Arthur Rimbaud (1854-1891) e Franz Kafka (1883-1924), cada um ao seu modo, personificaram a figura romântica do gênio. Inaptos à realidade familiar, social e histórica em que viviam, consumiram-se para pagar o tributo por terem compactuado em abrir a caixa de Pandora da modernidade.
Em dois ensaios biográficos lançados pela Companhia das Letras — Rimbaud: a vida dupla de um rebelde, de Edmund White, e O mundo prodigioso que tenho na cabeça: Franz Kafka: um ensaio biográfico, de Louis Begley —, os escritores atormentados que viraram cânones após a morte são apresentados ao público não especializado em relatos breves, mas bem documentados. A proposta é da editora americana Atlas & Co., especializada em obras de não-ficção, que originalmente publicou os livros.
Se os ensaios não acrescentam novidades às biografias e incontáveis estudos e comentários feitos a respeito do poeta francês e do escritor de língua alemã, também evitam os reducionismos que buscam nas histórias pessoais dos autores chaves interpretativas para sua produção literária. Sedução maior no caso de escritos cheios de camadas de significados como os poemas de Rimbaud, repletos de sutilezas técnicas, e os assustadores romances e contos de Kafka. E ainda, que convidam a leituras psicologizantes de artistas castrados pela mãe (no caso de Rimbaud) ou pelo pai (Kafka), com sexualidade ambivalente (Rimbaud) ou possíveis disfunções físicas (Kafka).
Pelo contrário, as biografias de White e Begley cumprem a tarefa mais simples de remeter o leitor aos clássicos e inserir releituras em contextos mais amplos, justificando-se, assim, como boas referências no lucrativo mercado das biografias.
Paixão indiscreta
Rimbaud, de Edmund White, tem a leveza de uma crônica e o ritmo de um romance popular. A história do adolescente rebelde que no século 19 transformou a poesia francesa em algo novo, moderno, e que depois rejeitou a criação, é um estímulo a searas ficcionais. O “mistério Rimbaud”, que dos 14 aos 19 anos reinventou a linguagem poética para depois passar o resto da vida como comerciante de marfim, armas e especiarias na África Oriental, é um dos mais fascinantes e discutidos da literatura ocidental. É usual um adolescente problemático se tornar um adulto responsável e mesmo conservador. Porém, não é o caso de uma mente tão criativa e singular de repente, na maturidade, abraçar uma existência medíocre e relegar o talento. Pelo menos não com a intensidade com que Rimbaud o fez.
White, que também escreveu biografias dos franceses Marcel Proust (1871-1922) e Jean Genet (1910- 1986), enfatiza a relação homossexual entre Rimbaud e o poeta Paul Verlaine (1844-1896), que se tornou um escândalo nos círculos artísticos de Paris. A publicidade do romance, segundo o autor, teria motivado o abandono por completo da literatura por Rimbaud.
Segundo White, o comportamento antissocial do poeta e a “sedução” de Verlaine — dez anos mais velho, casado e, já à época, um poeta reconhecido — bloquearam as oportunidades para o reconhecimento nas letras. Para Rimbaud, a opção foi aceitar o fracasso como poeta e partir ao encontro de ocupações que atendessem a seu ímpeto aventureiro e a inquietude intelectual que alimentava desde a infância:
Talvez Rimbaud soubesse que as pessoas aqui e ali ainda se referiam a eles como amantes. Sem dúvida, o caso deles tinha sido notório, sobretudo depois que Verlaine foi condenado por atirar em Rimbaud. Se Rimbaud tinha vergonha desse episódio de sua vida (a bebedeira, a imoralidade, sua própria delinqüência), não admira então que não quisesse falar disso com os europeus com quem se relacionava na África. Queria provar a eles que era digno de confiança, uma pessoa respeitável.
Rebelde
Rimbaud nasceu e passou a infância em uma cidade do interior da França, filho de um capitão do Exército, que abandonou a família quando ele tinha seis anos, e de uma campesina instruída, mas carola e rigorosa (“Ninguém jamais a vira sorrir”). Foi um aluno talentoso, que demonstrava facilidade para aprender línguas estrangeiras e que ganhou concursos com versos em latim. Entretanto, foi o adolescente rebelde que virou mito.
As fugas para Paris começaram em 1870, quando o país entrou em guerra contra a Prússia e, na seqüência, o Estado francês foi derrubado pela Comuna e Paris (1871), considerada o primeiro governo comunista da história. Sem ter nenhum ofício ou como se sustentar, Rimbaud sempre retornava para casa, ciclo rompido apenas quando deixou o país definitivamente, em 1880.
Manteve também um relacionamento atribulado com a mãe e mais afetivo com a irmã Isabelle (para as quais escrevia cartas da África) até morrer mutilado devido a um câncer, aos 37 anos de idade.
Sobre os “anos selvagens” de Rimbaud em Paris, Londres e Bruxelas, na companhia de Verlaine, White conta detalhes e relatos curiosos que dão maior fôlego à sua narrativa. Sujo, magro, bêbado e coberto de piolhos, Rimbaud era uma companhia obscena e um hóspede inconveniente para amigos e familiares de Verlaine. Na casa de um poeta, usou uma revista literária como papel higiênico. Na de outro, ficou nu na janela e atirou as roupas imundas na rua. Era especialmente encantado com escatologias e palavrões, e dado a atitudes grosseiras e zombarias.
De acordo com White, essa imagem, que conferiu a Rimbaud a ancestralidade dos beatniks, hippies e punks no século 20, era condizente com a transformação alquímica que ele operava na poesia. De Vogais, poema sinestésico escrito em 1871, até a invenção do poema em prosa e o primeiro registro do verso livre nas obras Uma temporada no inferno e Iluminações, ambos de 1873, o adolescente reviu toda a poesia francesa e antecipou os movimentos simbolistas e surrealistas.
Um dos maiores exemplos de seu caráter inventivo são os cem versos de O barco bêbado (Le bateau ivre), que tem uma forma aparentemente tradicional, de sonetos alexandrinos, mas é radical nas cesuras (pausas entre os versos). Não é a toa que simbolistas e mesmo os poetas concretistas brasileiros tenham se deliciado com a contemporaneidade de uma construção como a do divertido Cocheiro bêbado (Cocher ivre, na tradução de Augusto de Campos):
Álacre
Vai:
Nacre
Rei;
Acre
Lei,
Fiacre
Cai!
Dama:
Tombo.
Lombo
Dói.
Clama:
Ai!
Tiro em Bruxelas
Verlaine, ao contrário, é o escritor sem a explosão criativa de Rimbaud, apesar do talento como poeta respeitado pelos seus conterrâneos. Ele é descrito no livro como um bêbado, viciado em absinto, violento com a mulher (que sustentava sua vida boêmia) e o filho recém-nascido, além de submisso aos caprichos e chantagens do amante mais jovem. Segundo White, um homem feio (o ensaio peca pela falta de imagens dos poetas) e dividido entre os desejos homossexuais e a fé católica.
White não se exime de expor os detalhes mais íntimos, com um exame médico ao qual Verlaine se submete depois de preso. A inspeção teria como objetivo atestar se ele era ou não homossexual:
Os médicos se detiveram sobre o pênis diminuto, com sua cabeça particularmente pequena e afilada. Mais importante para eles foi o ânus. Inseriram-lhe um instrumento e descobriram que sua ‘contratibilidade’ era quase normal e que não havia ferimentos.
A relação proibida entre os poetas terminaria com Verlaine preso após atirar contra Rimbaud e o ferir no pulso, em um hotel em Bruxelas. No entanto, isso não arrefeceria a lealdade de Verlaine, que teve carreira mais longa e foi o principal responsável pelo reconhecimento do amante como gênio da literatura após 1880. Condição, aliás, que Rimbaud desprezava depois de se tornar um venerável comerciante no Iêmen.
Do período africano, restaram cartas nas quais Rimbaud se queixava constantemente do calor no deserto, dos árabes e do tédio, mas que, mesmo assim, não foi o suficiente para avivar planos de retorno à pátria. Somente um câncer, que o obrigaria a amputar a perna direita na altura do joelho, suspenderia sonhos prosaicos de ficar rico com o comércio e ter uma família. No final da vida, de muletas, infeliz e com a mãe interessada em herdar sua pequena fortuna conseguida no deserto, pouco restava daquele jovem anárquico de olhos de Husky siberiano que desconcertou os parisienses.
Pesadelos
O mundo prodigioso que tenho na cabeça, do romancista Louis Begley, é mais rigoroso nas referências e na análise das obras do escritor checo. O livro é dividido em quatro partes distintas, em que explora o judaísmo, o convívio (ao menos platônico, na maior parte das vezes) de Kafka com as mulheres, a doença e, por último, a ficção. Begley faz uma reconstrução apurada do ambiente anti-semita da Europa pré-Hitler e presta um importante serviço apontando as interpretações forçadas da obra com base na vida do autor.
Franz Kafka criou uma das mais belas e ao mesmo tempo incômodas prosas do século 20, em romances como A metamorfose, O processo e o inacabado O castelo. Das situações opressoras vivenciadas por Josef K., protagonista de O processo, surgiu o termo kafkiano, usado para designar um sujeito massacrado pelo Estado. O romance ficou célebre, ainda, ao antecipar abusos trazidos pelos regimes nazi-fascistas e comunistas no século 20.
Qual é o segredo da ficção de Kafka, que se esquiva de exegeses e toca nervos que o leitor sequer imaginaria possuir? Entre 1912, quando escreve O veredicto, A metamorfose e O foguista (que viria a ser o primeiro capítulo de Amerika), e 1914, ano em que redige A colônia penal e inicia a escrita de O processo, Kafka tem o seu período mais produtivo como ficcionista.
Culpa, punição e crueldade, além da figura recorrente do pai colérico, são temas recorrentes em sua obra. Entretanto, o que prende o leitor da primeira à última página é um elemento de estranhamento (como a mutação de Gregor Samsa em A Metamorfose) diluído num ambiente descritivo e realista, onde os personagens seguem ritos normais diante daquilo que seria um pesadelo. O ponto alto do livro de Begley é o exame lúcido de eventos da época (como o caso Dreyfus) e da vida de Kafka que compõe o repertório e serve de moldura para os romances.
Devemos entender a obra como ela é (Na colônia penal): a tentativa desesperadamente corajosa do autor de digerir pesadelos dos quais não conseguia acordar — com a aura de todas as possíveis associações e referências em torno da história servindo para intensificar nossa experiência e não para ditar nossa interpretação. A verdade é que os ficcionistas raramente — talvez nunca — pensam em apenas uma experiência, ou um conceito, ou uma única pessoa ou grupo de pessoas quando criam uma obra de ficção, mesmo que seja um roman à clef, o que não é o caso de nenhum texto escrito por Kafka. Quando uma obra está em gestação, seu criador é assediado por uma multidão de possibilidades incipientes, a maioria das quais ele não desenvolve. Lampejos inesperados, alguns muito úteis, tornam-se milagrosamente disponíveis.
“Molenga”
Kafka era tímido, reservado, hipocondríaco (e depois doente de tuberculose), retraído e sexualmente frustrado. Passou quase toda a vida no apartamento dos pais em Praga e empregado numa firma de seguros, da qual se aposentou por invalidez após uma crise nervosa. Crítico severo dos próprios escritos, mandou o amigo Max Brod (1884-1968), biógrafo e responsável pela publicação da obra póstuma, queimar livros inacabados, cartas e diários.
Caso Brod tivesse cumprido o último desejo do amigo, o melhor da ficção de Kafka, incluindo O processo, O castelo e Carta ao pai, bem como detalhes de sua vida, jamais seriam conhecidos pelo público. Além disso, as cartas que escreveu — era um missivista compulsivo — e os diários que deixou são hoje as principais fontes para os biógrafos e estudiosos.
Sobre os ombros de Kafka pesava a atmosfera tirânica de dois guetos. Um deles físico e cultural, no qual os judeus eram alvos de conflitos racistas que culminaram no Holocausto (Kafka teve três irmãs que morreram em campos de concentração nazistas). Outro, familiar e emocional, marcado pela presença despótica do pai, um homem tacanho que não via valor em seus livros e cuja índole é descrita, sem concessões, em Carta ao pai.
O misantropo que se revela em cartas e diários (“A vida é meramente terrível; sinto isso como poucos […]. Duvido que eu seja um ser humano”) ansiava por se desfazer ao máximo de compromissos para se dedicar integralmente à literatura. O incomodava o trabalho burocrático e a agitada rotina doméstica dos pais e irmãs. Ao mesmo tempo, era fraco para largar o emprego, sair da casa dos pais e arriscar-se na carreira de escritor. Quando finalmente conseguiu aposentadoria compulsória e foi morar com a amante, em 1922, era tarde demais. Doente, só sobreviveria por mais dois anos.
Segundo Begley, as lamúrias eram desculpas para bloqueios criativos:
Poder culpar o Instituto (seguradora) e as condições do apartamento dos pais pelos longos períodos de latência em que não conseguia escrever dava cobertura a Kafka, permitindo-lhe preservar parte da auto-estima. A necessidade de preservá-la era real: em comparação com seus amigos, ele era um molenga,
diz, referindo-se aos amigos escritores Max Brod, Oskar Baum (1883-1941), que era cego, e Franz Werfel (1890-1945). Eles publicavam enquanto Kafka reclamava. Ficar diante da página em branco sem outros afazeres, afirma Begley, seria insuportável para o espírito angustiado de Kafka.
Amores
Com a mesma indecisão existencial o escritor torturou suas amantes, sobretudo Felice Bauer (1887-1960), a quem infernizou por meio de cartas por cinco anos, ao longo dos quais ficou noivo — e rompeu a relação — por duas vezes. As cartas, que devem ter deixado a noiva em desespero, são em alguns momentos hilárias, como quando descreve para uma amiga, com uma indiscrição surpreendente, a visão que os dentes banhados a ouro de Felice lhe provocaram quando os dois se conheceram:
Para dizer a verdade, esse ouro reluzente (um brilho realmente diabólico para esse local impróprio) assustou-me tanto de início que tive de baixar os olhos à vista dos dentes de F. e da porcelana cinza-amarelada. Depois de algum tempo, sempre que podia, relanceava os olhos para eles de propósito a fim de não os esquecer, para atormentar-me, e finalmente para me convencer de que tudo é mesmo verdade.
Em outros trechos, Kafka soava como uma simples criatura inconveniente ou um indivíduo de caráter frouxo, que usava toda sua eloqüência para conquistar e impingir sofrimento às amantes. Nada disso, todavia, o impediu de ter o trabalho no escritório estimado pelos colegas e de desfrutar uma vida social com seus amigos, um restrito círculo de intelectuais judeus de Praga. Eles admiravam seu talento como escritor e acompanhavam Kafka em bordéis, cabarés e cafés da cidade.
Por outra perspectiva, como não se emocionar com esse homem que, no leito de morte, sofrendo dores pungentes causadas por tuberculose na laringe e sem poder falar, deixa registrado em um bilhete escrito no hospital frases como “Põe a mão na minha testa por um momento para me dar coragem”?
Ao morrer, em 3 de junho de 1924, um mês antes de completar 41 anos, estava só, como Rimbaud no exílio e, no hospital, amparado apenas pela irmã Isabelle. O que ambos perseguiam estava além do alcance dos versos e fábulas que criaram, e que somente o outro (que repeliram) poderia lhes dar: o reconhecimento ou, quem sabe, a mera compreensão do gênio que foram na literatura. Isso, apenas a posteridade teve paciência e discernimento suficientes para fazer por eles, de forma plena e à altura de sua arte.