Confesso, incrédulo (a) leitor (a), que não assisti ao blockbuster Titanic, de James Cameron, que circulou em todas, literalmente todas as salas de cinema disponíveis em 1997. Mas, claro, nem por isso me livrei de conhecer a trama protagonizada pelo lindo e saudável casal Leonardo Di Caprio e Kate Winslet. Até porque, a música-tema do filme, My heart will go on, celebrizada pela cantora canadense Celine Dion, durante anos e anos ilustrou as cerimônias de casamentos havidas na igreja de São Domingos, que fica em frente ao meu prédio. Um parêntese: eu sempre estranhei isso, porque imaginava que não poderia ir muito longe um casamento que começava com um naufrágio…
Mas, continuando, paciente leitor (a). Como disse, não assisti ao filme, mas conheço a história real do mais luxuoso e seguro navio de passageiros do mundo, o “inafundável” RSM Titanic, cuja viagem inaugural, iniciada no dia 10 de abril de 1912, em Southampton, na Inglaterra, rumo a Nova York, terminou tragicamente na madrugada do dia 15, após colidir com um iceberg, matando mais de 1,5 mil pessoas. Na ocasião, ficaram à tona apenas alguns relatos de heroísmos — que sempre os há, poucos, mas há — e os muitos de má fé e egoísmo — que estes abundam, afinal pertencemos à raça humana, não é mesmo?
Pois bem, relembremos os fatos. É noite escura, sem lua, praticamente todos os passageiros estão dormindo. De repente, os vigias que estão no alto da gávea distinguem um iceberg à frente e avisam ao primeiro-oficial que estava naquele momento no comando do leme. Ele manda imediatamente parar as máquinas para tentar evitar a colisão, mas o navio é imenso e a manobra, demorada. Em poucos segundos, o gelo rompe o casco abaixo da linha-d’água. O capitão, que estava dormindo e que ignorou todos os avisos de presença de icebergs na rota, já não pode fazer mais nada.
Os comissários de bordo percorrem o navio acordando os passageiros mais ricos para seguirem para o convés dos botes, enquanto os mais pobres são instados a colocar coletes salva-vidas. Muitos passageiros relutaram em seguir as ordens, por não acreditar que o Titanic estava em perigo. Não foi dito a eles que o navio estava afundando, embora todos pudessem perceber que ele estava inclinado.
No convés, a tripulação iniciou o preparo dos botes, que, descobriram, não dariam para todo mundo. Ninguém entendia nada, porque ao barulho dos gritos se juntava o do vapor das caldeiras eliminado pelas chaminés. Além disso, os tripulantes estavam mal preparados já que nenhum exercício de emergência havia sido até então realizado. A grande maioria dos passageiros que conseguiu embarcar nos botes era das primeira e segunda classes — os da terceira classe permaneceram presos atrás de grades que os impediam que corressem para os botes. Enquanto isso, o comandante do Titanic, Edward Smith, se recolheu, paralisado, incapaz de assumir o comando, e negligenciando informações cruciais sobre a real situação do navio.
Resultado desta catástrofe: dos 2.224 passageiros a bordo, apenas 710 sobreviveram e, destes, muitos morreram pouco tempo depois, em consequências de ferimentos ou pelos efeitos da exposição ao frio.
Não sei por que, querido (a) leitor (a), essa narrativa parece, terrivelmente, uma metáfora do que está ocorrendo neste momento no Brasil. E, nós, você, eu, todo mundo, somos os passageiros deste Titanic, que vai afundando lentamente, sem botes salva-vidas para todo mundo, com muita gente acreditando que trata-se apenas de um furozinho no casco, comandados por um sujeito que, Deus que me perdoe…
(Ah, com um pequeno, mas essencial detalhe, desmemoriado (a) leitor (a): o capitão do Titanic foi designado; o nosso, eleito com o voto de 58 milhões de eleitores e a conivência de outros 42 milhões, que votaram em branco, anularam ou nem se deram ao trabalho de se dirigir às urnas).
Luz na escuridão
Luiz Antonio de Assis Brasil, romancista, pioneiro na criação de oficinas literárias no Brasil: “Não é fácil escrever debaixo de uma peste. Os mortos só aumentam e olham a tela do computador por cima de nossos ombros. Escrever, nessas condições, é quase um ato obsceno. Por outro lado, não escrever é pior: é imobilizar-se perante o destino e perante os desmandos de um celerado que faz de tudo para banir a alegria do rosto dos brasileiros. Assim, por resistência, escrevo. Uma novela, de nome Leopold, que se refere a Leopold Mozart, pai de Amadeus. Vai com 90% escrito, embora os 10% restantes sejam os mais dificultosos, pela carga emocional que encerram e por compreenderem o ponto em que esse homem se dá conta de que foi sempre perseguido por uma verdade que estava debaixo de seus olhos — mas da qual nunca se deu conta”.
Parachoque de caminhão
“Para muitos tolos vaidosos aos quais a vida decepciona, a família é uma instituição necessária, pois coloca-lhes à disposição e como que ao alcance da mão, um pequeno número de seres frágeis, que a criatura mais covarde é capaz de amedrontar. Pois a impotência gosta de refletir sua nulidade no sofrimento alheio.”
George Bernanos (1888-1948)
Antologia pessoal da poesia brasileira
Francisca Júlia
(Eldorado, SP, 1871– São Paulo, SP, 1920)
Outra Vida
Se o dia de hoje é igual ao dia que me espera
depois, resta-me, entanto, o consolo incessante
de sentir, sob os pés, a cada passo adiante,
que se muda o meu chão para o chão de outra esfera.
Eu não me esquivo à dor nem maldigo a severa
lei que me condenou à tortura constante;
porque em tudo adivinho a morte a todo instante,
abro o seio, risonha, à mão que o dilacera.
No ambiente que me envolve há trevas do seu luto;
na minha solidão a sua voz escuto,
e sinto, contra o meu, o seu hálito frio.
Morte, curta é a jornada e o meu fim está perto!
Feliz, contigo irei, sem olhar o deserto
que deixo atrás de mim, vago, imenso, vazio…
(Esfinges – 2ª. edição ampliada, 1921)