Categorias poéticas alternativas à ideia de barroco (final)

Quando se fala de arte do período inicial moderno, não há propriamente “estética”, pois não há uma concepção da autonomia do objeto artístico
Ilustração: Aline Daka
02/04/2021

Nas duas colunas anteriores, falei de duas categorias poéticas — “agudeza” e “artifício” — que podem dar uma perspectiva historicamente mais verossímil para a arte do período chamado de “barroco”, termo que não era empregado pelos artistas ou preceptistas da época. Antes de falar de uma terceira categoria, gostaria de especificar que, nas poéticas dos séculos 16 e 17, a noção de “artifício” não é análoga a “artificial”, nem contrária a “natural” ou “verdadeiro”. Bem ao contrário, ela ajusta verdade e natureza à ideia de “beleza”. A rigor, numa poética engenhosa, pode-se dizer que o artifício é a mediação mais produtiva entre o “belo-artístico” e o “natural-verdadeiro”.

Para se entender essa mediação, categorias teológicas precisam ser trazidas à discussão, pois, aqui, diversamente de uma concepção pós-kantiana, não há pensamento estético autônomo — ou, se se quiser, quando se fala de arte do período inicial moderno, não há propriamente “estética”, pois não há uma concepção da autonomia do objeto artístico. Para um preceptista do período, a “natureza” é, ela mesma, um “artifício” do engenho de Deus que cria o mundo organizado segundo a sua Vontade, sustentando-o por meio de “causas segundas” que operam dentro da mesma natureza. Vale dizer, a natureza é uma espécie de “máquina” ou “fábrica”, entendida como um mecanismo artificioso que é gerado pela Providência divina e cujo conjunto de partes e funções particulares pode operar regularmente por si mesmo.

Alternativamente, a questão também pode ser formulada assim: o artifício é uma espécie de “milagre” do ato da Criação que se conserva vivo no cerne da natureza criada. E, conquanto os fatos do mundo ocorram por meio de operações regulares, a sua arquitetura é sempre misteriosa, porque provém do seu Arquiteto original, Deus, que se encontra na origem de cada evento. Sob o movimento regular da natureza, está a “maravilha” da Criação divina. Tal seria a razão pela qual o artista está apto a descobrir relações ocultas numa natureza que, na superfície, é apenas sucessão de eventos.

Ou seja, na transferência dessa metafísica católica para as preceptivas engenhosas, “artifício” é o nome da operação intelectual que, analisando a regularidade dos eventos, descobre a sede do “milagre” escondido neles. O belo, dentro disso, é a versão mais excelente do verdadeiro, pois revela a face divina oculta na natureza. Isso também quer dizer que a “beleza” é fundamentalmente generosa, pois introduz o homem à verdade, ao mesmo tempo em que a oferece como objeto de gozo.

Isto posto, passo à terceira categoria poética relevante na compreensão da noção anacrônica de barroco: “decoro”.

O sentido de “decoro” pertinente ao período inicial moderno diz respeito a procedimentos técnicos de ajuste eficaz às diferentes situações oferecidas pela vida — especialmente na Corte, cuja etiqueta era altamente regulada. Aplicado à obra de arte, o decoro refere sobretudo a concordância entre as partes em favor da sua unidade final. Por exemplo, o artista deve observar a conveniência entre o ornato da elocução e a matéria da invenção: assuntos baixos pedem um tipo de enunciado ou representação baixa, da mesma maneira que os altos ou médios pedem registro proporcional. O que é indecoroso num gênero pode perfeitamente não sê-lo em outro: um termo de calão, impróprio num gênero alto como a tragédia, poderia ser ajustado a uma sátira; uma elocução engenhosa, com amplo uso de figuras de linguagem poderia ser adequada a um encômio, mas inadequada a um sermão, cujo orador, para ser capaz de emitir “provas morais” a respeito de si, deve se mostrar humilde em seu discurso.

Atualmente, esses procedimentos decorosos são apenas ruínas. Por isso mesmo, hoje, o mais comum é usar-se o termo “poema”, uma designação genérica que se aplica a temas laicos ou sacros, quotidianos ou afetivos de qualquer sorte. Já para um autor dos séculos 16 ou 17, cada gênero de poesia está pensado em função de um tipo de afeto, pompa ou circunstância. Por exemplo, em termos de poesia lírica, um soneto é uma forma equivalente a um silogismo, que demanda um tipo de inteligência demonstrativa. O ápice dela ocorre no desfecho do último terceto, que prevê o rompimento da expectativa criada pelo próprio soneto ao longo do seu andamento. Quer dizer, a forma fixa do soneto está a serviço de um raciocínio cerrado, ordenado, que se acompanha até o próprio desmentido, quando o verso de ouro fulmina a construção anterior, a fim de produzir surpresa e admiração no leitor. Trata-se de um movimento ostensivamente intelectual, ajustado à especulação amorosa, mas obviamente inadequado para ambientes “rústicos”, que demandam outros recursos de decoro, fingidamente humildes.

Críticos pós-românticos que ignoram ou desdenham a regulamentação retórico-poética aplicada ao caso, tendem a ler qualquer obra com a mesma liberdade com que leem um “poema” de seu próprio século — e, por vezes, sentem-se à vontade até mesmo para acusar a falta de “sinceridade” dos autores do período “barroco”, os quais, ao falar de amor, apenas o fazem por meio de operações analíticas sutis. Trata-se de uma crítica anacrônica, que opera com a ideia de “unidade psicológica” ou de “interioridade” do autor, numa concepção universal e trans-histórica, que simplesmente não funciona para uma composição regulada pela conveniência programada dos decoros de gêneros.

Se não se tratar de análise amorosa, mas de matéria fúnebre, o poeta engenhoso não escolheria a forma do soneto, mas da elegia, ou quem sabe do epitáfio; caso prefira a prosa narrativa ao verso, pode ser que escreva um panegírico. Cada uma dessas formas tem uma medida entre res e verba, vale dizer, entre a matéria e a sua apresentação mimética, conectadas convenientemente entre si. Por exemplo, se o poeta quer produzir uma epopeia, convém usar o hexâmetro datílico, que é o mesmo tipo de verso aplicado nas matrizes homéricas, cujo andamento sugere uma marcação rítmica bélica. Por isso mesmo, sendo um gênero elevado com andamento grave, não seria decoroso aplicá-lo a uma matéria obscena, a menos que se pretenda obter um tipo de efeito satírico ou cômico, como o faz o português Bocage (1765-1805), na Ribeirada:

Ó Musa galicada e fedorenta
Tu, que às fodas d’Apolo estás sujeita,
Anima a minha voz, pois hoje intenta
Cantar esse mangaz, que a tudo arreita:
Desse vaso carnal que o membro aquenta,
Onde tanta langonha se aproveita,
Um chorrilho me dá, ó musa obscena,
Que eu com rijo tesão pego na pena (…)

O efeito hilariante decorre justamente do fato de Bocage explorar o contraste brutal entre a marcação rítmica das grandes batalhas e o tema do baixo meretrício, de modo a gerar a “monstruosidade” ou a desarmonia programada do gênero satírico. Isso obriga a que se reconheça a relevância do decoro poético vigente à época, o que também equivale a admitir que, para um autor do período dito “barroco”, noções idealistas ou românticas como “interioridade” ou “subjetividade”, nada dizem a respeito do seu ofício: são apenas referências extra-técnicas, aquém ou além da justa medida implicada na criação da obra de arte.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho