há um tempo
há um tempo olho com paciência
a rachadura aberta de um lado
a outro do meu crânio
quase tão funda quanto a fratura
por onde brota um rio
no meio da sala de estar
como a cratera — que não vemos
mas pulamos — a se abrir nos dias
como a fissura engendrada
na Tate Modern pela Dóris Salcedo
aquela profunda divisão nos convida a olhar para dentro
você olha dentro e vê a catástrofe formada
por fora ainda um comentário sutil
leve poeira levantada
e a rachadura parece fazer parte
algo que chega devagar
e de repente está lá
e de repente ocupou todo o espaço
o mundo está de cabeça para baixo
ou nós que olhamos o mundo do fundo do buraco?
e por que o medo de cair para o alto
se já estamos no fundo?
não esqueça
tudo chega em dado momento
talvez fosse possível ver outra realidade
se chegássemos perto, se olhássemos
pela janela, se déssemos a volta
talvez até fosse possível ver as fissuras da rua
adormecidas e cobertas por caixas de papelão
não. nossos olhos não se abriram
de todo
é ainda preferível encher
com punhados de concreto a fenda
que teima em aumentar
— apesar das linhas costuradas à força —
a ver reabrir o crânio, ou melhor, a sala, não
o peito
mas quando a exposição terminar
a fissura será fechada, a fissura estará sob o chão
coberta por fina camada de horas mortas
uma cicatriz, nem isso, um arranhão
marca de uma vida que tem
todo o seu peso sobre a palavra sim
sobre o que mesmo estamos falando?
…..
200.000
só não morrer só só não morrer só não morrer só não morrer só só não morrer só não morrer só não morrer só não morrer não morrer só não morrer só não morrer não
morrer só não morrer só não morrer só não morrer só não morrer só não morrer só não só
não só não morrer só não morrer só não morrer só não morrer só não morrer só não morrer
só não morrer só não morrer só não morrer só só não morrer só morrer só
então
se você passar pelo corredor ainda a tempo
de sobre as macas ver os corpos
interrogue os mortos
eles ainda falam