso da ayahuasca. Eu nunca tinha usado — aliás, sou bem careta em relação às substâncias alucinógenas —, mas vinha pesquisando sobre as relações sociais das plantas, sobre a sabedoria das plantas, sobre como os cientistas veem isso, até que achei que seria interessante talvez me aproximar da personagem por essa via. Saí da minha casa no sábado para um ritual e o mestre condutor me disse para fazer duas perguntas para o chá e eu respeitosamente perguntei quem era a minha narradora e qual era a relação que eu poderia ter com ela. O chá me aproximou da minha personagem me levando até meus seis anos de idade, quando me perdi do meu pai numa grande cidade, o Recife, e passei o dia todo perdida. Daí eu pude compreender ou pelo menos me aproximar do que sentia essa criança fora de casa, extraviada do afeto dos seus, uma criança perdida. O chá me aproximou da minha personagem me levando para essa situação e me levou a enxergar o mundo a partir da perspectiva de uma criança perdida. Eu não teria conseguido isso de outra forma, porque essa história para mim já estava resolvida, nem me lembrava mais. Mas o chá me levou justamente para aquele momento e depois me colocou dentro da percepção dessa menina. Foi aí que consegui concluir o romance, três meses depois do ritual. Acho que ele conseguiu me aproximar de uma forma de narrar que não é mais a forma do caçador, mas a do olhar empático, de quem viveu a mesma coisa.

• O romance é sobre estar perdida, sozinha. Quando se chega a Munique com os meninos, o rio de lá começa a falar. Entendo como uma cosmovisão: trata-se da expressão do cosmos inteiro, não só dentro da própria terra, então faz sentido que o rio fale.
Eu gosto muito de Isar — é uma personagem que consegue dar um acolhimento no momento de muito perigo. Considero-a uma das personagens mais fortes do livro. A ideia é que no pior momento, quando se está só e absolutamente perdido, você ainda tem o outro. Ainda tem o outro que pode te ouvir, que é esse mundo outro que a gente chama de natureza.

“Os estereótipos sempre me incomodaram muito. Eu tinha muito medo e espero não ter resvalado nisso ao colocar o pensamento indígena.”

• A história do romance não é contada pela visão dos exploradores, mas dos explorados — e por meio da narrativa ficcional. Por outro lado, nas últimas páginas surge uma resistência a essa possibilidade de ouvir e dar voz ao outro. Há um limite para a ficção?
Acho que há dois movimentos, um é o movimento da onça, da sentinela, de quem diz que essa história não pode se repetir. O outro é o movimento de Josefa, a personagem contemporânea, da reparação simbólica. Acho que essa é a tarefa do nosso tempo, tarefa em que a gente às vezes falha miseravelmente. Gosto muito de uma frase de Itamar [Vieira Junior], que ele disse em sua participação no Roda Viva: o tempo da conciliação acabou. O que a gente vê são embates entre um mundo que quer continuar acreditando no discurso conciliatório e de um mundo que sabe que essa conciliação é impossível. Acho que a intenção do livro não é exatamente essa, mas também acho que ele se alinha a essa ideia de que a partir daqui a gente só pode fazer o novo, a gente só deve fazer o novo doa a quem doer, precisamos de rupturas.

O som do rugido da onça
Micheliny Verunschk
Companhia das Letras
160 págs.
Tomaz Amorim Izabel

Nasceu em Poá (SP). Graduou-se na Unicamp e fez o doutorado em Teoria Literária na USP. É autor do livro de poesia Plástico pluma (Urutau).

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