O racismo está na ordem do dia em todo o planeta, não apenas desde o assassinato de George Floyd nos EUA por um agente de polícia americano, que repercutiu e continua a repercutir globalmente, mas desde o começo da ascensão da extrema direita em vários países do mundo. A razão é simples: a extrema direita é natural e intrinsecamente ultranacionalista, xenófoba e racista.
O racismo anti-negro é, sem qualquer sombra de dúvida, o principal problema atual do racismo, mas é bom não esquecer duas coisas: primeiro, há vários racismos no mundo e, segundo, a luta antirracista precisa de ter como objetivo último a superação de todas e quaisquer formas de racismo.
Começo pelos vários racismos existentes presentemente no mundo. A atual pandemia da Covid-19, por exemplo, tem dado azo a casos de racismo anti-chinês em vários países. Na Europa, a minoria cigana é alvo de racismo explícito em numerosos países, ao mesmo tempo que os europeus do norte tendem a menorizar os europeus do sul. Na China, minorias étnicas, como os uigures e outras, são perseguidas. Em Myanmar, os rohingya, uma minoria muçulmana, são vítimas de uma tentativa de genocídio.
O continente africano não escapa destas vicissitudes. Na África do norte, as minorias negras são discriminadas pelos árabes ou pelos tuaregues. Na África subsariana, as minorias brancas e mestiças tendem a ser hostilizadas (em parte, devido à incapacidade das atuais elites de resolverem os problemas da maioria e de superarem as diferenciações criadas pelo colonialismo). Em vários países africanos, os albinos são discriminados. Há conflitos entre nilóticos e bantus, como no Ruanda ou no Burundi.
Talvez a primeira estratégia de todos os racismos seja a desvalorização do(s) outro(s). Não esquecendo que o racismo é um problema universal e que há várias direções da referida ideologia por esse mundo afora, ater-me-ei ao racismo anti-negro, para mim, insisto, a principal questão racial dos nossos dias. A sua estratégia consiste em desqualificar os negros em todas as suas dimensões, a começar, desde logo, pelo fenótipo.
Assim sendo, é natural, legítimo e imprescindível que o antirracismo precisa de começar precisamente por desconstruir essa estratégia. Daí o “Black is beautiful” criado pelos negros norte-americanos na segunda metade do século passado e que ainda hoje ecoa. Faz igualmente parte da afirmação da identidade negra a valorização das múltiplas contribuições dos homens e mulheres negras ao desenvolvimento da humanidade, em todas as áreas.
O orgulho, a reivindicação e a afirmação da sua própria identidade por parte dos oprimidos não devem, entretanto, implicar a diminuição ou a obliteração, seja pelo esmagamento seja pela assimilação, das demais. Do mesmo modo, não devem, em definitivo, impedir as dinâmicas que levem a alianças ou mesmo eventuais cruzamentos identitários, suscetíveis de criar novas identidades (não, não estou a falar de biologia, embora não tenha nada contra ela).
O facto, contudo, é que certas direções do atual movimento antirracista mundial parecem-se mais com lutas identitárias do que um combate pela superação de todas as diferenciações e discriminações com base na “raça”. Das classificações aglutinadoras e tentativas assimilacionistas (como se ser antirracista implicasse pertencer a um “tipo” único) ao exclusivismo radical, ideologicamente ancorado em conceitos úteis e produtivos, mas desvirtuados (como “lugar de fala”, “apropriação cultural”, “colorismo” e outros), desvirtuamento esse cujo único resultado é enfraquecer a luta – o antirracismo corre o risco de perder o foco.
Pessoalmente, sonho com uma humanidade que possa não apenas coexistir civilizadamente, mas conviver – e, se o quiser, misturar-se – em pé de igualdade e de maneira livre e descomplexada. Sublinho, por todas as razões, a expressão “em pé de igualdade”.
As imagens das ruas norte-americanas, mostrando pretos, mestiços, brancos, hispânicos, asiáticos, homens, mulheres, gays, lésbicas, transgénero, jovens, velhos, numa palavra, todos, de joelho no chão e punho erguido, unidos contra o racismo sistémico anti-negro, ajudam-nos a todos, creio, a ter alguma esperança.
Afinal, e como diz a romancista britânica Bernardine Evaristo, que tem ascendência nigeriana e brasileira, “todos temos uma humanidade compartilhada”.
* O autor escreve conforme o acordo ortográfico e consoante a variante angolana da língua portuguesa.