O espírito do tempo

"O mestre e Margarida", obra-prima de Mikhail Bulgákov, reafirma o poder da literatura de registrar o zeitgest
Mikhail Bulgákov, autor de “O mestre e Margarida”
01/06/2010

Começa assim. Em um quiosque, num ensolarado entardecer de maio, dois literatos sentam-se para conversar sobre a tópica da verossimilhança a propósito de um poema anti-religioso. Mais precisamente, da maneira como a figura de Jesus Cristo deveria ser apresentada em textos literários. Para o editor Mikhail Aleksándrovitch Berlioz, o Jesus elaborado pelo poeta Bezdômny, pseudônimo de Ivan Nikoláievitch Ponyriov, era, por assim dizer, demasiadamente humano, só que com características extremamente negativas, tal como se tivesse realmente existido. Assim, para o editor, era necessário reescrever esse Jesus. De que maneira? Ora, a princípio, fazendo com que o poeta entendesse que a idéia de Jesus Cristo, em verdade, não passava de uma narrativa mitológica, que, ao longo dos anos, tornou-se universal. O diálogo segue nessa seqüência até que… Um estranho assoma-se à mesa, ouve a conversa e desafia os interlocutores: sim, Jesus Cristo existiu. Provocativo, o estranho, como em um método socrático, questiona o ateísmo de seus interlocutores; estes, incomodados, porém resolutos, são firmes em asseverar sua descrença em algo superior que exista para além da matéria. O cenário é a Moscou, cidade-símbolo da União Soviética durante o regime comunista. Em linhas gerais, esse é o argumento inicial de O mestre e Margarida, obra prima do escritor Mikhail Bulgákov, que ora recebe nova tradução, direto do russo, de Zoia Prestes, e nova edição, pela Alfaguara.

Escrito durante o período de tensão do regime stalinista, quando apenas a arte engajada contava com certo tipo de legitimação nas entranhas do poder, o livro de Bulgákov demorou 12 anos para ser totalmente finalizado. Levaria ainda mais algumas décadas para ser publicado integralmente, algo que o escritor, morto em 1940, jamais viu. Todavia, qualquer um desses contratempos e desvios não significaram uma barreira para que a obra se tornasse efetivamente um objeto de culto literário, sobretudo àqueles mais críticos do governo soviético. Isso porque o texto é marcado pela sátira que tem como objetivo central desmontar certa pujança racional daquela sociedade. Nesse sentido, o argumento inicial da história, quando o estranho invade a conversa de dois intelectuais, alcança um teor ainda mais peculiar no momento em que se toma conhecimento do caráter daquela intervenção. Quem, para além do diabo, tem mais certeza acerca da existência de uma entidade superior? Um comentário, aqui, alheio ao texto de Bulgákov pode ajudar: quem mais crê na existência de Deus é o Diabo.

Liberdade de criação
Antes, no entanto, de chegar a esse significado moral da narrativa, cumpre observar de que maneira o escritor compõe o texto, ou melhor, quais são as estratégias criadas para provocar, no leitor, essa sensação de que os postulados mais definitivos sobre a existência de Jesus merecem o benefício da dúvida. Dividida em duas partes, O mestre e Margarida acontece, do ponto de vista literário, em três níveis, sendo que cada um deles estabelece uma conexão — e, por conseguinte, uma espécie de anotação — para com o outro. Assim, a narrativa contemporânea, que ocorre na década de 1930, quando o Mestre escreve um texto literário sobre Pilatos. Esse mesmo Pilatos está presente na camada histórica da narrativa, em que um homem, Yeshua, é condenado mesmo sendo inocente. Na outra camada, o Diabo não veste Prada, mas salta do Fausto, de Goethe, para aparecer em Moscou. Em relação aos possíveis significados, em tese, essa tripla camada literária não deveria causar maiores incômodos aos fieis adeptos do regime stalinista. Todavia, para além do contexto histórico, existe uma questão elementar desta peça ficcional que torna a sátira do livro mais cáustica aos que souberem utilizar a chave mestra da interpretação. Dito de outra forma, em meio a questões filosóficas, religiosas, existe um debate central acerca da liberdade para a criação artística que funciona como denominador comum dos três níveis da história.

É nesse quesito que o texto parece ter sua veia mais perigosa àqueles que temem pela liberdade de criação. Na história da arte, da literatura e mesmo do cinema, inúmeros foram os exemplos de como a produção estética permanece arredia às investidas do controle político ou social. Mesmo quando existe algo do tipo “arte engajada”, com temas preferidos do grupo que eventualmente ocupa o poder, essa manifestação soa como ilegítima e acaba por perder o crédito junto às classes que consomem esse tipo de manifestação cultural. Em outras palavras, embora as encomendas artísticas não sejam necessariamente um “privilégio” dos governos totalitários do século 20 (haja vista que, no Antigo Regime, esse tipo de modelo criativo já existia), é a propósito do regime de exceção de Stálin que esse impulso criativo tornou-se essencialmente constrangedor, por conjugar temor e tremor; falta de verossimilhança e restrições estéticas. Bulgákov cria uma história em que essas partículas elementares estão ali, ainda que de maneira velada, ao longo do texto. A rigor, é essa alternativa literária assinalada pelo autor que acentua a riqueza de sua criação.

“Manuscritos não ardem em chamas”, diz, a certa altura, uma das personagens de O mestre e Margarida. Para além do contexto do livro, o trecho diz muito acerca das obras que permaneceram a despeito do regime soviético — assim como de outros períodos em que a liberdade parecia algo possível apenas no universo do fantástico, da sátira, da literatura por excelência. Nesse aspecto, é forçoso perceber que, a despeito do realismo e pela afeição a uma suposta “verdade factual”, são os textos essencialmente literários e ficcionais que conseguem captar o espírito do tempo, o zeitgeist, seja no drama, seja na sátira. Mikhail Bulgákov, que ao longo de sua vida esteve às turras com o ditador Josef Stálin, parecia saber disso, e a pertinência de seu romance é a prova definitiva do poder e da influência da literatura.

O mestre e Margarida
Mikhail Bulgákov
Trad.: Zoia Prestes
Alfaguara
456 págs.
Mikhail Bulgákov
Nasceu em Kiev, na Ucrânia, em 1891. Foi médico e, a partir de 1921, alguns anos depois da Revolução Russa, dedicou-se à carreira de escritor. Além de O mestre e Margarida, escreveu outros romances, contos e peças teatrais, como Os dias dos Turbin, que teve boa acolhida no Teatro de Arte de Moscou em 1926. Trabalhou, ainda, na adaptação para o teatro de textos clássicos, como Almas mortas e Dom Quixote. Morreu em 1940, antes de ver sua obra-prima integralmente publicada.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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