Miss Lexotan

Em "Meu ano de descanso e relaxamento", Ottessa Moshfegh cria uma protagonista junky que prefere se dopar a encarar os próprios fantasmas
Ottessa Moshfegh, autora de “Meu ano de descanso e relaxamento”
01/03/2021

Nossa protagonista é uma anti-heroína de si mesma. Ela fica escandalizada com as obras que chegam para exposição na galeria de arte em que trabalha, no coração de Manhattan. Ela odeia a chefe, vernissages, aquela alegoria toda de subversão envernizada por um laquê de grife, ou um batom Dior vencido. O artista do momento, Ping Xi, brinca com cachorros empalhados e não está nem aí para o PETA. Ping Xi, seus cachorros, seu ego grande e sua estatura pequena são a gota d’água para nossa protagonista abominar o Upper East Side — que tem um quê Santa Cecilier, mais para Higienópolis.

O pai, devorado por um câncer. A mãe, suicidada por uma combinação de remédios fortes, cigarros e muita bebida. Nossa protagonista é linda, magra, loira, alta, classe média — para a época, começo dos anos 2000, seu padrão é digno de ser estilhaçado por uma romancista. É uma escolha inteligente que Ottessa Moshfegh faz: colocar na berlinda esse rostinho bonito que, para além do estereótipo, guarda alguém com uma vasta vida interior. E prefere se dopar ao invés de encarar os fantasmas.

A descrição, no entanto, pode incomodar quem não vê com bons olhos o politicamente incorreto. Hoje, principalmente. Ela é cisgênera, tem uma fortuna em sua conta, compra calças de grife, toma uma batelada de remédios controlados. Dopada, entre o sofá e a televisão, o sonambulismo a conduz a deslizes morais — e não que isso seja ruim, ela nem lembra do que fez. Ela não liga para o mundo exterior. Língua ferina, nervos instáveis, intenções legítimas. Com a vista embaçada, domada por Valiums, Prozacs, Gardenais, Lexotans, nossa protagonista cria em volta de si uma redoma de cristal. Sua vida interior é bagunçada por convenções tortuosas sobre o que se passa fora do apartamento.

São os remédios que provocam alterações em seu humor. Picos depressivos, introspecção. Ela não quer comiseração, diferente da mãe, por isso não puxa o gatilho de uma vez. Julga, é cruel, destila fel na melhor amiga, está catártica ao andar na rua.

A dra. Tuttle não lembra que seus pais morreram, e nem se ela é de Vermont, ou Alabama, ou qualquer “coisa parecida”. É uma picareta de jaleco e pele bronzeada que provavelmente tem algum esquema com traficantes de remédios, pensa nossa protagonista. O que é perfeito. Receitas, prescrições, indicações, advertências: é isso que ela busca, e rápido.

Ela se dopa, quer hibernar. Diz para a melhor amiga que já tomou a decisão. Reva, que é viciada em refrigerantes dietéticos e fast-food, finge ouvir, sempre açucarada, prescrevendo ao final dos encontros com a amiga “Eu te amo”. Mas não é recíproco.

Reva quer ser a mulher padrão de Manhattan. Descolada, bonita, magra, com as roupas da moda, pronta para a pose. Ela é bulímica e solitária, sempre apertando o cinto, só metaforicamente, porque é “gorda” — com as devidas aspas. Ela busca a estética manequim. Nossa protagonista o é, ainda com dinheiro no bolso, mas ela só quer dormir.

Vida interior
É tentador desbancar para uma crítica ao capitalismo, ao narcisismo, ao exibicionismo, ao culto à imagem e aos fetichismos modernos. Mas deixemos os ismos para lá. Falemos de vida interior, ou a intenção de. Tudo está nebuloso, os remédios entram para sanar isso — ela quer dormir para superar os problemas. Os efeitos, contrários! E por mais hiperbólica que seja essa parábola, é estupidamente real. A sujeira vai para baixo do tapete.

Ottessa Moshfegh não tem medo de colocar na boca da personagem preconceitos, derrapadas, sempre sob medida. Ela está perturbada com a morte dos pais, as lembranças a açoitam, seu namorado é abusivo. Só se preocupa com o boquete e os lençóis arrumados, depois tchau.

A vida pode não prestar em certas circunstâncias, e o ano sabático dormindo é a única resposta que ela tem para não cair no conformismo. Onde está a felicidade? Ela espera mudar, nossa blondie junky (com receita), e os lapsos de inconsciência clamam por um vigor fictício. Por pouco tempo. Afinal, ela cai nas pistas fluorescentes das boates groovy de Manhattan, se equilibrando no salto alto, entorpecida por remédios, bebidas e techno. Volta para a casa de táxi, Reva está vomitando lá. As duas tomam um antidepressivo, encostam o queixo no sofá e dormem algumas horas. E ela se lembra de pouca coisa. Afinal, a vida pode ser uma droga de vez em quando, e este livro mostra como somos capazes de nos colocar em uma roleta-russa dentro do próprio apartamento. O perigo somos nós. Viver também é um risco, não mais do que o livre-arbítrio, principalmente com uma receita médica em mãos.

Meu ano de descanso e relaxamento
Ottessa Moshfegh
Trad.: Juliana Cunha
Todavia
240 págs.
Ottessa Moshfegh
Nasceu em Boston, em 1981, filha de mãe croata e pai iraniano. Já publicou contos nas revistas Paris Review, New Yorker e Granta. Seu primeiro romance, Eileen, foi finalista do Booker Prize.
Matheus Lopes Quirino

Jornalista, é editor revista eletrônica de literatura Fina e colaborador do jornal O Estado de S. Paulo.

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