Huracán, huracán, venir te siento
y en tu soplo abrasado
respiro entusiasmado
del Señor de los aires el aliento.
José María Heredia
A afirmação de que a sociedade expulsa aquilo que não pode assimilar, dita por Octavio Paz a respeito dos poetas, impõe-se quando o caso à luz é o do poeta cubano José María Heredia (1803-39). Porque exalta paixões terrenas, porque turva o juízo e produz catarse, porque nasce de mentes enfermas, a poesia é uma atividade perigosa que mina o estado de coisas.
A história da América Latina é a história de seus desterrados, párias anônimos e célebres, cujas composições adensaram seu mito fundador, sua pátria — palavra que hoje foi apropriada pelos que, a exemplo do poder colonial, estão a serviço de si ou de outros tiranos além-fronteiras. Notável pela força e desmesura dos versos, Heredia teve a vida reduzida à sobrevivência no exílio, compondo os poemas que seriam base para a poesia de língua espanhola e projetariam a literatura cubana para além da ilha, quase um século antes de Cuba se tornar independente.
Sua vida trágica foi romanceada no livro O romance da minha vida, pelo conterrâneo Leonardo Padura, há algum tempo o escritor cubano mais conhecido fora de seu país. Heredia também é parte — e serve como imagem precisa — do volume de ensaios Água por todos os lados.
A trama é contada por Padura a partir de três pontos de vista, todos eles marcados por ditaduras: um manuscrito desaparecido de Heredia, o autobiográfico Romance da minha vida, cujo conteúdo supostamente impactante, sobretudo em relação a personagens da história literária cubana, seria tema de polêmica; os últimos dias do filho de Heredia, José de Jesús, executor das vontades do pai, que em 1921 entregara os originais à loja maçônica Filhos de Cuba, envolvida na luta independentista; e o de Fernando Terry, intelectual expulso do país pela ditadura de Fidel Castro nos anos 1980, e que 18 anos depois volta a Cuba para encontrar o manuscrito, tema de seu doutorado e obsessão compartilhada com um antigo grupo de amigos literatos, Os Sabichões (Los Socarrones, termo para caracterizar um sabe-tudo, com ares autossuficientes, segundo tradução de Monica Stahel).
Autor de uma série conhecida de romances policiais, Leonardo Padura reveste a trama com a estrutura de um thriller de investigação, ainda que a suposta existência do manuscrito não seja o principal elemento. Até porque Heredia vai nos revelando o conteúdo de seu relato, e pouco importa se Fernando vai realmente encontrá-lo — desde o início, entendemos que Padura vai nos enrolar com pistas falsas e personagens secundários pouco confiáveis. O real mistério da história de Fernando é de ordem particular: dos quatro Sabichões, pelo menos um deles o delatou.
Na busca pelo manuscrito, Fernando tenta também reparar a relação com os amigos e com o país cuja presença espectral nunca deixou de atordoá-lo em 20 anos de exílio, primeiro nos Estados Unidos, depois na Espanha. Fernando acredita espelhar a vida trágica de Heredia, cuja reparação nunca encontrada em vida pode se realizar quase dois séculos depois, na presença do manuscrito e na descoberta dos traidores.
Pertencimento
Em O romance da minha vida, o relato de José María Heredia se sobressai, como é comum a alguns livros que intercalam narrativas. O tom pessoal e melancolia de seu quase lamento têm mais vigor que a trama intrincada da busca pelo manuscrito, narradas de forma impessoal por Padura, ainda que se aproxime de seus personagens centrais. O conteúdo documental — afinal, trata-se de um romance histórico — satura o livro e é preciso que os personagens sempre indiquem o quê, quando e a quem algo pode acontecer ou já aconteceu.
Embora tenha nascido em Cuba, já na primeira infância Heredia se acostumou a viver num “constante vaguear”. Filho de funcionário real, percorreu a América ainda jovem, residindo também em São Domingos e na Venezuela. Na volta a Cuba, especificamente na vivência em Havana, durante a adolescência, a poética de Heredia se formou.
É fato que ele, educado pela metrópole — recebera do pai “o sentimento de ser um espanhol ultramar”, como diz Padura num dos ensaios —, cresceu lendo clássicos latinos e poetas franceses. Mas foi em sua pátria escolhida que o leitor voraz se fez poeta, mediado pela experiência visceral entre as cidades de Havana e Matanzas, onde conheceu o amor pelas mulheres (o sexual e o platônico) e trocou poemas entre seus pares, imaginando a glória poética que inevitavelmente teria, já embebido da ideia de fundar uma tradição literária.
De fato, o primeiro poeta da América, como disse José Martí, já aos 15 anos escrevia um poema saudoso à “doce pátria” que deixava — temporariamente. Trata-se já de um indício do sentimento característico do exílio, a densa nostalgia que persegue o desterrado, elemento inerente à literatura cubana, conforme afirma Padura em ensaio sobre Heredia.
Tu, no entanto, partes, e à doce pátria
Tornas… Dado me fosse
Tuas pisadas seguir […]
Ó! Como palpitante saudaria
As doces costas da pátria minha,
Ao ver pintada sua distante sombra,
No tranquilo mar do meio-dia!
(A Elpino, tradução de Monica Stahel)
Para Padura, o senso de pertencimento de Heredia se aflorou em Cuba também por ter vivido num período de mudanças econômicas na colônia, que agora crescia baseada na “revolução plantadora” (tabaco, açúcar e café), e sociais, pois a efervescência econômica acendeu a fogueira do nacionalismo em grupos que já se distinguiam entre crioulos (nascidos em Cuba) e peninsulares (espanhóis). Além disso, em fevereiro de 1818, foi decretada a abertura de todos os portos do país ao comércio internacional e proclamado o fim do monopólio do tabaco, atendendo aos anseios da elite cubana.
Mas o que viria a incomodar o jovem Heredia e acender seu espírito cívico seria o fenômeno da escravidão — então em “seu período mais infame”, segundo Padura — destinado a aumentar as fortunas de homens ligados ao Império Espanhol. Diz o personagem Heredia, no romance:
Para aqueles crioulos ricos, a escravidão de outros homens era um modo de vida tão natural que uma mulher culta e mundana como a que agora me oferecia proteção podia ser a mesma pessoa que alguns anos atrás se empenhara em cercear, com crueldade exemplar, o talento inato para a poesia do jovem escravo Juan Francisco Manzano, nascido em sua propriedade, por ela martirizado por causa da ousada pretensão de querer escrever e publicar seus versos. Para a marquesa, como para todos os de sua classe, um negro era menos que um cão, portanto era inconcebível que pudesse ler ou escrever.
A partir desse momento, então um jovem estudante de direito, Heredia passa a pregar abertamente contra a escravidão nos jornais do país e a escrever poemas abolicionistas e independentistas. Embora Cuba vivesse ainda certo marasmo em relação ao momento histórico, em que as revoluções independentistas já tomavam a América Latina, o poeta cubano já entendia que uma identidade americana começava a se formar, sobretudo baseada na opressão colonial que sofriam. Depois de dois anos no México — onde o anseio separatista já era realidade —, em 1822, Heredia volta a Cuba, e decide ingressar na conspiração Sóis e Raios de Bolívar, gestada nas lojas maçônicas espalhadas pela ilha.
Em setembro daquele ano, em passagem marcante no romance de Padura, Heredia testemunha a imagem romântica por excelência: a fragilidade do homem diante da criação da natureza. Depois de marcada a sedição pela independência, o poeta vagueava sentindo o tempo findo da poesia e o início “da ação e das armas”. Não sabia estar na presença da Musa que lhe daria seu auge descritivo no poema Em uma tempestade, cujo início é conhecido (“Furacão, furacão, te sinto vir), quando sentiu os açoites do vento nas ruas de Havana. Entregue à tempestade que se formava, “que fazia voarem telhas e madeiras”, ele caminhou até um embarcadouro. Lá, encontrou um touro amarrado numa pilastra, aterrorizado.
Sem pensar, soltei a amarra que prendia o animal e, para não ser arrastado por uma nova rajada de vento, tive que me segurar à pilastra. O animal, finalmente livre, tentou atravessar o rio que transbordava, mas voltou e, muito perto de mim, começou a escavar a terra com suas patas fortes, como se quisesse cavar a própria sepultura. (…) de repente se produziu o verdadeiro milagre: imprevisivelmente se fez a alma por um tempo alheio ao futuro mensurável dos relógios, e um raio de luz impoluto abriu caminho no céu e veio cair a meus pés. O touro, como alertado por alguma voz interior, parou de escavar e levantou os olhos para o firmamento luminoso para o qual também eu levantara o olhar. Meus braços, extenuados e vencidos, soltaram a corda, e caí de joelhos diante da luz, sentindo lágrimas cálidas rolarem-me pelo rosto, encharcado pela chuva.
Meses depois da visão, a conspiração tinha sido descoberta. Heredia tinha apenas 19 anos e não viveria muitos mais, traído pelas circunstâncias e acima de tudo pelos homens que reduziram o poeta à tristeza de um exílio que enfim secaria sua poesia. Nos primeiros anos de seu desterro, porém, Heredia ainda escreveria seu poema mais conhecido, Ode ao Niágara. Paralisado diante da visão irreal das cataratas, o poeta se pergunta, afinal: “Quando acabaria o romance de minha vida e finalmente começaria sua realidade?”, e, “no meio daquela exaltação espiritual”, retira um papel e sente-se transbordar.
Dai minha lira, dai-me-a, que sinto
Em minha alma estremecida e agitada
Arder a inspiração. Ó! Quanto tempo
Em trevas passou, sem que minha fronte
Brilhasse com sua luz…! Niágara undoso,
Teu sublime terror só poderia
Devolver-me o dom divino, que enfurecida
Me roubou da dor a mão ímpia.
A alma das coisas
Em ensaio de Água por todos os lados, Leonardo Padura cita o poeta e escritor cubano Cintio Vitier, para quem a sugestão dionisíaca dos poemas descritivos de Heredia revela uma faceta essencial da cubanía, isto é, seu “veemente prazer diante da impalpável força arrasadora”. Devastadora, a passagem de Dionísio, segundo Padura, “é uma força superior, necessária, capaz de mudar a ordem das coisas”.
Na obra de Padura, mais do que transgressão estética, o frêmito de Dionísio atravessa a realidade das coisas. Assim como Heredia, que pretendeu intervir — e não só por meio da literatura — na sociedade de modo a libertá-la, o romancista acredita que a literatura pode oferecer respostas e transmitir ideias sem perder o status de obra de arte. Como o próprio autor diz num de seus ensaios, não se confunde compromisso com intencionalidade, “pois a intencionalidade é mais diversa”.
A dúvida em torno da finalidade de um romance baliza a reflexão que Padura propõe na segunda parte do volume de ensaios, Para que se escreve um romance?. Ele cita o romancista tcheco Milan Kundera, que acredita no romance como “uma arte sui generis, uma arte autônoma”, com sua própria moral (agora se referindo ao austríaco Hermann Broch): a moral do conhecimento, pois “é imoral o romance que não descobre nenhuma parcela da existência até então desconhecida”.
O papel do romancista seria “chegar à alma das coisas”, como disse Flaubert, tecendo uma relação de irrevogável liberdade entre os elementos primordiais do gênero, que são, segundo Padura, nós, leitores, “sujeito e o objeto dos romances (…), entes como nós, transformados em personagens que acarretam dramas vitais e existenciais graças a um criador que, para conseguir aquilo a que se propõe, pode tomar todas as liberdades”.
Liberdade não necessariamente vinculada à evolução do gênero ou à abordagem inédita da forma, em suma, sua inventividade ou originalidade, frutos de uma imaginação supostamente ímpar. Padura vincula seu método de escrita ao do romancista espanhol Manuel Vázquez Montalbán, defensor do romance como “veículo de ideias”. Citado por Padura, Montalbán volta à questão da intencionalidade, divergindo dos autores que começam a escrever “sem propósito”, e para fundamentar seu argumento, lembra dos franceses Albert Camus e Jean-Paul Sartre: se a intenção de influenciar — a um leitor ou uma sociedade — é ilegítima na arte do romance, o que fazer com O estrangeiro e A náusea, obras de clara estratégia filosófica ou ideológica?
Escritor realista — no sentido de que sua literatura se alimenta da realidade vivida —, Padura afirma que escreveu sua obra máxima, O homem que amava os cachorros (2009), sobre o assassinato de Leon Trotsky, para superar a ignorância que tinha sobre o assunto, sobretudo porque até a década de 1990 pouco se sabia a respeito, mas também para resgatar figuras e principalmente eventos históricos forjados no esquecimento, como fez ao retratar o poeta cubano José María Heredia e, em romance posterior, Hereges, o pintor holandês Rembrandt.
Para penetrar nas frestas da história e na psique de seus personagens — reais? —, tornando a fabulação não só crível mas necessária, o conhecimento profundo e específico do espaço em que o narrador se movimenta se torna um elemento inescapável.
O método que precisei adotar para escrever romances é tão simples quanto devastador: abordar uma realidade já existente, presente ou passada, próxima ou distante, e conhecê-la a ponto de me sentir em condições de escrevê-la e imaginar, a partir do conhecimento íntimo de uma época, um personagem, uma situação histórica, um episódio ou uma série deles, de tal maneira que, se o que é narrado não aconteceu exatamente como o escrevo, poderia ter acontecido como o escrevi (…)
Ao longo de sua história literária, Leonardo Padura tem retratado as variadas formas de controle a que os indivíduos foram e estão sujeitos. A censura, o desterro e a morte são em geral as consequências para os hereges que praticam a liberdade, qualquer que seja o tempo histórico. Fica, no entanto, como o rastro de Dionísio, uma reflexão que não se esgota na obra. Como disse Donald Barthelme, a literatura tem um aspecto melhorativo que lhe é imanente: “O intuito de meditar sobre o mundo é finalmente mudar o mundo”.
A heresia da literatura é uma rebelião silenciosa.