As primeiras notícias davam conta
De que uma doença nova havia aparecido na China.
Mas como não sou chinês, não me importei,
Até porque não se deve esperar nada
Mesmo de bom vindo da China.
Depois, disseram que a doença chegara à Itália,
Mas como não sou italiano, e da Itália conheço apenas
O macarrão, a polenta e o tiramissu,
Não disse nada, porque afinal de contas
A Itália está lá longe, do outro lado do Oceano.
Quando a doença chegou ao Brasil,
O nosso Guia falou que era apenas uma gripezinha
Eu confiei, ele havia sido eleito por 58 milhões
De pessoas, fora outras 42 milhões que se omitiram,
E então eu toquei a vida, como nada tivesse acontecendo.
Depois começaram a aparecer notícias
De pessoas vagamente conhecidas que estavam morrendo
É o que diziam, mas eram pessoas tão vagamente conhecidas
E que já estavam velhas e doentes, e que iriam morrer
De qualquer jeito mesmo, e eu não disse nada.
Ai o pai de um amigo meu morreu, e ele disse
Que a doença parecia coisa séria, mas como esse meu amigo
Sempre foi meio esquisito, diziam até que era comunista,
Achei que ele no fundo queria apenas prejudicar
O bom andamento do governo, e não disse nada.
Não disse nada quando a doença matou meu pai
E dois dias depois levou minha mãe, porque eu saí
Para uma festa com amigos, a vida tinha urgência,
Pois sou jovem, bonito e forte, e não posso ficar
Sentado feito besta esperando os dias passarem.
Hoje estou aqui sozinho, sem conseguir respirar,
Deitado na cama da minha casa, porque os hospitais
Já não têm leito. E sei que, como não disse nada,
Ninguém vai protestar por mim e amanhã serei
Apenas mais um número na estatística das mortes diárias.
*** Este texto, querido (a) leitor (a), é uma pobre paráfrase de outro, famoso, que a internet ora diz que é de Brecht, ora de Maiakovski, mas que na verdade é do teólogo protestante alemão Martin Niemöller (1892-1984).
Luz na escuridão
Nicolas Behr, poeta e ecologista: “Vem aí o meu primeiro livro de ficção em prosa — Os dangoscan invisíveis de Ailisarb, que deve sair no final do ano, espero —, inspirado em As cidades invisíveis, de Italo Calvino. O enredo: JKhan é exilado e vou até ele para lhe relatar no que se transformaram as Superquadras de Brasília, aliás, de Ailisarb, uma cidade mítica e lendária. Tudo num tom de fábula e delírio. São 35 Superquadras imaginárias. Será que escrevemos o livro que gostaríamos de ler? O livro está duro, quase antipoético, vidas secas. Tenho reescrito o texto exaustivamente. O escritor é, antes de mais nada, um trabalhador braçal da linguagem”.
Parachoque de caminhão
“Nada é realmente grave para os seres incapazes de amor.”
François Mauriac (1885-1970)
Antologia pessoal da poesia brasileira
Mário Faustino
(Teresinha, PI, 1930 – Lima, Peru, 1962)
Prefácio
Quem fez esta manhã, quem penetrou
À noite os labirintos do tesouro,
Quem fez esta manhã predestinou
Seus temas a paráfrases do touro,
As traduções do cisne: fê-la para
Abandonar-se a mitos essenciais,
Desflorada por ímpetos de rara
Metamorfose alada, onde jamais
Se exaure o deus que muda, que transvive.
Quem fez esta manhã fê-la por ser
Um raio a fecundá-la, não por lívida
Ausência sem pecado e fê-la ter
Em si princípio e fim: ter entre aurora
E meio-dia um homem e sua hora.
(O homem e sua hora, 1955)