As meninas, de Lygia Fagundes Telles, é um desses raros romances brasileiros que reúne, com imensa qualidade, a técnica com motivo político, sem que a segunda supere a primeira, as duas se unindo para realizar verdadeira revolução literária.
Basta uma leitura simples para verificar como isso se realiza, de forma a estabelecer a definitiva maturidade literária da autora, que tem o início da sua carreira marcada pelo romance Ciranda de pedra, e por contos que investigam a vida brasileira.
Os chamados puristas políticos não admitem o trabalho estético do escritor sob a alegação de que a literatura precisa acima de tudo denunciar as injustiças sociais sem nada que possa diminuir a sua importância. Mas uma coisa não elimina a outra em qualquer das direções. É claro que a denúncia social merece grande atenção. No Brasil, por exemplo, o compromisso social do romance atingiu o seu melhor momento em Lima Barreto e em Jorge Amado, sobretudo, no engajamento ao partido comunista do autor baiano, que se filiou ainda na década de 30 do século passado.
A questão se adensou gravemente depois que Jean-Paul Sartre considerou que a literatura devia se manter vigilante na denúncia social enquanto existisse fome no mundo. O engajamento se deu imediatamente, em alguns casos rejeitando-se aquilo que se denominou de “literatura alienada”.
No início da década de 1970, Lygia cuidou de equilibrar a questão, pelo menos no Brasil, com este romance exemplar, em pleno boom literário da América Latina. Assim, a “forma” passou a ter a mesma importância do “conteúdo”, termos convencionais na crítica literária da época. Lembrando que o Brasil já tivera um grande escritor que conciliara, com habilidade, os dois polos: Graciliano Ramos.
Com decisões fortes e objetivas, Graciliano sempre defendeu a necessidade de uma literatura em que a técnica ocupasse um lugar importante. O argumento mais decisivo que apresentou foi, sem dúvida, a própria obra, sobretudo em Memórias do cárcere — em três volumes densos — e no romance Vidas secas, que se impôs pela imensa qualidade técnica.
Em As meninas, Lygia conta a história de três moças paulistas contemporâneas, com caracteres bem definidos: Lorena, rica, fina, elegante, intelectual; Ana Clara, envolvida com drogas, liberada, problemática; Lia, extremamente politizada, envolvida com a luta armada. São arquétipos do nosso tempo, conforme Cristovão Tezza afirma em posfácio do romance, na edição da Companhia das Letras, de 2015.
Todo o romance transcorre no período de dois dias, o que para Lygia é tempo suficiente para examinar, revelar e contestar a ditadura militar de 21 anos que atravessamos nos anos 60, 70 e 80, com incrível habilidade narrativa. E onde a técnica é tão necessária quanto conteúdo. A forma e o conteúdo reúnem-se para realizar a verdadeira obra de arte.