Conflitos da modernidade

A memória, o inconsciente e a subjetividade nas obras de Charles Baudelaire, Henri Bergson, Marcel Proust, Sigmund Freud e Walter Benjamin
Ilustração: Tereza Yamashita
01/05/2021

A memória é um tema que há séculos vem ocupando lugar de destaque em diversas disciplinas, como a medicina, a psicologia, a filosofia e a literatura. Do grego, memória significa algo como ação de lembrar, recordar aquilo que permanece no espírito.

No ensaio Sobre alguns temas em Baudelaire, Walter Benjamin lembra que no texto Matéria e memória (1896), o filósofo francês Henri Bergson dá um importante salto em relação ao entendimento de que existiria uma memória compartilhada, que fosse de algum modo absoluta, e propõe um outro paradigma. A partir de então, entende-se que a percepção subjetiva determina a memória tanto quanto os fatos objetivos. Mas vale lembrar que Bergson permanecia muito ligado à biologia e se referia ao corpo, à anatomia, então pensava em percepção como algo de natureza cognitiva, relacionada ao intelecto.

Quando Marcel Proust publica Em busca do tempo perdido, entre 1913 e 1927, apresentando a ideia de memória involuntária, está se aproximando de um conceito que a psicanálise definiu como o “inconsciente”. Nesse sentido, podemos dizer que as ideias propostas por Proust, que foi muito próximo de Bergson, estariam mais alinhadas com as ideias de Freud do que com a teoria bergsoniana sobre a memória. Na clássica cena de O caminho de Swann, primeiro volume da série de Proust, o protagonista prova o chá com madeleine e abre uma porta que permite acessar lembranças vívidas de sua infância, um processo que em muito se assemelha ao que Freud chamou de “livre associação”. Então ele vislumbra Combray, a cidade pacata onde cresceu, com detalhes há muito “esquecidos”, que estariam de alguma forma reprimidos até então.

Em sua obra, Proust extrapola a ideia de memória consciente, facilmente acessada, e apresenta essa outra face, que ele chama de memória involuntária e que surge para revelar que o que estava “esquecido”, indisponível ao consciente, continua inscrito em algum lugar e pode retornar. Esse lugar misterioso só seria acessado através de um objeto capaz de trazer experiências muito profundas à tona, como foi o chá com as madeleines.

Entretanto, esse objeto não é como uma chave que sempre abre a mesma porta. Se o protagonista voltasse a provar a mesma madeleine com o mesmo chá, provavelmente não conseguiria resgatar a mesma sensação. Foi um conjunto de fatores que confluiu para que, naquela ocasião, ele fosse afetado daquele modo. Essa experiência seria em parte fruto do acaso, de nada adiantaria persegui-lo. Uma pessoa poderia passar a vida buscando esses objetos sem nunca encontrá-los.

Nesse recorte, Benjamin aproxima Proust da psicanálise e faz uma distinção entre memória voluntária (consciente) e memória involuntária (inconsciente). Para isso, menciona o texto Uma nota sobre o bloco mágico (1925), em que Freud usou a analogia do brinquedo infantil para ilustrar a ideia daquilo que está inscrito, embora de maneira invisível, e que deixa rastros no consciente. O quadro-mágico é um brinquedo em que é possível escrever ou desenhar em uma tela que não retém a tinta, de modo que os inscritos desaparecem. Freud usa a imagem para ilustrar a ideia de que aquilo que está “perdido” continua deixando rastros, produzindo efeitos. Não foi completamente esquecido ou descartado, apenas não está disponível de maneira consciente.

Essa discussão se torna ainda mais relevante se pensarmos no contexto histórico: Bergson, Proust e Freud eram sujeitos modernos, cindidos entre o fluxo do mundo externo e as pulsões e conflitos do mundo interno. Benjamin lembra que a subjetividade ganhou uma importância antes impensável a partir de Baudelaire: ao poeta é atribuída a paternidade do modernismo; para o poeta, o artista precisava se comprometer com sua visão, reverberar o mundo a partir da sua subjetividade. Já não bastava seguir o modelo do Classicismo, continuar representando o mundo como os antigos faziam. Para trazer algum frescor à arte e ser capaz de acompanhar as mudanças históricas, era preciso implicação subjetiva.

À pergunta “o que seria uma arte pura?”, proposta por ele mesmo, Baudelaire respondia que era a arte que pudesse conter, a um só tempo, o objeto e o sujeito, o mundo e o artista. Portanto, não é o caso da defesa de uma subjetividade extremada, o que o próprio Baudelaire também criticou, mas sim da busca por uma medida em que mundo externo e mundo interno pudessem coexistir de maneira singular, e se influenciar mutuamente.

Em contraponto ao período histórico que antecedeu a Revolução Industrial, o mundo moderno surgiu a princípio como um sopro de esperança: no lugar das castas delimitadas e fixas, a nova circulação de dinheiro permitia mobilidade social e novas questões de identidade. Mas o que se anunciou como uma promessa de liberdade, de autonomia, acabou por se revelar um paradoxo: contra a multidão e o fluxo do mundo capitalista, o que poderia o eu?

Baudelaire escreveu importantes poemas que tratam da vida nas grandes cidades, esvaziada de sentido. Se de um lado defende a importância de dialogar com seu tempo, também reflete sobre o tempo perdido. Fala da nostalgia dos sinos que dobram aos domingos, mas agora desprovidos dos rituais que antes os acompanhavam, como metáfora desse eco que fica e nos remete a uma memória mais profunda, inconsciente. Contrapõe a ideia do flâneur, a pessoa que vagueia contemplando a cidade, à de uma multidão disforme, que engole singularidades e transforma a humanidade numa massa amorfa.

Benjamin contrapõe ainda os conceitos de vivência e experiência para Baudelaire: o primeiro poderia dialogar com a proposta de Bergson (o intelecto, a percepção), a memória voluntária de Proust e o que Freud chamou de consciente; o segundo com a memória involuntária proustiana e o inconsciente freudiano.

Baudelaire defendia a busca pela subjetividade que está implicada no segundo caso. Para ilustrar, Benjamin retoma o embate entre a fotografia e a pintura. A fotografia estaria a serviço do primeiro, ao retratar uma vivência de maneira mais objetiva, enquanto a pintura estaria a serviço do segundo, ao exprimir uma experiência, visão subjetiva ou sentimento. Ao valorizar a experiência sobre a vivência, Baudelaire rompeu barreiras e criou uma nova forma de pensar o mundo e o sujeito.

Em seus sonetos, Baudelaire utiliza a forma clássica, mas traz para a poesia lírica temas antes impensáveis, como em Uma carniça. O próprio título de seu livro mais importante, a antologia As flores do mal (1857), é bastante simbólico: em uma mesma expressão reúne o eco da Antiguidade, a beleza calma das flores, e o desejo do novo, o corte que inaugurou definitivamente a modernidade: são flores, porém do mal. Antecipa assim um mal-estar que só escalonou com o tempo. Basta olhar para os nossos dias.

Fabiane Secches

É psicanalista, crítica literária e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Autora de Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência (2020).

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