Ouço com certa frequência: “Samuel Beckett é bom, mas é chato. James Joyce é um gênio, mas é chato. Thomas Mann é bom, mas é muito cabeçudo. Tal livro é bom, mas não tem uma história”. Se frases como essas forem pronunciadas por leitores com pouco repertório de leitura, eu me disponho e, junto com a pessoa, embarco em conversas, discussões, análises e práticas conjuntas. Mas se quem emite esses juízos for alguém com experiência e bagagem de leitura, sinceramente, fico irritada.
Para começar, acho chato dividir as coisas em “chato” e “legal”. Chato é um juízo tão definitivo — quase beirando o absoluto — que já contém, em si mesmo, uma recusa à escuta do que pode contrariá-lo. A pessoa pode até dizer, tudo bem, entendo e concordo com seu ponto, ok, mas é chato. E todos em volta dão risada, porque com a palavra chato não sobra discussão.
Chato é sem volume, plano, raso. O que me dá a entender que a expectativa desses leitores é ler romances acidentados, surpreendentes e profundos. Tudo o que certamente se aplica a Beckett e a James Joyce, por exemplo. Mas então por que eles são tão facilmente etiquetados como chatos? Acredito que seja porque lê-los dá muito trabalho: é preciso prestar muita atenção, reler muitas vezes, trabalhar com o não entendimento, com aquilo que foge às expectativas, suportar uma leitura que não convida o leitor a uma viagem em que ele possa se esquecer de que está lendo. Penso que chato, em muitos casos, tem a ver com o pedido do texto para que o leitor abandone uma atitude puramente receptiva, ou reativa, e adote uma atitude participativa e indagadora.
Chato é arrastado e demorado. Entendo menos ainda. Quem realmente gosta de ler sabe que o tempo da leitura é subversivo em relação ao tempo cronológico e ao tempo acelerado dos resultados e da publicidade. Vivemos aceleradamente, porque apressamos o tempo na direção de um objetivo que, assim que conquistado ou frustrado, é imediatamente substituído por outro. Vivemos com pressa porque estabelecemos nosso tempo cotidiano no futuro e não no presente. É assim e é muito difícil, infelizmente, que seja diferente. Mas a leitura é prazerosa, entre outras coisas, porque seu tempo é o da própria leitura — o presente processual. Ler demora e demorar é bom porque é morar lentamente, morar com afeto e conhecimento. É claro que deve haver espaço para a leitura de entretenimento ou para os livros em que o leitor quer simplesmente conhecer o desfecho. Mas isso não é e não pode ser suficiente para quem quer realmente mergulhar em literatura.
A leitura é prazerosa, entre outras coisas, porque seu tempo é o da própria leitura — o presente processual. Ler demora e demorar é bom porque é morar lentamente, morar com afeto e conhecimento.
Chato é cabeçudo, intelectualizado demais; chato é quem se acha. Antes de tudo, vejo uma falácia aqui. O discurso intelectualizado é supostamente chato e, por ser chato, faz do orador alguém que “se acha”. Trata-se de um duplo preconceito, em que o emissor da opinião provavelmente se defende de algum possível sentimento de inferioridade. Para ler com verdade é preciso ter humildade e vontade de inauguração, de conhecer as palavras e as coisas como se pela primeira vez, quase como uma criança. É preciso acreditar no contrato proposto pelo livro e suspender a descrença, como diz [Samuel Taylor] Coleridge. O leitor é também um recebedor, alguém que acolhe o texto com credulidade. E, nesse sentido, conversas altamente intelectuais, como no caso de A montanha mágica, por exemplo, são recebidas como novidades que merecem escuta e curiosidade. Por que falam assim, o que dizem, como dizem, por que discordam Leo Naphta e Lodovico Settembrini? Como faço para distinguir, em discursos conceituais e abstratos, o que é necessário e o que pode ser exibicionismo retórico? Trata-se de uma dificuldade importante e proceder a ela é dispor-se a jogar com o que se lê, entrar no jogo e não simplesmente dizer: é chato.
Chato é difícil. Pronto. Aqui chegamos no epítome do chato, seu núcleo duro. Mas o que é difícil? É aquilo que não entendemos de pronto, aquilo que demanda esforço de concentração e de paciência. Aquilo, enfim, que exige caminhos mais longos e que não tem como ser atingido por atalhos. É provável que tudo o que foi dito até aqui sirva para explicar a recusa generalizada ao que é difícil. Mas é importante dizer que o difícil em si mesmo não existe; trata-se de um adjetivo relativo.
Algo difícil pode vir a se tornar mais simples, como afirma [Lev] Vigotsky, pedagogo, com sua “zona de desenvolvimento proximal”. Para educar verdadeiramente, é preciso que o educador apresente problemas minimamente conhecidos pelos estudantes, mas com certa carga de desafio. Uma vez que o estudante processe aquele problema, uma nova zona será criada com um desafio maior. Isso é aprendizado e quem espera que a literatura lhe ofereça o mesmo e não o diferente, desculpe, mas não está interessado em literatura.
Em conversas privadas, íntimas, num bate-papo com amigos, na linguagem oral, é claro que não há problemas em se qualificar qualquer coisa ou mesmo pessoa como “chato” ou “legal”. A questão é que esses adjetivos não podem servir para dar cabo de uma opinião, especialmente para quem ama a literatura e ama ler e escrever.
E, sobretudo, é preciso que o “chato” seja acompanhado de desconfiança. Por que achei chato? Será que isso basta? Não estou sendo excessivamente condescendente comigo mesmo?
Sei que devo soar “chata”. É o preço a pagar. Mas não quero viver num mundo de “chatos” e “legais”. Isso é muito chato.