Um demônio frouxo e louco

“O coração das trevas” é narrado por Charlie Marlow, um homem do mar que viaja ao encontro de um insano, o mesmo demônio que, nós também, hoje encaramos
Ilustração: Thiago Thomé Marques
01/05/2021

Trevas. Cada dia mais, elas se adensam. Quando olho para frente, o que consigo ver? Quase nada. Todos — pelo menos os que ainda acreditamos na vida — sentimos isso. Para combater o desalento, ocorre-me reler um pequeno livro que marcou minha juventude: O coração das trevas, de Joseph Conrad. Talvez ele possa ser uma chave, embora as portas que nos prendem não tenham fechaduras. Ainda assim, acredito, ele pode me ajudar.

O polonês, naturalizado britânico, Joseph Conrad publicou O coração das trevas em 1906. Tinha 39 anos de idade. Apaixonado pelo mar, e depois desiludido com tantos infortúnios, abandonou a carreira marítima. Está de volta a Londres. Casa-se. Já é o autor, entre outros, de A loucura de Almayer, um de seus mais belos livros, de 1895.

As Trevas não se dissipam. Mais uma vez, Conrad deve enfrentá-las. Inspira-se em uma viagem que fez ao Congo, no ano de 1890. Nela aprendeu que o apagamento do mundo pode, ainda assim, produzir um novo olhar. Um olhar que rompe a escuridão. Não importa se ele está na selva fechada, ou no meio do oceano. Rememora: “Além da linha do horizonte marinho, o mundo para mim não existia mais, assim como não existe para os místicos que se refugiam no topo de altas montanhas”.

As Trevas, Conrad acredita, podem se converter em uma nova forma de luz. O coração das trevas é narrado por Charlie Marlow, um homem do mar. O grande mar é um espaço vazio que pede preenchimento. Você o observa, e não vê nada. Mas é justamente desse nada, desse horripilante nada, que alguma coisa pode sair. É como hoje: apesar dos destroços que nos cercam, ainda é possível acreditar.

Antes de iniciar a subida do Rio Congo, já na África e em uma vila deserta, Marlow depara com duas mulheres silenciosas, que estão a tricotar. Sente um desconforto estranho. As mulheres se limitam a observá-lo. Nada acontece, mas é nessa paralisia que algo se anuncia. “Já longe, com frequência pensava naquelas duas vigiando a porta das Trevas, tricotando lã preta como para uma cálida mortalha.”

Alguns leitores de Conrad veem nessa visão das Trevas — que, em seu livro, emergem da África Negra — uma forma de racismo. Talvez seu livro guarde, mesmo, deploráveis ranços racistas, que devem, sim, ser criticados. Para além deles, porém, o relato abre uma discussão dolorosa a respeito das faces do Mal. As Trevas — o Mal — estão em qualquer lugar. Escondem-se, também, no coração de homens brancos e “civilizados”, como hoje sabemos tão bem.

As mulheres que tricotam são sinais. Ou os agarramos, ou nada teremos. Marlow deve subir o Rio Congo em um pequeno vapor. Viaja ao encontro de certo Sr. Kurtz, que está encarcerado em um porto comercial. Para chegar ao vapor, precisa atravessar a selva. Nela, descobre “a existência de um demônio frouxo e louco, de olhar débil e enganador”. Um insano poderoso. O mesmo demônio — branco, ético e limpo — que, nós também, hoje encaramos.

Marlow segue em frente. As Trevas se adensam. Em seu vapor francês, ele navega “à beira de uma selva colossal, tão verde-escuro que parecia quase negra”. Quanto mais avança — como nós mesmos hoje, perdidos, avançamos —, mais a escuridão se fecha. A selva permanece imóvel — como as duas mulheres que tricotam em silêncio. Mais uma vez, nada acontece. Cresce em Marlow, porém, a sensação de “um vago e opressivo assombro”.

A descrição que Joseph Conrad faz das Trevas evoca um pensamento que aparece em Juventude, relato que publicou em 1902. Nele, narra a primeira viagem de Marlow através dos oceanos. Depois de infortúnios e desastres, o viajante medita: “O homem nasceu para a dificuldade, para os navios que fazem água e para os navios que se incendeiam”. Está tudo dito. As Trevas são uma sucessão interminável de desgraças. Enquanto elas nos oprimem, um demônio louco e incompreensível se limita a rir.

Como enfrentar o irracional? Como combater as Trevas? Como lutar contra um demônio frouxo e louco? Só existe uma saída: insistir em viver.

Observando o gerente de um porto comercial, Marlow medita: “Não era capaz de criar nada, somente mantinha as coisas funcionando – era tudo”. Ainda pensa: “Talvez fosse oco por dentro”. O projeto do demônio é nos transformar nesse velho gerente de coração vazio. É fazer de nós, zumbis. Que trabalhemos sem parar e, sobretudo, sem pensar. Que a vida se resuma ao nada. Contra isso, Marlow luta. Não contra essa ou aquela raça, ou tradição, mas contra o horror.

“Tenho a impressão de que estou tentando contar um sonho (…) onde aflora essa mistura de absurdo, surpresa e encantamento”, Marlow descreve. Não há sentido algum. Nenhuma lógica funciona. Puro arbítrio. Olhando os homens que se debatem contra a selva — “uma grande parede de vegetação imóvel” —, Marlow compreende que, em meio às Trevas, mais do que compreender, temos que fazer. “Eles podem ver o resultado final, mas nunca dizer o que realmente significa.”

Retorno a Juventude. Também nesse relato precoce, Conrad descreve o assombro provocado pela visão de homens que, mesmo sem saber por que lutam, mesmo às cegas, continuam a combater. Enfrentam um demônio louco. Não sabem dizer, nem mesmo, onde ele está. O que, apesar de tudo, ainda os leva a agir? “Era alguma coisa que havia neles, alguma coisa inata, sutil, duradoura.” Algo que ultrapassa e despreza as circunstâncias, já que elas são incompreensíveis e imprestáveis. Algo que vai além da compreensão, do preconceito e do medo.

“Subir aquele rio era como viajar no tempo de volta aos primórdios do mundo.” Invertendo o tempo, Marlow rasteja de volta em direção a Kurtz. Esbarra com seres que parecem inumanos — e aqui seus ranços racistas ressurgem. Sofre ataques. Sem compreender e sem lembrar de nada, simplesmente segue. “Estou tentando compreender mais claramente quem era…o Sr. Kurtz… o espectro do Sr. Kurtz.” Marlow precisa admitir que nada sabe. Seu orgulho branco se desmancha.

Na ignorância, lidando com inimigos que têm a aparência de fantasmas, Marlow segue. Descobre, aos poucos, que o Sr. Kurtz é um homem sem limites, que faz o que lhe dá na cabeça. Como enfrentar o irracional? Como combater as Trevas? Como lutar contra um demônio frouxo e louco? Só existe uma saída: insistir em viver.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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