O argumento da estupenda série de televisão Fauda está baseado nas ações de um grupo de agentes secretos judeus que se passam por árabes para combater o terrorismo na Cisjordânia. Um dos momentos mais emblemáticos ocorre logo no início: disfarçados de entregadores de doces para um casamento, os agentes são desmascarados em plena festa, têm de bater em retirada e uma troca de tiros culmina com a morte do noivo, única vítima do incidente. O objetivo da ação era a captura de um notório terrorista do Hamas que se supunha morto mas que havia reaparecido recentemente e cuja presença na festa era esperada por seu parentesco com o noivo.
Não resta dúvida de que ali havia terroristas, além de gente disposta a defendê-los. Mas tratava-se enfim da celebração de um casamento que seguia todos os ritos sagrados da tradição islâmica e do qual o noivo restou morto e a noiva, viúva. Alguns episódios adiante, o próprio terrorista cuja caçada havia provocado a tragédia refere-se a ela como um exemplo da inexistência de solução para um conflito em que o sangue derramado é o da própria família. Vale então o olho por olho, o dente por dente, o sangue de uma família compensado com o sangue da outra, um círculo vicioso de ódio que nunca termina, só cresce, alimentado por mais sangue e mais violência.
Ao virar a última página do romance Solução de dois estados, que mostra outra vez um Michel Laub ocupado com um potente drama de natureza familiar, um desavisado leitor vai naturalmente chegar à mesma questão que tem sido posta ao autor por ocasião do lançamento da obra: o porquê da escolha desse título para uma obra em nada relacionada com a questão palestina. Há por certo o fato de Laub ter ascendência judaica, e, ainda que entre seus sete romances já publicados haja um único até agora cuja temática se relaciona explicitamente a essa condição, há sempre a expectativa de que um judeu queira falar sobre o que acontece em Israel. Mas a pergunta pode ter apenas o saudável e singelo objetivo de provocar a discussão sobre o que se torna óbvio a partir da leitura do romance a quem tenha um mínimo de conhecimento sobre a origem dos conflitos que fustigam hoje o Oriente Médio.
Argumento do livro
Vamos devagar com esse andor e voltar por um instante ao argumento do livro: no Brasil dos dias atuais, os irmãos Raquel e Alexandre Tommazzi estão rompidos há muitos anos. Os negócios do pai haviam ruído com o confisco da poupança no Plano Collor, mas ele continuou a custear os estudos de Belas Artes da filha na Europa. O filho, por sua vez, teve de encontrar uma solução para sua vida sem apoio algum do patrimônio familiar, que a crise financeira havia dilapidado.
De volta ao Brasil, Raquel usa a obesidade mórbida — pesa 130 quilos — e a autodepreciação em obras performáticas e vídeos pornográficos que têm a intenção de denunciar a violência. Alexandre torna-se dono de uma rede de academias de ginástica e mantém vínculos com um pastor evangélico que lhe abre as portas a um mundo de negócios tão lucrativos quanto terrivelmente suspeitos.
Num seminário sobre arte e política que acontece num hotel em São Paulo, Raquel prepara-se para fazer uma de suas performances quando o palco é invadido e um homem ligado a seu irmão a espanca brutalmente. O episódio repercute na classe artística e motiva a vinda ao Brasil de uma cineasta alemã que está filmando um documentário sobre a violência brasileira. A própria cineasta havia perdido o marido num assalto à mão armada no Rio, anos antes, e a violência é um tema recorrente em seu trabalho.
Ao longo dos anos, Laub vem se libertando das estruturas mais ortodoxas de narrativa longa para experimentar soluções formais que emulam a contemporaneidade e suas múltiplas possibilidades de interlocução com a literatura. Os parágrafos curtos e numerados de Diário da queda (2011), onde duas histórias se intercalam e se imbricam, levam o leitor a pensar em listas e esquemas e também na linguagem concisa das redes sociais. Em O tribunal da quinta-feira (2016), a narrativa se estrutura a partir de troca de e-mails e mensagens por celular. Solução de dois estados é basicamente a reunião dos longos depoimentos prestados por Raquel e Alexandre à cineasta, alternando-se em grupos intitulados material bruto, material pré-editado e extras/material a inserir.
Choques narrativos
Nunca há nada de óbvio num romance de Michel Laub. A construção de Solução de dois estados é um trabalho de arquitetura que exige grande perícia, algo que Laub demonstra ter e que se consolida a cada novo livro. Raquel e Alexandre nutrem um pelo outro um ódio profundo cujas razões vão sendo paulatinamente reveladas pelos depoimentos que prestam. Suas raízes remontam a questões familiares mal resolvidas, mas não só a essas. Um espelho da desagregação da família Tommazzi, que funciona também como poderosa lente de aumento, é o cenário político brasileiro desde o Plano Collor até os dias de hoje, culminando com a polarização que dividiu o país nas eleições presidenciais de 2018.
Alexandre venceu a penúria e enriqueceu com a ajuda da Igreja Evangélica; é hoje um conservador, homem de bem, defensor da família e dos bons costumes e, é claro, odeia artistas, intelectuais e toda sorte de minoria e diversidade, tudo o que a irmã representa com seu corpo que não se encaixa em padrão algum, sua arte degenerada, sua vocação para viver às custas do trabalho dos outros. Ela, por sua vez, acusa o irmão de ser miliciano e de ter sujeitado a mãe a seus interesses mesquinhos após a morte do pai, um golpe duríssimo para todos.
O leitor é convidado não só a assistir mas também a tomar partido no formidável embate criado pela alternância dos depoimentos dos irmãos. O problema é que a razão parece estar ora com um, ora com outro, num jogo em que as narrativas vão se chocando ao ponto de se anularem mutuamente. Os contentores não estão frente a frente, é a cineasta quem os provoca com suas perguntas, e ela também acaba virando alvo da mágoa que os irmãos sentem um pelo outro e que já se transformou em ódio: Alexandre e Raquel atacam a entrevistadora na impossibilidade de agredirem-se entre si no momento em que prestam os respectivos depoimentos.
O mais fascinante da história, contudo, para além da peculiaridade da forma ou da querela familiar belamente apresentada e conduzida, está na ótica pela qual Laub observa a deletéria polarização que dividiu o país entre extrema direita e extrema esquerda. Alexandre e Raquel representam cada qual um desses dois polos e a forma como eles, nascidos na mesma família e partilhando os mesmos problemas, conseguiram se estabelecer e vingar, cada qual num extremo, odiando-se reciprocamente. Bem antes das questões ideológicas — a maioria dos que hoje se apressam em usar termos como “fascista” e “comunista” ou mesmo “esquerdista” e “direitista” para alvejar um oponente não tem a menor ideia a que eles realmente se referem —, as divergências nascem de questões bem mais prosaicas que, assim como na Palestina, o componente do sangue só faz agravar.
Solução de dois estados é mais uma obra notável de Michel Laub que, além da excelente literatura que sempre é, clama à reflexão num momento especialmente oportuno. O que mais podemos querer de um romance em tempos tão bicudos?