Em tempo de novas tribos, criadas vertiginosamente, polarizações, assédios e rancores, o tema é complexo. E, contudo, é preciso enfrentar as tendências de fragmentação potencialmente infinita e insistir na possibilidade de construirmos, todos juntos, uma humanidade partilhada, ao invés de descambarmos numa guerra de todos contra todos, que talvez seja a final.
Refiro-me à polémica acerca da tradução da poesia da jovem autora norte-americana Amanda Gorman para outras línguas. Tudo começou com a possibilidade da tradução para o holandês de um livro da referida autora, que roubou a cena da tomada de posse de Joe Biden como presidente dos EUA, em 20 de janeiro de 2021. Inicialmente, a tradução seria feita pela romancista holandesa, igualmente jovem, Marieke Rijneveld, que venceu no ano passado o International Booker Prize. A escolha foi criticada por uma ativista holandesa negra, Janice Deul, pelo facto de Marieke ser branca. Por causa disso, esta última desistiu, com a concordância da editora.
O facto provocou reações em todo o mundo. Eu próprio, na minha conta pessoal no Instagram, no dia 3 de março, considerei-o uma patetice (não tenho outro termo), que apenas reforça o racismo antinegro. O escritor francês Alain Mabanckou, nascido em Ponta Negra, República do Congo, não hesitou: em vídeo divulgado nas suas redes sociais, considerou a polémica “um desastre”, afirmando que a literatura não pode tornar-se refém de qualquer tentação gregária. “A literatura engrandece-se, porque atravessa fronteiras”, disse ele.
No dia 7 de março deste ano, o colunista do The Guardian, Kenan Malik, escreveu um artigo intitulado Lost in translation: the dead end of dividing the world on identity lines, no qual não hesitou em defender o óbvio, ou seja, que “raça não pode ser um fator para saber quem traduz ou não a poesia de Amanda Gorman para o holandês” [e, acrescento eu, para qualquer outra língua].
Quanto ao argumento de que, na Holanda, os tradutores negros são marginalizados, isso resolve-se, diz Malik, exigindo e abrindo mais espaço para eles no mercado em geral. O problema — note-se — existe em todos os países onde os negros, sejam eles minoritários ou maioritários, como no Brasil, são vítimas de racismo sistémico ou estrutural. “Resolver” isso pondo negros a traduzir negros — que é outra forma de dizer que negros só podem falar dos seus assuntos e não de quaisquer outros — é pior do que condescendência: é racismo (às vezes auto-infligido).
A propósito desse argumento de que um autor negro só deveria ser traduzido por alguém que partilhasse com ele a experiência da discriminação, o escritor angolano José Eduardo Agualusa comentou, em artigo publicado pelo Globo, que também ele preferiria, “entre dois tradutores com idêntica competência”, um que dividisse com ele “certas memórias”, mas fez questão — e bem — de ressalvar que a experiência de um negro americano não é a mesma dos negros europeus. Por maioria de razão, o mesmo aplica-se aos negros africanos.
Mas é imperioso ir mais longe e perguntar: quem garante que a desejada empatia entre autor e tradutor é determinada pela cor da pele? Acreditar e/ou defender isso é uma perfeita estupidez.
A triste realidade, entretanto, é que essa estupidez parece estar a alastrar. Com efeito, no dia 10 de março, foi notícia, igualmente no The Guardian, um segundo caso de remoção de um tradutor europeu branco inicialmente contratado para traduzir Amanda Gorman: o espanhol (catalão) Victor Obiols. Justificação: não possui o “perfil adequado” para a tradução. Segundo a nota que o editor espanhol recebeu — não se sabe se do editor americano ou do agente da escritora —, a mesma terá de ser feita por uma mulher, jovem, ativista e de preferência negra.
Este tipo de exigências desconhece a própria ideia de “tradução”. A verdade é que, no própria dia a dia, sobretudo num mundo global como o nosso, precisamos de traduzir as experiências e as perspectivas dos outros, para que elas façam sentido nos termos das nossas próprias experiências e perspectivas. É o que se passa, de maneira ainda mais exigente, com a literatura e outras manifestações artísticas. Porém, nos dias que correm, experiências e formas culturais são consideradas propriedade exclusiva de grupos determinados. A ideia de “pontes culturais” é virtualmente execrada. Diz Kenan Malik: “Hoje, a identidade é vista como um meio de afastamento dos outros, de evitar as possibilidades de estabelecer mais conexões universais”.
Como autor angolano nascido antes da independência do meu país e da queda do apartheid na África do Sul, faço parte de uma geração que pegou em armas para se livrar do colonialismo e ajudar a derrotar o racismo institucional. Nessa luta — recordo — participaram africanos de todas as cores e origens.
Além das armas, a literatura foi um dos mais importantes instrumentos dessa gesta. Alguns dos mais belos poemas, contos e romances “negros” dos nossos países foram escritos por autores brancos, vários dos quais também estiveram nas prisões ou então nas matas, combatendo de armas na mão o colonialismo e o racismo antinegro.
Confesso, pois, a minha perplexidade e o meu mal estar com certas estratégias supostamente antirracistas, que não passam de mero mimetismo do discurso colonial que nos dizia para nos limitarmos ao “nosso lugar”.
Isso não ajuda o combate antirracista, antes o prejudica, dando força à teoria das falsas equivalências. Alegar que negros devem ser traduzidos por negros (e, por conseguinte, que brancos devem ser traduzidos por brancos) não é apenas ridículo: é uma espécie de “apartheid politicamente correto”. Não era nisso que pensavam os pais da negritude. Termino, por isso, com os versos de um deles, Langston Hughes:
Tu és branco —
e ainda assim és uma parte de mim,
como eu sou uma parte de ti.
Talvez por vezes não queiras ser
uma parte de mim,
como muitas vezes
eu também não quero ser parte de ti.
— Mas a verdade é que o somos!
*** O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a variante angolana da língua portuguesa.
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