Tive de visitar Brasília, durante um fim de semana, para escrever esta resenha sobre Algum lugar, romance de Paloma Vidal. Em Curitiba, cidade onde nasci e vivo, não foi possível, para mim, absorver e entender a obra dessa autora argentina radicada no Brasil. Mas aqui, na capital do Brasil, de onde envio este texto para o Rascunho, consegui sentir e absorver a proposta literária de Paloma.
Estou em uma lan house, em uma superquadra da Asa Norte. Peço o primeiro café expresso, e sei que um pedestre como eu não sobrevive em Brasília, da mesma maneira que a narradora de Algum lugar não consegue se adaptar a Los Angeles.
Na cidade norte-americana, onde se passa a maior parte da longa narrativa, a protagonista inventada por Paloma não faz nada. Ou melhor, faz, mas parece que não. Não consegue avançar em sua tese acadêmica, não estabelece nenhuma amizade, não se solta nas aulas de espanhol que leciona e não consegue se relacionar com o homem que ela quer chamar de seu, apresentado pela letra M.
Tudo é distante aqui em Brasília. A afirmação pode ser relativizada, mas para um pedestre como eu — já falei isso, mas reforço —, ainda mais sem carro, esta cidade é cronicamente inviável. A Los Angeles que serve de cenário a Algum lugar também não se afina com a protagonista do romance. Ela não tem veículo, e passa a maior parte do tempo dentro de um apartamento. Não há quase nenhuma comunicação verbal, com ninguém, inclusive com o seu parceiro. M começa a criar um mundo pessoal dentro do apartamento, e essa bolha não permite a entrada nem a presença da personagem feminina.
As distâncias físicas, enunciadas no livro, sugerem uma distância imensa, um abismo, entre a personagem e qualquer outro ser. Não há ponte, não há contato. Esse isolamento dela também é insinuado por meio da linguagem: as ações não acontecem na realidade física da personagem; o que se passa, se é que passa, é no universo mental, interno, dela — e ninguém, fora ela, sabe de sua intensa ebulição interior.
Zero a zero
Na tevê, aqui na lan house, passa um jogo de futebol. São dois times que não reconheço; as camisas não me fazem lembrar de clubes que conheço. E o jogo me tira a concentração, por pelo menos 90 minutos. Termina em zero a zero. Não houve gol, não houve ataque, não houve defesa, não houve nada, e tudo isso me faz lembrar, por mais que eu não queira, de Algum lugar, que, penso agora, é um jogo de zero a zero, apesar de que apenas a personagem narradora estaria jogando, se houvesse uma partida. Mas não. Ela não joga. Ela segue, com alguma expectativa e, em alguma medida, já prevendo que nada poderá acontecer. Então, M vai embora.
Penso que isto é próprio de Los Angeles: uma arquitetura que parece não ter idade. Lembro de ter uma sensação esquisita ao ler Pergunte ao pó, porque o livro é de 1939, mas tem uma atualidade geográfica que seria impossível em outros lugares, como se Los Angeles há 70 anos já fosse uma cidade de agora.
A narradora de Paloma cita John Fante para comentar a sensação que ela, que narra, experimenta em Los Angeles. Essa narradora cita uma série de outros autores, referências, mas o que ela realiza, de modo geral, é a criação de um clima esquisito: é praticamente certo, vamos, há 90% de probabilidade de o leitor se sentir entediado durante a leitura, mas não é um tédio daqueles que podem fazer, necessariamente, o sujeito abandonar o livro — ao contrário. A tendência é o leitor seguir, até para saber o desfecho e de que maneira essa narrativa se faz, do início ao fim.
Poderia terminar a resenha aqui. O que era para ser dito, se é que há algo a se dizer, acabou.
Já levantei da cadeira, e passei no caixa para pagar a despesa. O texto que você lê, já foi enviado por e-mail, o Rogério Pereira já recebeu a mensagem, e, se o Rascunho está impresso, é sinal de que tudo deu certo. Eu também já voltei para Curitiba; Brasília, durante uma tarde, foi útil, demais, mas Algum lugar ainda (me) perturba.
A narradora deixa Los Angeles e retorna ao Rio de Janeiro, a cidade em que ela vivia anteriormente, antes da temporada em que tudo foi confuso, frustrante, em que uma quase amiga a hostilizou, e houve espaço para um quase amante e tudo se desmanchou no ar com gosto de café amargo, frio, resultado de grãos velhos misturados com cevada.
Ela não se reconhece no Rio de Janeiro nem reconhece o Rio de Janeiro. Seria um fantasma, mas o estranhamento e o desconforto parecem ser resultado da constatação de quem tem quase certeza de não pertencer a lugar nenhum.
Há um abismo entre presente e passado, como se o tempo não quisesse se deixar preencher por nada, resistindo a se transformar em conteúdo de lembrança. Busco na memória imagens da chegada em Los Angeles, do apartamento alugado, dos roteiros pela cidade. As datas se confundem.
Estou na Rua 15, em Curitiba, e vou beber, daqui a alguns minutos, um café expresso, ou mais doses, em um dos quiosques dessa rua, muito transformada durante a última década. Já não há mais livraria nem outros portos, mas dizer que o passado era melhor não é comigo, esse discurso não será enunciado por este interlocutor, está sim tudo diferente, como diferente se tornou a perspectiva da personagem central de Algum lugar no instante em que ela recebeu a notícia de que estava grávida.
Da gestação ao nascimento do filho, são poucas palavras, o que simboliza que, para ela, aquilo ou foi rápido demais ou não teve tanta importância, pelo menos enquanto aconteceu a mudança irreversível. Muito iria mudar, M iria buscar outros horizontes, ela também, e um final em aberto, com todas as possibilidades, e gotas de esperança, está lá, na página 170, um pouco antes do ponto final deste livro, semifinalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura 2010.