🔓 As línguas que me habitam

Uma conversa com a poeta Prisca Agustoni sobre como Ă© transitar por diversas culturas, linguagens e idiomas no mundo atual
Ilustração: Carolina Vigna
01/05/2021

Conversa com Prisca Agustoni

1.
Carola: A gente se conheceu num evento em Juiz de Fora, na época eu tinha acabado de lançar Flores azuis, acho. Conversamos e fiquei com muita vontade de te ler. Desde então acompanho com entusiasmo teu trabalho, mas é mais que isso, sinto que às vezes, nas entrelinhas, caminho ao teu lado, ao lado das tuas palavras. E me emociono.

Prisca: Sim, Carola, me lembro bem. Foi muito emocionante te conhecer naquele dia. Lembro de ter voltado para casa aquela tarde com a convicção de querer mergulhar de cabeça na escrita em lĂ­ngua portuguesa (escrevo em outras 2 lĂ­nguas e isso, apesar de ser muito rico, traz tambĂ©m alguns conflitos e negociaçÔes, principalmente no que diz respeito ao tempo que cada uma das lĂ­nguas me exige, e ao espaço mental que cada uma ocupa). Foi uma linda tarde de sol, a casa estava iluminada. Lembro de ter pensado exatamente isso: Prisca, tem que se priorizar, tem que abrir janelas imensas de tempo na sua vida para escrever. Ponto final. Esse encontro contigo me deu mais força, inclusive porque naquela altura vivia dividida entre poesia, prosa, escrita acadĂȘmica, famĂ­lia (jĂĄ tinha os dois filhos, um bem pequeno). Acho que hoje consegui resolver melhor as vĂĄrias pontas da minha trajetĂłria, assentei melhor em algumas delas, os filhos cresceram um pouco, aprendi a resolver de forma mais prĂĄtica o que Ă© urgente e irrefutĂĄvel, e a recusar o que nĂŁo Ă© essencial para a escrita. Acho que aprendi a me priorizar, e isso nĂŁo Ă© pouca coisa para uma mulher que tem filhos e emprego e quer acima de tudo se dedicar Ă  escrita. Sua escrita me move para uma profunda identificação. Acho que tem a ver com o fato de partilharmos experiĂȘncias de migração dentro das lĂ­nguas e das culturas, e isso acaba forjando uma visĂŁo do mundo mais estilhaçada, mais complexa, talvez, mais opaca, menos uniforme. NĂŁo sei, mas sinto essa conexĂŁo com seu trabalho, que Ă© fonte de inspiração e de força. NĂŁo sei se cheguei a te dizer isso alguma vez, mas Ă© bom que possa fazĂȘ-lo agora…

Carola: Que alegria saber disso, fico muito feliz. Eu sinto esses encontros como uma força coletiva, ou mais especificamente, uma energia que flui em todas as direçÔes e, na possibilidade do diĂĄlogo, a gente vai pensando aquilo que ainda nĂŁo pensou ou ressignificando ideias anteriores. Acredito muito na potĂȘncia desse pensar junto, ainda mais no caso das escritoras, nĂłs que viemos de uma tradição tĂŁo masculina, em que o pensar com o outro ou a partir do outro era quase sempre em relação ao homem. Para mim, dialogar com outras mulheres tem sido um dos aspectos mais enriquecedores da minha experiĂȘncia literĂĄria. E inclusive trazer para essa conversa assuntos que antes eram considerados “pequenos demais” para fazer parte do mundo literĂĄrio, como por exemplo, como conciliar filhos, casa, emprego e literatura.

2.
Carola: Sempre achei que quando tivesse filhos eu falaria com eles em portuguĂȘs, mas aĂ­, quando a minha filha nasceu, veio a surpresa, era totalmente impossĂ­vel falar com ela em outra lĂ­ngua que nĂŁo fosse o espanhol, o espanhol que eu ouvi criança, o espanhol que a minha avĂł falava comigo, o espanhol das cançÔes que minha avĂł cantava para mim. Naquele momento me dei conta que aquilo, aquele ritmo, aquelas palavras estavam gravadas em mim, eram parte do meu corpo, da histĂłria do meu corpo. E isso, o mais curioso, Ă© algo completamente separado do fato de eu escrever literatura em portuguĂȘs e isso (o portuguĂȘs) ser o lugar onde eu me sinto em casa. Como se cada idioma estivesse num compartimento diferente. Com meus irmĂŁos falamos num espanhol carioca, ou seja, um espanhol permeado de gĂ­rias em portuguĂȘs. Agora que estou na Alemanha e um dos meus irmĂŁos tambĂ©m mora aqui, falamos um espanhol carioca germĂąnico, nĂŁo sei onde isso vai parar (risos). Ah, quando eu falo com bichos e plantas, falo em espanhol (sem gĂ­rias). Me lembrei agora, eu tinha um cachorro quando morava no Rio, e sempre que saia para passear com ele falava em espanhol, as pessoas achavam engraçado, eu tambĂ©m, me sentia meio ridĂ­cula, mas nĂŁo conseguia fazer de outra forma.

Prisca: Sim… viver entre as lĂ­nguas gera essa mistura muito engraçada. Mas acho que Ă© bem isso: a lĂ­ngua Ă© corpo, Ă© a pele do pensamento, Ă© a maneira como recebemos e trocamos a percepção interior e exterior do mundo, e tambĂ©m como a gente filtra essas percepçÔes atravĂ©s do pensamento. Determinada forma de organizar e estruturar pensamento & sentimento. Percebo esse funcionamento como uma via de mĂŁo dupla: a lĂ­ngua acaba trabalhando, em nĂłs, uma sensibilidade, uma atitude sensĂ­vel perante o mundo. E cada lĂ­ngua que nos habita e atravĂ©s da qual nos expressamos, Ă© uma ampliação desse canal sensĂ­vel, um canal a mais para conhecer o mundo e si mesmo. No meu caso, ocorre essa mistura sempre, porĂ©m como minha primeira lĂ­ngua do afeto e das relaçÔes com a famĂ­lia, na verdade, Ă© um dialeto — que nĂŁo sei escrever —, acredito que isso influenciou muito minha relação fluida com as lĂ­nguas. Porque o italiano (oficialmente minha “lĂ­ngua materna”), acaba que nĂŁo Ă© a lĂ­ngua de berço. Essa primeira abordagem com a lĂ­ngua do afeto mais Ă­ntimo (nunca falo italiano com a famĂ­lia na Suíça) afetou meu instinto antropofĂĄgico com as lĂ­nguas e minha capacidade de aquisição delas. Quando vivi em Genebra, falava francĂȘs como se tivesse nascido ali, e hoje escrevo poesia e narrativa em francĂȘs. Fui para Genebra para cursar a Faculdade de Letras e Filosofia, estudei lĂ­ngua e literaturas hispĂąnicas, vivia praticamente 24h por dia em contato com amigos que falavam espanhol… Tinha 20 e poucos anos e jĂĄ transitava entre o dialeto, o italiano da formação escolar, o francĂȘs (primeira lĂ­ngua estrangeira e primeira paixĂŁo, que aprendi com 8 anos), o espanhol, o alemĂŁo e o inglĂȘs na convivĂȘncia entre amigos e afetos. O portuguĂȘs foi essa margem que entrou a partir dos 25 anos e que nunca mais saiu. E que mudou minha rota, uma espĂ©cie de equinĂłcio, uma deriva inesperada na minha trajetĂłria, inclusive literĂĄria. Ao me mudar para o Brasil, em 2002, as lĂ­nguas que ficaram mais presentes no dia a dia foram o italiano (atĂ© por conta do trabalho de professora de literatura italiana na universidade) e o portuguĂȘs. Aos poucos, percebi o quanto sentia falta da coexistĂȘncia simultĂąnea de todas as lĂ­nguas que sou. Era uma sensação fĂ­sica mesmo, como se estivesse deixando secar algo em mim. Em particular me doĂ­a o silenciamento do francĂȘs — que jĂĄ nĂŁo estava falando com ninguĂ©m, no Brasil, pois nĂŁo o usava nem em sala de aula, nem em famĂ­lia. Foi nesse momento que decidi que minha forma de deixar essa lĂ­ngua viver, uma parte fundamental de mim (como se fosse um braço adormecido), ia ser atravĂ©s da escrita — se eu sou escritora, nada mais justo e natural que deixar essa lĂ­ngua florescer naquilo que me constitui. Desde entĂŁo escrevo em francĂȘs, italiano e portuguĂȘs, com algumas incursĂ”es no espanhol — afinal, foram 10 anos de vida sĂł lendo autores hispĂąnicos, convivendo com amigos latino-americanos que marcaram profundamente meu universo estĂ©tico, afetivo, simbĂłlico, e que em momentos atĂ© difĂ­ceis dessa etapa de vida, quando saĂ­ de casa aos 18 anos para morar sozinha numa cidade cosmopolita e me sustentar, foram minha tĂĄbua de salvação: as noites de violĂŁo tocando Violeta Parra, Silvio Rodrigues e Pablo MilanĂ©s, as conversas sobre a poesia negra cubana, a descoberta da obra de Alejandra Pizarnik, as festas tradicionais andinas dos queridos amigos peruanos, as tertĂșlias na livraria hispano-americana onde trabalhei por um longo perĂ­odo, as viagens para o Peru, o MĂ©xico, Cuba… Sinto profunda saudade desse mundo mais cosmopolita e de falar vĂĄrias lĂ­nguas ao mesmo tempo!

Carola: VocĂȘ me fez lembrar das minhas vivĂȘncias com o mundo hispĂąnico, que aconteceu, curiosamente, quando eu vim morar na Alemanha pela primeira vez. Eu tinha 24 anos, e atĂ© entĂŁo, com exceção dos livros (da literatura), o mundo em espanhol era um mundo da famĂ­lia. Mas quando fui estudar na Alemanha fiz muitos amigos colombianos, chilenos, argentinos, equatorianos, etc., e de repente aquele mundo se revelou num espaço do lado de fora, e foi algo muito lindo, descobrir que existiam outras pessoas que ouviam Violeta Parra, Silvio Rodrigues… Sempre acho curioso que isso tenha acontecido na Alemanha, de certa forma aponta para a pouca troca que hĂĄ entre o Brasil e o resto da AmĂ©rica Latina, Ă© uma pena, porque temos tanto em comum, temos toda uma histĂłria colonial em comum. Mas Ă© claro, esse sintoma Ă© um resultado do prĂłprio processo de colonização do continente e sua polĂ­tica pĂłs-colonial.

3.
Carola: Gosto muito do livro da Sylvia Molloy Vivir entre lenguas, cito aqui um trecho que me parece a essĂȘncia do que ela diz: “Siempre se escribe desde una ausencia: la elecciĂłn de un idioma automĂĄticamente significa el afantasmamiento del otro pero nunca su desapariciĂłn. Ese otro idioma en que el escritor no piensa, dice Roa Bastos, lo piensa a Ă©l”. Me pergunto, como se dĂĄ isso quando escrevemos literatura, eu sei que se escrevesse em espanhol eu seria outra escritora, por muito tempo achei que essa “outra escritora” era apenas uma possibilidade nĂŁo vivida, mas agora suspeito que nĂŁo, talvez ela tenha estado ali o tempo todo.

Prisca: Sim, te entendo. SĂŁo reflexĂ”es que me atravessam constantemente. Penso muito nisso quando escrevo, hoje de forma consciente. A maneira como a lĂ­ngua bate entre meus dentes, ao falar em portuguĂȘs, me devolve em parte os sonidos dos dialetos familiares, que hoje uso quando falo com minha mĂŁe e meus irmĂŁos — mas que receio perder, algum dia, jĂĄ que sĂł posso falar com eles, com ninguĂ©m mais. JĂĄ perdi minhas avĂŽs e meu pai, trĂȘs guardiĂ”es importantes dessas lĂ­nguas orais. E eu vou falando cada vez menos nessas lĂ­nguas que sĂŁo como minha placenta. Por outro lado, quando escrevo, tenho presente em mim a cantilena desses dialetos e das outras lĂ­nguas — a prosopopeia do francĂȘs, por exemplo, Ă© algo que me habita profundamente, a ponto de eu reservar um tempinho, todo dia, para falar francĂȘs em casa, sozinha, em voz alta, sĂł para poder me ouvir. Bizarro, nĂŁo Ă©? Mas Ă© que amo a carnalidade das palavras, pronunciĂĄ-las. Sentir que giram em minha boca. Quando escrevo poesia em portuguĂȘs, por exemplo, tenho consciĂȘncia de que tento inserir a mĂșsica do italiano, o corte rĂ­tmico das palavras italianas, secas, montalianas. Sem dĂșvidas, nĂŁo seria a mesma escritora, nem a mesma pessoa, se nĂŁo tivesse incorporado na minha escrita — e na minha vida — as lĂ­nguas que sĂŁo minhas boias de ancoragem. Agora, Carola, te pergunto: VocĂȘ tem consciĂȘncia dessa presença do espanhol na sua forma de escrever? JĂĄ pensou em escrever direto em espanhol ou alemĂŁo tambĂ©m? Pergunto isso porque para mim, a partir do momento que decidi assumir essas vĂĄrias vozes — ou que elas resolveram se impor naquilo que tenho de mais precioso e Ă­ntimo que Ă© minha escrita — foi um processo liberatĂłrio, como se minha existĂȘncia como pessoa e como escritora se tornasse mais completa, mais densa e mais integrada no mundo. Hoje sou esse conjunto de lĂ­nguas que ressoam concomitantemente, cada uma com sua especificidade. No meu Ășltimo livro, O mundo mutilado, tem um poema no qual falo disso (e que jĂĄ publiquei num livro em francĂȘs):

Porque sou outra em cada lĂ­ngua, /mudo de endereço // anjo, raposa, sereia, peixe-espada // porque Ă© impossĂ­vel escondĂȘ-los/ pois dormem todos comigo // levanto cedo / temendo que eles acordem/antes de mim / e comecem a brigar pela minha boca.

Carola: Sabe que a sua pergunta me atravessou de alguma forma? Comecei a pensar de maneira mais profunda sobre isso. Eu sempre disse, em entrevistas e para mim mesma, que nunca escreveria em outro idioma que nĂŁo o portuguĂȘs. Mas nunca pensei muito no porquĂȘ disso. Lembro que um dia eu comecei a escrever algo em espanhol e aquela escritora que eu vislumbrava ali me trazia imensa angĂșstia. Hoje entendo que talvez a lĂ­ngua portuguesa tenha me protegido de muita coisa e de certos traumas da infĂąncia, como se ao aprender portuguĂȘs eu tivesse criado uma espĂ©cie de lugar seguro. Penso, agora te escrevendo, pela primeira vez, que talvez a lĂ­ngua portuguesa tenha me salvado. Mas talvez tenha chegado a hora de enfrentar certos fantasmas e compreender o que eles sĂŁo, ou que outras possibilidades eles trazem. Ah, achei linda a imagem, vocĂȘ caminhando pela casa e falando sozinha em francĂȘs!

Prisca: Agora estĂĄ ficando mais difĂ­cil esse meu peregrinar solitĂĄrio na casa falando em francĂȘs, pois tenho filha adolescente que estĂĄ muito interessada no mundo do Oriente e me contagiou. Estamos juntas no desafio da lĂ­ngua coreana e estou gostando muito!

4.
Carola: Pensei agora num poema seu, que saiu na Revista Capitolina e faz parte do seu prĂłximo livro, Mundo mutilado, que sai pela QuelĂŽnio. E que eu conheci no inĂ­cio deste ano quando vocĂȘ esteve aqui, na universidade. É um poema que me emociona das mais diferentes formas.

cette langue qui tue ma langue maternelle:

a lĂ­ngua inimiga entra
pelos ouvidos e escorre
até à aorta 

ali espera e rosna

um cĂŁo que sabe
o estranho Ă  espreita
atrĂĄs da porta

nessa lĂ­ngua feita cĂŁo
que ladra
e rĂłi o osso
da lĂ­ngua morta

a operĂĄria hĂșngara
escreve seu caderno
como uma Penélope,
mais uma,
ela prĂłpria no exĂ­lio
tecendo
sua mortalha:

Agota Kristof
espera
a volta da lĂ­ngua
sacrificada,
a certeza da escrita
como Ășnica casa

rascunho eterno
numa lĂ­ngua torta

Prisca: Sim, gosto muito desse poema, primeiramente porque a Agota Kristof Ă© uma das autoras que leio e releio e cuja trajetĂłria biogrĂĄfica e literĂĄria mobiliza reflexĂ”es constantes. Ela expressou muito bem esse sentimento de estranhamento diante da nova lĂ­ngua — o francĂȘs que ela aprendeu, jĂĄ adulta, quando chegou como refugiada na Suíça — como sendo uma lĂ­ngua inimiga, por rasurar a lembrança e o uso do hĂșngaro, sua lĂ­ngua materna. E porque sua obra literĂĄria — sua permanĂȘncia, como autora, dentro de uma tradição literĂĄria — se deu a partir do francĂȘs. A fricção que acontece entre as lĂ­nguas que sĂŁo corpos vivos, que se tocam, se esbarram, se abraçam, por vezes se rejeitam… me interessa muito observar esse fenĂŽmeno e entender como ocorre nos outros. Me ajuda a entender meus movimentos. JĂĄ tive momentos de recusa momentĂąnea do portuguĂȘs — uma relação de paixĂŁo e Ăłdio, talvez — quando, num momento difĂ­cil da minha vida, jĂĄ no Brasil, percebi que estava usando sĂł essa lĂ­ngua com os filhos e comigo mesma, por ser engolida pelo ritmo frenĂ©tico de vida do cotidiano, que nĂŁo deixava muito espaço para a pausa e a lentidĂŁo de outra lĂ­ngua em gestação, no interior da famĂ­lia. Me senti sufocar debaixo de uma onda gigantesca da qual nĂŁo conseguia emergir. Se nĂŁo tomasse cuidado, me tornaria pela primeira vez na vida um ser monolĂ­ngue. Isso me apavorou. Me senti amputada, sabe?, foi um momento estranho, nĂŁo esperava sentir isso. Me senti furtada de uma parte fundamental de mim, num momento em que minha vida no paĂ­s estava deslanchando. Minhas asas estavam murchando. Acho que Ă© um sentimento que experimentam muitos dos que migram, essa ferida. Eu senti esse corte com intensidade, e em algum momento começou a sangrar. Mas foi algo que me fez bem, percebĂȘ-lo, quero dizer, porque depois veio a consciĂȘncia de que precisava assumir plenamente essas lĂ­nguas, esses mundos. A literatura me ajudaria a abrir minhas asas para o mundo. No livro O mundo mutilado deixei isso mais explĂ­cito, e Ă© o que pretendo fazer daqui em diante: explicitar essa pluralidade, esse portuguĂȘs contaminado, esse italiano contaminado, essa poesia contaminada que Ă© a minha vida. VocĂȘ se sentiu em algum momento furtada de algo, de uma parte da sua vida, por conta dessas idas e vindas entre as lĂ­nguas?

Carola: Sim, sempre. Eu nasci em espanhol, aos trĂȘs anos (quando cheguei ao Brasil) comecei a aprender o portuguĂȘs, mas fui alfabetizada em inglĂȘs (o que Ă© uma loucura) e logo depois, aos oito anos entrei para o colĂ©gio alemĂŁo. Eu me sentia pertencente a nada e a lugar nenhum. Mas a origem desse sentimento nĂŁo estĂĄ aĂ­, porque eu podia ter passado por tudo isso de uma forma muito feliz. Acho que o problema vem de uma primeira ruptura que foi traumĂĄtica, a vinda para o Brasil, no sentido que foi uma vinda que carregava toda uma sĂ©rie de acontecimentos traumĂĄticos (e tambĂ©m fim de um sonho) de um paĂ­s. Hoje eu entendo o quanto essa ruptura ficou marcada em mim, no meu corpo, na minha sensação de nĂŁo pertencimento. De certa maneira, todos os meus livros tĂȘm sido uma forma de recontar e reescrever essa histĂłria. EntĂŁo hĂĄ algo que me foi tirado, mas ao mesmo tempo trata-se de algo que eu ganhei, a possibilidade e a necessidade da escrita. Um aspecto bonito de ressignificar os traumas Ă© a chance de transformar a falta (e a morte) em potĂȘncia, em vida.

5.
Carola: Na conversa com o Itamar Vieira Junior ele disse que precisava voltar para casa para poder escrever, depois me perguntou como era isso pra mim e eu respondi que no meu caso escrever era voltar para casa. E para vocĂȘ, como funciona essa relação casa-escrita?

Prisca: EntĂŁo, a partir do momento em que tomei consciĂȘncia da falta das outras lĂ­nguas, isto Ă©, a partir do momento em que entendi que eu sou essa multiplicidade de lĂ­nguas e lugares, que dependo da existĂȘncia e vitalidade delas para me sentir plena, e que depende de mim — e nĂŁo do mundo ao redor — manter acesa a chama dessa coexistĂȘncia, relaxei. Relaxei sobre onde viver, sobre onde Ă© que realmente me sinto “em casa”. Escolhi a casa onde moro — em Juiz de Fora, um cantinho que amo profundamente — como sendo minha nau. ProvisĂłria mas sossegada. Aqui Ă© onde tenho hoje as condiçÔes concretas de fazer meu mundo girar. Tenho uma vida organizada e o suficiente sossego para criar os filhos, sem renunciar Ă  minha escrita. No futuro, quando eles tiverem asas prĂłprias, acho que procurarei fazer outro movimento… Mas Ă© a partir da minha casa, cercada pelo verde, que faço o mundo girar, constantemente. Às vezes, viajando eu mesma, apenas posso, porque adoro viajar para me alimentar. Por exemplo, quando vou a Genebra ou a MilĂŁo — duas cidades-casa para mim —, sinto claramente que elas arejam a cabeça, e volto cheia de ideias, livros e estĂ­mulos para escrever. As questĂ”es que se pensam por lĂĄ, as conversas com os amigos escritores, meus contemporĂąneos, a multiplicidade de lĂ­nguas e de trajetĂłrias, reacendem algo muito enraizado em mim, algo mais cosmopolita mesmo, e me sinto capaz de voos mais ousados. É sempre muito saudĂĄvel sair da caixinha, olhar outros horizontes, outras problemĂĄticas, mudar os hĂĄbitos e a rotina, nĂŁo ficar preso a demagogias ou pensamentos Ășnicos. Acho que um artista precisa estar sempre aberto a isso, para nĂŁo se tornar um mero funcionĂĄrio ou, pior, tecnocrata da palavra. Outras vezes — como nesse nosso tempo agĂŽnico, pandĂȘmico — sem viajar, mas fazendo a escrita viajar, e acolhendo outras vozes como a minha, migrantes — atravĂ©s da tradução, que vivo cada dia mais como uma prĂĄtica de acolhimento, de diĂĄlogo, de irmandade, de humanidade. Me interessa cada vez mais o aspecto polĂ­tico no sentido amplo, saber ler para alĂ©m da melhor solução rĂ­tmica encontrada na tradução (fundamental, por sinal), a ferida que silencia, saber transpor para o leitor de outra lĂ­ngua, nĂŁo tanto (nĂŁo sĂł) os jogos linguĂ­sticos mais geniais e criativos, mas o mundo que move o escritor. Sua visĂŁo de mundo. Suas complexidades. Suas feridas. Isso me exige calma, conhecimento, mergulho. NĂŁo Ă© algo que se possa fazer correndo, entrando e saindo de uma tradução para outra, como atleta. Me sinto em dever de aprender sobre o universo que habita o escritor, alĂ©m, claro, de conhecer a lĂ­ngua que traduzo, saber como ela soa em minha boca (em se tratando de uma lĂ­ngua viva), que sons essa lĂ­ngua provoca, quais associaçÔes imagĂ©ticas e sonoras e afetivas ela chama — porque, afinal, o tradutor faz uma transcrição. Acho fundamental conhecer bem a lĂ­ngua da qual se traduz, navegar nela com naturalidade, como algo que Ă© entranhado na vivĂȘncia, pois lĂ­ngua Ă© corpo, Ă© voz, Ă© respiro, Ă© olhar. Venho de um universo, o suíço, onde isso Ă© muito importante, onde a trajetĂłria do tradutor Ă© muito respeitada. Gosto desse mergulho de escafandrista.

Carola: Que lindo o que vocĂȘ diz sobre o exercĂ­cio da tradução, na realidade a arte da tradução. Saber ler a ferida que silencia. Penso que traduzir Ă© antes de tudo saber ler. Mas talvez isso valha para tudo, a necessidade de saber ler o mundo, saber ler um filho, um amor, uma casa. A si mesma. Saber ler.

6.
Carola: Gosto muito de traduzir poesia, algo que faço apenas como exercício. Tenho a impressão de que traduzir um poema é pensar mais profundamente sobre o poema, e descobrir algo que não estava ali. Ou que estava apenas enquanto possibilidade.

Prisca: Acho que de alguma forma jĂĄ respondi sem saber que viria essa sua observação….rsrsrs… curioso como nossos caminhos vĂŁo na mesma direção, inclusive nas observaçÔes que nos guiam…

Carola: Sim, isso costuma acontecer quando habitamos a conversa, como se habitássemos um espaço, um lugar. E as coisas saem do tempo linear. É muito bonito.

7.
Carola: VocĂȘ vai lançar o seu primeiro romance, vai ser em 2021? É possĂ­vel comparar essas duas experiĂȘncias de escrita, a poesia e a prosa?

Prisca: Nos meus planos, terminaria o romance em 2020. Mas o 2020 foi um ano que estilhaçou os planos de todo mundo, acho. Aconteceu que em 2020, com a paralisia inicial, o trabalho feito a partir de casa, o isolamento que virou condição permanente, os filhos em casa e a casa se tornando uma Grande MĂŁe protetora, a poesia me pegou com força e fechei quatro livros que estavam em processo faz tempo. Dois devem sair ainda neste ano no Brasil, um na ItĂĄlia, outro, quem sabe, em francĂȘs, na Suíça. E tambĂ©m me aventurei pela primeira vez na tradução de um romance. Um trabalho muito interessante, uma nova experiĂȘncia. Mas estou priorizando agora a escrita do romance, que espero fechar atĂ© meados de 2021. As duas personagens principais sĂŁo mulheres fortes, em certo sentido sĂŁo migrantes, cujas trajetĂłrias passam pela Suíça e pelo Brasil, num mergulho pra dentro da histĂłria pessoal e coletiva. Mas acho que esse ano Ă© para fechar o livro e aĂ­ sim, procurar publicĂĄ-lo em 2022. Me parece que a experiĂȘncia da escrita em si nĂŁo Ă© tĂŁo diferente, o que difere Ă© o ritmo. Estou acostumada Ă  intermitĂȘncia na poesia. Tem livros que vou escrevendo, retomo, abandono, sem grandes problemas, num lapso de tempo longo. É uma temporalidade por lapsos com a qual sei lidar bem. Na prosa, percebi que isso Ă© muito negativo. Acho que a prosa exige um esforço continuado e constante, de maratonista: antes de começar a escrever, durante e depois. Nesse sentido, no meu caso, sempre pensei que fosse mais difĂ­cil conciliar esse ritmo com meu dia a dia, dividido entre casa, filhos, aulas, pesquisa, viagens, traduçÔes, etc. Mas quem sabe foi falta de organização e de coragem, um ĂĄlibi que sempre arrumei, rsrs. A pandemia veio para me trancar em casa e me obrigar a priorizar e encarar esse ĂĄlibi.

8.
Carola: A literatura salva?

Prisca: Olha, Carola, Ă© uma pergunta complexa. Penso sobre isso, muitas vezes ao longo dos anos. E cada vez tenho uma resposta diferente. Por isso, nĂŁo tenho nenhuma definitiva. Para mim pelo menos, nĂŁo Ă© que ela salve. Mas como qualquer experiĂȘncia estĂ©tica profunda, ela traz uma dimensĂŁo transcendente que de alguma maneira permite que sejamos algo a mais, ou que possamos nos conhecer melhor e portanto evoluir como seres humanos. Poder encarar nossas obsessĂ”es, vĂȘ-las, mergulhar nelas… Mas quem disse que isso salva? salvar de quĂȘ? de nĂłs mesmos, da morte, dos outros, da peste? salvar os outros, talvez? NĂŁo sei. Mas acho que a arte nos dĂĄ essa chance: cumprir nossa circularidade, desabrochando nĂŁo sĂł no sentido biolĂłgico, mas nas inĂșmeras potencialidades da nossa espĂ©cie humana, plurifacetada: sensĂ­vel, psicolĂłgica, afetiva, criativa, transcendente, sexual, etc. Nos dĂĄ outro canal de apreensĂŁo da realidade. Em termos sociais e coletivos, aĂ­ sim, penso que o contato com a literatura, com a arte, possa ser uma experiĂȘncia profundamente arrebatadora, de transformação. Lembro bem: aos 15 anos a escola nos levou para ver o filme A dupla vida de VerĂŽnica, de Krzysztof Kieslowski. Eu ainda morava na Suíça. Aquele dia, na saĂ­da do cinema, perdi o rumo de casa e fui andando a esmo atĂ© encontrar a estação de trem que me levaria para casa. A mesma sensação tive quando li A metamorfose, de Kafka, aos 14 anos, e pouco depois, quando li pela primeira vez os Ossi di seppia, do Eugenio Montale, ou a poesia da Alejandra Pizarnik, aos 16 anos. Uma palpitação, um atordoamento. Algo do tipo: entĂŁo Ă© isso, Ă© isso! Essas sensaçÔes eram maravilhosas, queria viver dentro delas! E o que estava ao meu redor passou a assumir outra dimensĂŁo na minha vida. Por outro lado, como fui criada num contexto muito catĂłlico, vi como esse ambiente neutralizou os desejos das mulheres da minha famĂ­lia. Com isso, tendo a nĂŁo procurar na arte, na literatura, uma salvação. AliĂĄs, nĂŁo acredito muito nesse termo, nesse “ponto de chegada”. Acredito mais no desejo como motor muito potente, que nos move Ă  eterna procura de algo. Mas Ă© algo desassossegado, nĂŁo pacĂ­fico. Adoro esse verso do poeta italiano Milo de Angelis, que resume bem meu pensamento: NĂŁo pedimos a ĂĄgua, mas a sede.

Carola: Sim, vocĂȘ faz a pergunta, se salvar de quĂȘ? Engraçado, eu nunca penso em salvação sob uma Ăłtica cristĂŁ, talvez por nĂŁo ter tido uma educação religiosa. Mas fiquei agora pensando na sua pergunta, se salvar do quĂȘ? Bom, da morte, claro, ninguĂ©m se salva. Mas podemos nos salvar da ignorĂąncia, do Ăłdio, da solidĂŁo, do desamparo, do desamor. Acho que a literatura pode nos dar um lugar habitado, coletivo, onde antes nĂŁo havia nada nem ninguĂ©m.

Prisca: Sim, vocĂȘ tem toda razĂŁo. Essa sensação de pertencimento, mesmo que na solidĂŁo do dia, na solidĂŁo do desespero — nesses dias desesperadores que vivemos, de profundo horror —, a consciĂȘncia de ser parte de uma coletividade Ă© realmente algo muito reconfortante. Sim, um lugar habitado. Bonito isso. Uma casa sempre aberta no espaço e no tempo. Como disse uma vez numa entrevista o escritor haitiano Dany LaferriĂšre: com somente 26 letras do alfabeto, como se fossem 26 lanternas piscando a intermitĂȘncia, iluminamos e ressuscitamos a companhia e o pensamento de milhĂ”es de pessoas, de dois mil anos de pessoas que disseram, pensaram e sentiram algo que nos Ă© prĂłximo, fraterno, familiar. E isso Ă© realmente mĂĄgico.

Prisca Agustoni
Nasceu eu 1975, na Suíça. É tradutora e professora de literatura italiana e comparada na Universidade Federal de Juiz de Fora. Poeta, sua obra jĂĄ foi traduzida para o inglĂȘs, alemĂŁo, romanche, espanhol, croata e macedĂŽnio. Escreve e publica em portuguĂȘs, espanhol, italiano e francĂȘs. Suas publicaçÔes mais recentes sĂŁo Casa dos ossos (2017, semifinalista do PrĂȘmio Oceanos) e L’ora zero (2020).
Carola Saavedra

É autora, entre outros, dos romances Flores azuis (eleito melhor romance pela Associação Paulista dos CrĂ­ticos de Arte), Paisagem com dromedĂĄrio (PrĂȘmio Rachel de Queiroz na categoria jovem autor), O inventĂĄrio das coisas ausentes e Com armas sonolentas. Seus livros foram traduzidos para o inglĂȘs, francĂȘs, espanhol e alemĂŁo. EstĂĄ entre os 20 melhores jovens escritores brasileiros escolhidos pela revista Granta. Desde 2019, Ă© professora e pesquisadora na Universidade de ColĂŽnia.

Rascunho