Entre loucos

Na manhã de domingo, frio intenso, a passagem por um manicômio é uma marca indelével na vida dos visitantes
Detalhe de extração da pedra da loucura, de bosch
01/06/2010

27.08.1984
Visita ao asilo-hospital-manicômio de Barbacena, que povoou o nosso imaginário desde a infância. Dr. Neile, que assistiu às palestras e lançamentos de livros meus e de Marina ontem, aquiesceu em nos abrir o hospital. Manhã de domingo. Frio, talvez 8 ou 10 graus. Aproximando-se do prédio, já nos jardins, alguns loucos de uniforme velho meio azul-e-cinza. Eram os loucos mansos que aí trabalhavam livremente. Tentavam nos seguir, pedir cigarro ou dinheiro. Sempre sorridentes.

Entramos no pavilhão das mulheres. Ali uma que tinha um filho (de outro internado) e que nos dizia estava ali havia 20 anos (desde os 10) e nunca recebeu visita. E está comovida com a criança em seu berço, noutra sala, sempre fechada, por causa dos loucos. O marido, o pai, nem ela sabem quem é. Dr. Neile diz que provavelmente é um outro doente que morou junto com ela numa casinha (cabana? o quê?) que ambos construíram ali.

Essa é a figura mais bem vestida, de calça comprida e meio loura. Todas as outras são velhas, pretas. As outras de saia (o que levou Marina a indagar ao Dr. Neile por que não dava calça comprida para as mulheres. — Nunca pensei nisso, diz surpreso).

Visitamos a cozinha, depois do almoço: pessoas lavando pratos. Menu: feijão, arroz, maionese e carne. O pavilhão dos “trabalhadores-doentes” tem até televisão e eles assistem à Fórmula 1. São pretos também. E parecem mais normais. O pavilhão dos “agudos” — este é brabíssimo: quartos todos vazios porque os doentes estão num pátio separados por grades. Acordam às 5 da manhã, ficam naquele pátio igual gado: nus, seminus, se cagando, etc. Cheiro de mijo e cocô enquanto passamos pelos quartos vazios, que no entanto estavam bem limpos. São os loucos miseráveis. Sem-família. Sem-endereço. Ali estão atrás das grades. Ali ficam o dia inteiro. Há uma seção de jaulas para os mais agressivos: um que come tudo o que encontra, até lâmpadas. Outro que fura e arranca o olho (de vários). Estão na jaula-cela como macacos comendo numa vasilha no chão. Tiveram que colocar a lâmpada da parede num lugar onde ele não a possa alcançar. Adiante outro louco, desgarrado no pátio, passa seminu pela parede, se cagando, no muro da privada.

A dose já era demais. E quando o Dr. Neile nos levou para outro prédio, o mais antigo, onde estavam os presos “agudos” e os “menores”, aí falamos: não agüentamos, ficaremos dentro do carro. E voltamos, saindo rápido, todos nauseados.

No entanto:

1. A situação, dizem, melhorou. Antes havia ali comércio livre de cadáveres para todas as escolas de medicina do país: uns 30 por dia. Saíam em caminhão. Ivanée (do Grupo Ponto de Partida) nos conta que era hábito perguntar ao chofer que levava os corpos: 6? 10? 20?

2. Havia um trem — um vagão que vinha trazendo os loucos do interior. A nau dos insensatos. Um trem. E aí vinham não só os loucos, mas os tuberculosos ou qualquer outro doente que a família despachava como tal. Até o inimigo político.

3. O grande problema são os “atendentes” — que em geral enlouquecem depois de anos de trabalho ali. Por isso, Dr. Julio, jovem médico que luta para transformar aquilo com um grupo de colegas, apresenta, quando nos despedimos, um plano de melhoria da situação.

4. E os pavilhões têm nomes. Nomes de Antonio Carlos Andrada, Bias Fortes. Nomes de políticos que mantêm e exploram a loucura nacional.

5. E o sexo? Dr. Neile, irônico e vencido, diz: este problema não existe. Como quem diz: não há como resolver. O melhor é ignorar. Sugere-se: por que não administrar as pílulas anticoncepcionais como remédio regular? Ele não consegue responder.

6. Muitos médicos ficam apenas meia hora por dia e saem cinco minutos antes de chegar.

7. Terapia ocupacional: um artista local tentou carpintaria com os “agudos”. Durante um semestre deu tudo certo. Mas não houve interesse na continuidade. Os loucos não se atacavam com os instrumentos. Portavam-se ótimos.

8. Há uma ala de adolescentes que não quisemos ver: são criminosos. Estão sob tutela da Secretaria da Justiça. Loucura e crime juntos.

9. Todos se referem à visita que Franco Basaglia (1978) ali fez há alguns anos. O choque foi tal que as denúncias tornaram as coisas menos piores. Tanto Dr. Júlio quanto Ivanée andam com o livro de Basaglia nas mãos.

10. Isso me faz repensar a loucura. Hoje são 800, mas havia antes 3 mil, 5 mil.

11. Pergunto pelos arquivos dessa loucura: para que alguém estude isto: pois ali está parte da história do Brasil. Não sabem. Não há. Referem-se a um Dr. Tollendal, pai de um ex-aluno meu, que seria capaz de “contar” coisas, pois se “lembra”, ali trabalhou (ou dirigiu o hospital) por muitos anos.

Isso tudo impregnou meu dia, marcou minha vida para sempre.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

Rascunho