Há cerca de um mês, houve certa polêmica causada por uma exposição a ser montada no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Na ocasião, o artista Alexandre Vogler, convidado a participar, pretendeu expor uma obra constituída pelo cartaz publicitário de uma revista masculina em que uma ex-participante de um reality show aparece minimamente (leia-se apenas intimamente) vestida. O diferencial da obra é que tal cartaz trazia em si alguns rabiscos, feitos por um pichador anônimo. A direção do museu interveio, e, alegando que a exposição desautorizada da imagem de uma pessoa poderia gerar problemas, vetou a idéia. A fim de resolver o impasse, Vogler entrou em contato, via internet, com a assessoria da modelo. Como não obteve consentimento para tornar pública sua obra de arte, a solução encontrada por ele foi expor, no lugar do cartaz, as mensagens que processaram a malfadada negociação.
Manifestações dessa natureza (e o respaldo pseudocrítico dado a elas) deixam-nos diante de uma desoladora certeza: há entre nós uma larga aceitação, em nome do inusitado, da gratuidade e do vazio, como se a diferença, apenas por seu aparente ineditismo, fosse antes de tudo a expressão do fazer artístico.
O caso da recente poesia brasileira não é diferente, pois os poetas de maior prestígio midiático e acadêmico são os que escrevem de forma aparentemente diferente para dizer pouco, e disso é exemplo Esquimó, novo livro de poemas de Fabrício Corsaletti.
Na abertura, o poema Everithing is broken aponta para as fraturas do mundo atual — “a alegria/ está quebrada/ o cansaço/ está quebrado/ tudo está quebrado” —, revelando um mal-estar do sujeito diante de seus dias que impregna todo o livro, o qual tem como mais constante atmosfera um tom algo deprimido: “eu posso amar/ ou destruir/ minha existência/ — o que quer que eu faça/ não altera em nada/ a gaiola vazia”, diz Uma certeza.
Mas a despeito desse importante olhar, social e literário, o livro de Fabrício Corsaletti caracteriza-se mais como peça na vitrine do shopping da cultura pós-moderna do que como negação do mesmo. Por seguir a suposta cartilha da transgressão, da poesia que se julga alternativa e nova apenas por vestir calças rasgadas e usar tatuagens, os textos de Esquimó, com duas ou três exceções, são rasos no tocante à visão de mundo, e repetitivos e banais em sua constituição formal, conforme visto em Variações sobre um desconhecido:
1
um desconhecido está parado em frente a um restaurante
o mesmo desconhecido não está mais
parado em frente a um restaurante
2
um desconhecido está parado em frente ao mar
o mesmo desconhecido não está mais
parado em frente ao mar
Em seus feitos mais constantes e consistentes, o Modernismo primou pela despoetização do texto poético, para aproximá-lo da vida e dos homens comuns. Uma vez que o pensamento vanguardista ainda se mantém como diretriz no cenário artístico contemporâneo, é possível observar uma acentuada má interpretação das vanguardas como um todo. Muito daquela fúria e do desvario do início do século 21 (pensemos em Oswald de Andrade, por exemplo) foi absolutamente necessário e específico para as circunstâncias do tempo, visto que os meios de legitimação da literatura estreitavam seus círculos de eleitos. Por isso, a desauratização da arte, ao corroer certas ideologias mantenedoras do tradicionalismo (que não é sinônimo de tradição), foi também um gesto para ampliar os horizontes do homem.
Mas atualmente, quando uma criança pode obter as mais vermelhas lições sexuais diante de qualquer banca de jornal, e quando moças leiloam sua virgindade na internet, a poesia poderá subverter padrões e valores com fórmulas centenárias? Pois em Esquimó, Fabrício Corsaletti parece apostar todas as suas fichas no exercício desestetizador, impregnando o livro de meras fagulhas do pensamento, de acordo com as quais se poderia supor que qualquer idéia, só por transcrita em verso, constitui um poema: “eu deveria/ ter um cavalo/ chamado Cassino// mas eu já tive/ um cavalo/ chamado Cassino// eu deveria/ ter um cachorro/ chamado Sinal”, diz o segundo dos Três poemas anastacianos.
Feitos ilhados
E é pelos trilhos da gratuidade discursiva e do vazio expressivo que Esquimó faz, parado, o seu caminho, causando certa surpresa e lamento por parte de quem leu Estudos para o seu corpo, de 2007, no qual o autor reuniu três livros em que se vêem alguns bons poemas, num lance de escritor em formação. Mas nesta obra de agora, em muito pouca coisa se vê a mão de um poeta. Cito como exemplo uma bela e suave imagem — “o açúcar da sua voz/ não sairá dos meus ossos”, de Poesia e realidade — e a tocante confissão do drama do artista contemporâneo, posterior a tudo, em Penúltimo poema sobre meus pais: “Mas a metafísica me deprime/ as questões sociais me ultrapassam/ e meu amor só quer me ver feliz”.
Esses feitos parecem ilhados nas páginas em que há total ausência de construção estética e de referencialidade. Parece claro a qualquer leitor de poesia que a literatura tem suas verdades particulares, sendo também peculiar sua maneira de dizê-las. Mas atualmente há entre os jovens poetas uma espécie de vício ou fetiche pelo mero amontoado de palavras, as quais, engarrafadas no poema, nada constroem, nada destroem (por mais que haja, como dito anteriormente, a evocação da vanguarda), nem nada dizem. É o caso do breve Últimas variações — “Fabrício Crepaldi Corsaletti/ é meu verdadeiro nome/ não Fabrício Corsaletti// Fabrício Corsaletti/ é meu verdadeiro nome /não Fabrício Crepaldi Corsaletti” —, e (no fundo, sinto-me inclinado a exemplificar com todo o livro) de um mais extenso, Exclamações para César Vallejo: “e quantos mapas sobre a mesa!/ que mesa!/ que janela!/ que vida!/ que vizinhança!// que filme!// que populoso!// e que passado!/ que traste!/ que tristeza!/ que baita angústia!/ que puta livro!// e que remoto!”.
Fica deste Esquimó a impressão de que seu autor não o fez para que fosse levado a sério. Mas se houve, por conseqüência, a intenção de um livro solto e irônico, a tentativa foi vã. Pela linguagem rasa e pela ausência de nexo, a obra de Corsaletti está muito próxima do que é, em termos culturais, mais comum e alardeado em seu tempo. Mas, como este é um tempo de inversão de valores, a contigüidade à época é justamente o que termina por afastar o livro da arte.