Exercício de inspiração californiana

Como Robinson Jeffers e Kenneth Rexroth tiveram papel fundamental na reinterpretação e no impacto de ideias que ajudaram a mudar os séculos 20 e 21
Ilustração: Conde Baltazar
31/03/2021

A poesia é necessária porque a vida não basta. A frase, atribuída a Fernando Pessoa e repetida por Ferreira Gullar, costuma ser evocada sempre que alguém faz a incômoda sugestão de que a poesia não serve para nada. Não vejo como discordar. Mas e se alterarmos um pouquinho a frase de Pessoa, dizendo que a poesia é necessária porque pode transformar vidas? Mesmo vidas de quem nunca leu poesia? Foi esse exercício, impressionista, mas com base em um exemplo concreto, que tentarei fazer aqui.

É inegável que a vida não tem sido nem um pouco fácil para a poesia. Quando digo a alguém que escrevo poemas, algo que seria motivo de orgulho em outros tempos e lugares, noto imediatamente em meu interlocutor um olhar diferente, meio interrogativo, talvez de quem quer saber que tipo de louco eu sou, se manso ou perigoso, porque quanto à insanidade em si não haverá dúvida. E há mais do que mera subjetividade nessa conclusão. Relatórios do mercado mostram que há um número bem maior de poetas do que leitores de poemas. Ou seja, nem os próprios poetas se animam a ler as obras de seus colegas.

Ah, mas houve um tempo… Sim, houve. Mas não nos iludamos. Jamais teremos de volta os tempos gloriosos em que a poesia esteve no centro da vida humana. Sem me atrever a regressar aos contadores de história em volta do fogo do paleolítico (para isso, recomendo o Sapiens de Yuval Noah Harari), me limitarei aos exemplos mais conhecidos[1].

Na antiga China o sujeito não faria carreira na cobiçada máquina burocrática imperial se não conhecesse bem o gênero e não fosse ele próprio um bom poeta. No mundo mediterrâneo foi sempre tão notório que a Ilíada e a Odisseia haviam sido essenciais para forjar a identidade grega que o imperador Augusto — sabendo que Roma, embora já tivesse um império, ainda não uma alma — encomendou ao seu amigo Virgílio a sua própria versão de um poema fundante, a Eneida. Que, aliás, ficou muito bom. E, como Tim Mackintosh-Smith deixou claro em Arabs[2], não teria havido Maomé e a expansão árabe sem a poesia. O Corão é escrito na mais refinada linguagem poética que aqueles tempos conheceram. Não, num mundo em que há infinitas outras maneiras de se criar, reproduzir e distribuir cultura, aqueles tempos de ouro da poesia não voltarão. Mas será que isso quer dizer que poetas e poemas ficaram irrelevantes? Meu palpite é que não.

Penso que, ao afirmar que os poetas eram a antena da raça, Pound produziu mais do que uma frase de efeito. Os poetas costumam ter uma capacidade acima da média para “captar sinais”. E, como uma velha antena esquecida num telhado cheio de goteiras, não é porque quase ninguém sintoniza a TV enferrujada que os poetas deixam de captar as ondas magnéticas. E, por vezes, de tanto teimar em replicar o que recebem, acabam por ser ouvidos, e pode acontecer que, mesmo sem se dar conta, ajudem a mudar o mundo.

O homem e a natureza
Essas questões me ocorreram enquanto eu lia sobre dois poetas do século 20 na Califórnia, Robinson Jeffers (1887-1962) e Kenneth Rexroth (1905-1982), atualmente semiesquecidos, ou no mínimo menos lembrados do que deveriam[3]. Poderíamos começar a história em 1913, quando o primeiro deles, fugindo do escândalo causado pelo namoro com Una, uma mulher casada com um figurão de San Francisco, refugiou-se (com ela, com quem ficou até que a morte os separou) em uma região remota no sul do estado, e lá ficou. Comecemos pelo pano de fundo, a Califórnia.

Se alguém olhasse para a região em 1542, quando o navegador português João Rodrigues Cabrilho avistou a terra e (segundo a versão que eu prefiro, batizou-a com o nome de uma praia perto de Setúbal, sua terra natal), jamais diria que aquele viria a ser um lugar importante tanto econômica quanto — o que me interessa aqui — culturalmente. Árido, o litoral californiano por muito tempo só atraiu, entre os europeus, os missionários cristãos, jesuítas e franciscanos, que iam subindo desde o México e fundando aldeamentos (como fizeram no Brasil) com nomes como San Diego, San Francisco e Nuestra Señora la Reina de Los Angeles.

Relatórios do mercado mostram que há um número bem maior de poetas do que leitores de poemas. Ou seja, nem os próprios poetas se animam a ler as obras de seus colegas.

Até meados do século 19, a irrelevância global da Califórnia, então território do México recém-independente, era total. A população, em 1850, quando foi tomada pelos Estados Unidos, pouco antes da imigração em massa por conta da febre do ouro, era de apenas 120 mil pessoas. Cem anos mais tarde a Califórnia já era uma das regiões mais habitadas e ricas do planeta, e sede da mais influente indústria cultural até então existente, Hollywood. Mas a região daria muito mais ao mundo, no século 20, do que “apenas” filmes. E aí, voltando ao fio da meada, vêm à mente movimentos como a contracultura, o pé na estrada, os beats, os hippies, o resgate da vida junto à natureza. Que devem muito de sua existência aos dois poetas de quem trato aqui.

Quando foi obrigado a fugir de San Francisco, Robinson Jeffers refugiou-se na então remota Carmel, no sul do estado, onde comprou a preço de banana uma área extensa e ainda selvagem. Lá, ele dividia o tempo entre escrever, perambular por trilhas e construir uma torre de pedra com as próprias mãos. Jeffers desenvolveria uma poética radicalmente pró-natureza, que era diferente tanto do Romantismo europeu quanto da tradição norte-americana inaugurada por Emerson e Thoreau.

A natureza, para Jeffers, não era algo que poderia fazer o ser humano ser melhor, mais puro ou mais verdadeiro. A boa natureza, para ele, seria melhor em si, para ela mesma, sem a presença do ser humano. Ou, colocando de outra forma: para Jeffers, a natureza poderia aceitar o homem, desde que este se submetesse às suas regras e se mostrasse disposto a se integrar a ponto de, no limite, dissolver-se nela. Ele até criou um termo para isso: “inumanismo”.

Um exemplo está no poema Vulture [Condor], em que o narrador, ao se deitar para descansar numa encosta da montanha, avista no céu um condor voando em círculos sobre ele, e percebe que seu corpo inerte está sendo investigado como potencial refeição. Mas o poeta avisa ao pássaro que, embora ser devorado por ele pudesse ser um belíssimo destino, o momento para isso ainda não havia chegado:

(…)
Estes velhos ossos ainda podem trabalhar; eles não são para você. E que
bonito ele era, planando, em descida
Naquelas grandes velas; que bonito ele era, mudando de direção na luz do mar,
sobre o precipício. Eu solenemente afirmo
Que fiquei chateado por tê-lo desapontado. Ser devorado por aquele bico, me
tornar parte dele, compartilhar aquelas asas e aqueles olhos
Que sublime fim para o corpo, que elevação; que vida, após a morte. 

Um eco deste poema pode ser percebido no fim que teve o jovem Chris McCandless, encontrado morto no Alasca em 1992, na história que deu origem ao livro (e subsequente filme) Na natureza selvagem. O bilhete de despedida de McCandless foi escrito no verso da página de um poema de Jeffers. É claro que a integração entre a natureza e as pessoas pregada por Jeffers nem sempre implicava ser devorado por um animal selvagem, como se pode ler, por exemplo, em A beleza das coisas, que começa assim:

De sentir e dizer a espantosa beleza das coisas terra, pedra e água,/ animal, homem e mulher, sol, lua e estrelas / A sangrenta beleza da natureza humana, de seus pensamentos, delírios e paixões.

Famoso por suas idiossincrasias, Jeffers foi um sujeito de poucos amigos, mas teve seus dias de glória (chegou a ser capa da revista Time). O fotógrafo Ansel Adams tinha nele uma importante fonte de inspiração, e Charles Bukowski dizia que ele era seu poeta preferido.

O prestígio de Jeffers começou a declinar quando estourou a Segunda Guerra e ele, um pacifista radical, se opôs, mesmo após o ataque japonês a Pearl Harbor. Quando morreu, em 1962, Jeffers, isolado em suas terras, experimentava há anos um quase completo ostracismo. Mas, pouco depois, surgiram os hippies, o zen-budismo e o veganismo, e a poesia dele estava por trás disso tudo, inspirando todas aquelas pessoas.

Nascem os beats
Entra em cena Kenneth Rexroth. Oriundo de Chicago, ele chegou à Califórnia em meados da década de 1920, quando Jeffers já gozava de grande prestígio. Rexroth dizia que detestava tanto a pessoa de Jeffers (o que era verdade) quanto sua poesia (o que era menos verdade). Uma parte da obra de Rexroth, voltada à vida na natureza, pagava inegável tributo a Jeffers. Mas, ao contrário do primeiro, Rexroth, que tinha origem na esquerda operária de Illinois, via a natureza como alguma coisa que deveria ser vivida e compartilhada por todo mundo. E não só a natureza: socialista de berço, Rexroth, ao amar a poesia, queria que ela fosse levada ao maior número possível de pessoas.

Ele foi um incomparável e incansável agregador: promovia saraus para divulgar jovens autores, escrevia em jornais, militava politicamente, fazia trilhas em montanhas e mantinha um programa de rádio semanal. Entre outras coisas, foi um dos primeiros (ao lado de Pound e Bynner) a levar as poesias clássicas da China e do Japão para os Estados Unidos. Sua vertiginosa capacidade de agitar fez com que a Califórnia passasse a ter peso próprio na cena poética norte-americana, até então concentrada em Nova York e Boston, a partir de um movimento que ficaria conhecido como San Francisco Renaissance[4].

Mas tanta atividade de divulgação acabou fazendo com que o poeta Rexroth pagasse um preço, e ele acabaria sendo mais lembrado pelo que agitou do que pelo que escreveu. O que é, não tenho dúvida, uma grande injustiça. Vejamos, por exemplo, As vantagens do aprendizado:

Sou um homem sem ambições
Com poucos amigos, totalmente incapaz
De viver do que ganho, ficando
Velho, fugindo de alguma maldição.
Solitário, malvestido, e isso importa?
É meia-noite, preparo para mim uma xícara
De vinho branco quente com sementes de cardamomo.
Vestido com um robe cinzento rasgado e uma boina velha,
Aqui sentado no frio, escrevo poemas,
Desenho nus nas margens amarfanhadas do caderno,
Copulando com garotas imaginárias
Ninfomaníacas de dezesseis anos. 

Foi graças a essa multiplicidade de atividades que, numa noite qualquer de outubro de 1955, Rexroth, que já tinha acolhido o nova-iorquino Ferlinghetti quando este voltou para os Estados Unidos após um doutorado na Sorbonne, promoveu um sarau para divulgar jovens poetas da costa leste.

Aquela noite, na qual Allen Ginsberg declamou Uivo, enquanto Jack Kerouac recolhia moedinhas entre o público, ficaria conhecida como a inauguração do movimento Beat. Ferlinghetti, Ginsberg, Kerouac, Corso e outros ficariam mais famosos que seu padrinho, a ponto de o próprio Rexroth ser citado, com frequência, como o “Beat mais velho”, algo que, aliás, o irritava, levando-o a dizer que trabalhar com insetos não transformava o entomologista em besouro (ao contrário dos outros beats, Ferlinghetti permaneceu em San Francisco e, seguindo os passos de Rexroth, se tornou ele próprio, com sua livraria e editora City Lights, um dos principais motores da cena cultural californiana).

A poesia de Rexroth, diferentemente da escrita por Jeffers, trazia com frequência um forte traço de revolta social, algo que os beats, e depois Bob Dylan, Joan Baez e outros incorporariam em suas obras. Rexroth ensinaria a todos que culto à natureza e protestos antissistema não eram coisas antagônicas, muito pelo contrário.

E, como uma velha antena esquecida num telhado cheio de goteiras, não é porque quase ninguém sintoniza a TV enferrujada que os poetas deixam de captar as ondas magnéticas.

Berço da contracultura
É claro que, no país de Walt Whitman, Jack London, Emerson, Thoreau, Melville, Jack London, John Muir, Ansel Adams e Woody Guthrie, seria um bocado de exagero dizer que Robinson Jeffers e Kenneth Rexroth[5] inventaram o culto à natureza, a valorização de uma vida ecologicamente sustentável, as canções de protesto ou a luta pelos direitos civis.

Ao mesmo tempo, é óbvio que a Califórnia, com Hollywood e tudo mais, caminharia em direção a um papel central na cultura ocidental com ou sem eles. Mas é inegável que, com o que fizeram e escreveram, Jeffers e Rexroth tiveram um papel fundamental na reinterpretação e no impacto de ideias que ajudaram a mudar os séculos 20 e 21. E que, se a Califórnia foi um dos principais berços da contracultura, isso teve muito a ver com eles.

E aqui chego às conclusões de meu exercício: mesmo que as pessoas pouco leiam, hoje, os poemas de Jeffers e de Rexroth, eles ficaram pairando no ambiente, influenciando e sendo absorvidos por mais de uma geração (e em mais de um país).

Jeffers e Rexroth, quando escreveram, captaram uma tendência, ou uma angústia, algo que estava no ar e que era maior e mais profundo do que eles poderiam imaginar. Captaram, digeriram, produziram e influenciaram. E, assim como no caso desses dois poetas da Califórnia (que me ocorreram apenas porque eu estava lendo sobre eles), há muitos outros exemplos, inclusive no Brasil (alguém vai negar que os modernistas de 22 tiveram uma influência desproporcional em relação ao número de seus leitores?). Poemas são importantes não apenas porque a vida não basta, mas porque eles têm o poder de mudar vidas e lugares.

[1] Um recente e muito bom texto sobre a importância da poesia (e da palavra escrita) na História está no livro O mundo da escrita, de Martin Puchner, trad. de Pedro Maia Soares, SP, Cia. das Letras, 2019. Sobre o papel dos poetas na China clássica existe uma bibliografia abundante, mas uma abordagem curiosa e pouco conhecida foi feita por Bill Porter (conhecido como Red Pine e um dos melhores tradutores de poesia clássica chinesa em atividade) no livro Finding them gone — Visiting China’s poets of the past, Port Townsend, Copper Canyon Press, 2016.

[2] Tim Mackintosh-Smith, Arabs — A 3000 year history of peoples, tribes and empires, Yale University Press, 2019.

[3] Para saber mais sobre a vida de Jeffers, uma boa biografia é a de James Karman, Robinson Jeffers, poet and prophet, San Francisco, Stanford University Press, 2015. Já a trajetória de Rexroth (especialmente a juventude) é relatada em detalhes por ele mesmo, em An autobiographical novel, de 1964, com sucessivas reedições e ampliações até a definitiva (Nova York, New Directions, 1991), com 542 páginas. Para uma brevíssima introdução aos poemas deles, traduzi para o Rascunho alguma coisa de Jeffers (ed. 176, dezembro de 2014) e de Rexroth (ed. 172, agosto de 2014).

[4] Um bom relato desse movimento está em The San Francisco Renaissance — Poetics and community at mid-century, de Michael Davidson, Cambridge Univ. Press, 1989.

[5] Poemas de Jeffers e Rexroth já apareceram em inúmeras antologias, inclusive no Brasil. Mas, se você quiser encarar um mergulho mais profundo na obra deles, recomendo, do primeiro, o The selected poetry of Robinson Jeffers, editado por Tim Hunt, Stanford University Press, com 738 páginas. E, do segundo, a The complete poems of Kenneth Rerxroth, editado por Sam Hamill e Bradford Morrow, da  Copper Canyon Press, com 764 páginas. E, se a curiosidade for com relação aos escritos de Rexroth sobre a natureza (que incluem, além de poemas, trechos da autobiografia, correspondência e artigos para jornais), um livro que eu recomendo é In the sierra — Mountain writings, editado por Kim Stanley Robinson, pela New Directions, com 214 páginas.

 

André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

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