Outro dia, vagando entre as estantes de uma livraria, me deparei com vários livros do escritor Dostoiévski em nova tradução. Boa desculpa para ler e reler o mestre dos subterrâneos e do humor triste. Perguntei ao livreiro se O adolescente havia sido traduzido também. Ele achava que não, mas prometeu se informar e me dizer depois. Voltei para casa me lembrando do meu primeiro encontro com o mago russo. Foi assim: eu tinha 16 ou 17 anos e era sócia da biblioteca municipal do meu bairro. Toda semana ou de 15 em 15 dias lá estava eu em busca de um novo livro. Gosto muito de lembrar dessa época, quando a minha relação com a literatura era simplesmente de fome. Eu não queria ler autor tal ou literatura do país tal ou da época tal. Meu Deus, eu só queria ler. E cada livro, cada autor que eu conhecia era uma descoberta alegre e sofrida. Um fincar de estaca num novo mundo, uma imensa terra à vista a percorrer.
Na biblioteca municipal dos meus 16 ou 17 anos, eu transitava entre as estantes, sempre meio aflita e insatisfeita com a vida. Todo o futuro já me parecia pouco, tão pouco, para a imensidão de livros que existe nesse mundo para a gente ler. Então, percorrendo as fileiras repletas de livros e poeira, fui vendo as lombadas aqui e ali até que me deparei com uma com o título O adolescente. Apenas isso. Apenas isso, e eu tinha 16 ou 17 anos. Não conhecia o autor. Um nome esquisito, difícil à beça de falar. Peguei e levei para casa o livro de mais de 300 páginas acreditando que, pelo título, a história poderia ter quem sabe alguma coisa a ver comigo. Ingenuamente, comecei a ler. E talvez tenha sido ali entre aquelas páginas que uma parte de minha ingenuidade se foi. A narrativa, na primeira pessoa, é sobre um filho ilegítimo, criado entre estranhos. A sensação maior do personagem é que tudo em sua vida não lhe pertence, inclusive o seu nome. Lembro que simplesmente não conseguia parar de ler, acordava e dormia com o livro velho e empoeirado da biblioteca ao meu lado. No final, retardava a leitura para a última página demorar. Voltava para passagens preferidas, já com saudade. Em nenhum momento pensei: quem é esse tal de Dostoiévski? Será um autor consagrado, desconhecido, experiente, iniciante? Eu estava apaixonada pela história, pelo jeito da escrita, não pelo autor. Pelo nome, já sabia que o escritor era de terras distantes, no entanto, apesar de a história do protagonista não ter nenhuma semelhança com a minha, nada do que ele escrevia, com exceção dos nomes dos personagens e de lugares, era estranho para mim.
Devolvi o livro no balcão da biblioteca triste de não poder deixá-lo em casa. Fiquei perdida sem saber qual seria o próximo que eu iria ler. O que eu poderia ler, depois daquilo? A bibliotecária deve ter percebido minha expressão perdida e perguntou se eu queria alguma ajuda. Mostrei o livro que eu devolvia, e ela me perguntou se eu tinha gostado. Fiquei assim muda sem saber o que dizer. Gostar não era bem a palavra, ou o verbo. Gostar a gente gosta de uma fruta, de um suco, de um garoto na escola. Eu tinha… amado? me apaixonado? Não sei. O livro me deixara transtornada, comovida, deslumbrada, doída. Foi uma brutal experiência estética, sei hoje, talvez. Mas na época só sabia que tinha me perturbado, desnorteado. E talvez, mesmo hoje, saber apenas isso seja realmente o bastante.
Eu e a bibliotecária acabamos nos entendendo. De um modo que não sei dizer qual foi, ela percebeu que eu havia “gostado” e então fez as devidas apresentações. Por sua boca fiquei sabendo que Dostoiévski era um grande escritor russo, do final do século 19. A bibliotecária fez questão de dizer: reconhecido no mundo todo, consagrado e visto como um gigante da literatura mundial. À medida que a ouvia, algo em mim me alertava, não sabia bem o quê. Instintivamente, abracei o livro, como se estivesse prestes a perdê-lo. Um estranho sentimento de invasão me dominava. Pensava em Arkadi Makarovitch, o protagonista de O adolescente, em Versilov e Katerina, os outros personagens, enquanto ela falava da fama e da importância de Fiodor Dostoiévski na literatura russa e universal. Hoje sei que uma batalha implacável iniciava em minha mente e sentimentos: eu lutava para não deixar o livro que eu havia amado ser sobrepujado pelo renome do seu autor. Resistia, pensando nas passagens preferidas, nas frases e imagens que haviam me impactado, no sofrimento e na esperança de Arcadi, na paixão de Versilov e Katerina. Eu mal sabia que essa é uma batalha antiga, e, de antemão, eterna. Atravessa décadas e séculos, ganha roupagens e trejeitos diferenciados, mas está sempre lá, levando tantas pessoas a escolherem, lerem e preferirem, não o livro, mas o escritor.
Quase por um instinto de defesa, perguntei à bibliotecária sobre os outros livros de Dostoiévski. Eu a acompanhei angustiada até uma estante, onde ela me apontou O idiota, Crime e castigo, Os Irmãos Karamazov, Os demônios, O jogador e tantos outros. Levei O idiota para casa, sem saber que carregava um romance que seria inesquecível para mim. No caminho, repetia o nome do autor, na intenção, vejo hoje, talvez de desmistificá-lo. Não queria a sua presença, quando eu abrisse as páginas de seu livro. Queria os personagens, queria o enredo, queria as emoções profundas que o mago russo sabia expressar tão bem, sim, com tanta magnitude, mas era a obra, não o autor, que eu desejava encontrar quando começasse a leitura. “Um grande escritor”, havia dito a bibliotecária, “muito profundo”, ela continuou, “renomado mundialmente”, sem perceber que impunha uma distância entre mim e o mago russo que eu não havia sentido até então. O meu encontro com Dostoiévski havia sido às escuras, por isso, talvez, nos tateamos e nos conhecemos verdadeiramente. E foi dessa forma, íntima, que ele havia se tornado grande para mim.