Poemas de Lawrence Ferlinghetti

Leia os poemas traduzidos "A luz do Big Sur Light, parte 2", "Língua suja" ,"Entre duas cidades" ,"Ancorados", "Conversas entreouvidas"
Lawrence Ferlinghetti, poeta, editor e pintor americano
23/02/2021

Tradução e seleção: André Caramuru Aubert

Big Sur Light # 2.

The trees in their eternal silence
follow the dawn
out of the night
And all is not lost
when a tree can still
in first light
spread its autumn branches
and let go its ochre leaves
in pure delight

A luz do Big Sur Light, parte 2

As árvores em seu silêncio eterno
seguem a aurora
para fora da noite
E nem tudo está perdido
quando uma árvore ainda consegue
na primeira luz
abrir seus galhos outonais
e deixar ir embora suas folhas alaranjadas
em puro deleite

…..

Dirty tongue

The little black dog with the small head and funny tail
enters the little church
during Sunday mass
and waving his tail he wanders up
to where the head priest is praying over microphones
And the dog sniffs the altar
and cocks his head
as if he’s listening to the priest
And then he starts sniffing the front-row worshippers
who are now all kneeling
and waiting with eyes closed and open mouths
for Communion
And the priest comes up and starts pulling holy wafers
on their extended tongues
and only those with clean tongues
after Confession
are allowed to get the wafer
but the dog raises his paw very politely
and paws the skirt of the priest
with open mouth and tongue hanging out
for he too wants one of those delicious biscuits
But the priest ignores the dog
because the dog has no soul
according to this antique legend
And anyway his tongue is not by any means clean
after all faces and feces he has licked
And the dog can’t get one of these holy biscuits
no such luck for the soulless mutt
who now slinks away
like a starving heathen
on the far far outskirts
of the Roman Empire

Língua suja

O cãozinho preto com cabeça pequena e rabo engraçado
entra na capela
durante a missa dominical
e abanando o rabo ele perambula até
o lugar onde o padre está pregando com um microfone
E o cão fareja o altar
e inclina a cabeça
como se estivesse ouvindo o padre
E então começa a farejar os fiéis da primeira fila
que agora estão de joelhos
e aguardando com os olhos fechados e as bocas abertas
pela Comunhão
E o padre vem e começa e enfiar biscoitos sagrados
nas línguas estendidas
e somente aqueles com as línguas limpas
após a Confissão
poderão ganhar o biscoito
mas o cão ergue sua pata muito polidamente
e roça a pata na batina do padre
com a boca aberta e a língua pra fora
porque ele também quer um daqueles deliciosos biscoitos
Mas o padre ignora o cão
porque o cão não tem alma
de acordo com a antiga lenda
E de qualquer modo sua língua não é nem um pouco limpa
depois de todas as faces e fezes que lambeu
E o cão não poderá receber um daqueles biscoitos sagrados
não haverá privilégios para o vira-lata sem alma
que agora vai escapulindo
como um pagão esfomeado
pelas distantes fronteiras
do Império Romano

…..

Between two cities

Brown stubble cornfields
by a railroad crossing
with sign reading
Uneven Tracks
Bare elms
like fans against the sky
Furze with birds in a thicket
about to fly
A genre farm-painting
flashes on my inward eye —
Brown cows by a barn in sun
with a dog at play
The lone and level fields
stretch away…

Entre duas cidades

Barba marrom das espigas no milharal
onde os trilhos cruzam
com uma placa que diz
Trilhos Irregulares
Olmos nus
como hélices no céu
Arbusto com pássaros num bosque
prestes a voar
Uma tela em estilo rural
cintila no meu olho interior —
Vacas marrons junto a um celeiro ao sol
com um cão que brinca
Os campos vazios e arados
se espicham para longe…

…..

Moored

A boat moored

In the deep shade
under a weeping willow
in the bend of a river

As the light fades
so does the boat
with its willow
with its river

Only memory remains
of the lovers
in the bottom of the boat
moored to each other

They too
Gone On

Ancorados

Um barco ancorado

Na sombra escura
sob um salgueiro-chorão
na curva de um rio

Conforme a luz esvanece
o barco vai junto
com seu salgueiro
com seu rio

Fica apenas a memória
dos amantes
no fundo do barco
ancorados um ao outro

Eles também
Se foram

…..

Overheard conversations

Overheard conversations on hot summer nights
by tenement windows
in cities of the world
or in prairie capitals

the lovers on fire escapes
or on front porch swings
plotting their escapes

and the old folk inside
fanning themselves with new newspapers
and rocking

the lovers’ words overhead by the old
like the lost weekends or trains they never took

the promise of distant kisses
in undiscovered paradises
echoing again
in the hot night’s syllables
in the mouths of the young
in the eternal song
still to be re-sung

Conversas entreouvidas

Conversas entreouvidas em noites quentes de verão
das janelas das moradias
nas cidades do mundo
ou nas capitais das pradarias

os amantes nas escadas de incêndio
ou em balanços nas varandas
planejando suas fugas

e os velhos, dentro
se abanando com jornais do dia
e balançando

as palavras dos amantes entreouvidas pelos velhos
como os fins de semana perdidos ou os trens que nunca pegaram

promessas de beijos distantes
em paraísos por descobrir
ecoando novamente
nas sílabas das noites quentes
nas bocas dos jovens
na eterna canção
a ser re-cantada

…..

“A heap of broken images”

Empty house on a horizon
Two faces at a window
heads turned
Barking dog on a leash extended
Penis hung on a wall about to fall
A hand raised
with six fingers crossed
A ladder leaning on the sky upended
A sea wave about to break upon a beach
A bird about to cry in flight
Two mermaids singing each to each
mark the place where a story ended
A setting sun
holds off the night
All of this in time suspended
The universe holding its breath

There is a hush in the air
Life pulses everywhere
There is no such thing as death

“Uma pilha de imagens quebradas”

Casa vazia no horizonte
Dois rostos na janela
as cabeças viradas
Cachorro latindo numa corda esticada
Pênis pendurado numa parede quase a cair
Uma mão erguida
com seis dedos cruzados
Uma escada apoiada no céu de ponta cabeça
Uma onda do mar quase quebrando na praia
Um pássaro prestes a grasnar em voo
Duas sereias cantando uma para a outra
marcam o lugar onde uma história teve fim
Um sol se pondo
adia a noite
Tudo isso num tempo em suspensão
O universo prendendo a respiração

Há uma quietude no ar
Vida pulsando em toda parte
Não existe isso de morte

…..

Sueño Real, # 1, 2, 3

1.
In the eternal dream-time

a fish dreamt ocean
a bird sky
And I stand on the beach in the land
where all is still frontier
And hold an aluminum bird in my hand
And don’t dream sand
running through my head
as through an hourglass

2.
In the eternal dream-time
a sigh
falls from the sky
from some other history than our own
as if the world were almost
brand new

3.
Ah, como la tierra es buena
y la vida es sueño real…

Sun on fire
sucked into ocean
And the only shadow
the shadow of desire afire

Sueño Real, partes 1, 2 e 3

1.
No tempo-eterno dos sonhos
um peixe sonhou um oceano
um pássaro o céu
E eu permaneço na praia na terra
onde tudo é ainda sertão
E seguro um pássaro de alumínio na mão
E não sonho a areia
correndo através de minha cabeça
como se através de uma ampulheta

2.
No tempo-eterno dos sonhos

um suspiro
despenca do céu
de alguma outra história que não a nossa
como se o mundo fosse quase
totalmente novo
3.
Ah, como la tierra es buena
y la vida es sueño real…

Sol em chamas
sugado pelo oceano
E a única sombra
a sombra do desejo incandescente

…..

The plough of time

Night closed my windows and
The sky became a crystal house
The crystal windows glowed
The moon
shown through them
through the whole house of crystal
A single star beamed down
its crystal cable
and drew a plough through the earth
unearthing bodies clasped together
couples embracing
around the earth
They clung together everywhere
emitting small cries
that did not reach the stars
The crystal earth turned
and the bodies with it
And the sky did not turn
nor the stars with it
The stairs remained fixed
each with its crystal cable
beamed to earth
each attached to the immense plow
furrowing our lives

O arado do tempo

A noite cerrou minhas janelas e
O céu se tornou uma casa de cristal
As janelas de cristal resplandeciam
A lua
exibida através delas
através de toda a casa de cristal
Uma estrela solitária baixou
seu cabo de cristal
e puxou um arado através da terra
desenterrando corpos unidos
casais abraçados
em volta da terra
Eles se abraçavam em todos os lugares
soltando pequenos gemidos
que não chegavam às estrelas
A terra de cristal girou
e os corpos com ela
E o céu não girou
nem as estrelas com ele
As estrelas permaneceram paradas
cada uma com seu cabo de cristal
amarrado à terra
cada um preso àquele enorme arado
que sulcava nossas vidas

Lawrence Ferlinghetti
Usualmente associado aos Beats, Lawrence Ferlinghetti foi (e, aos 101 anos, ainda é) muito mais do que isso. Herói da Segunda Guerra, virou pacifista ao visitar Nagasaki alguns dias depois da Bomba. Também pintor, livreiro e ícone da contracultura californiana dos anos 60 e 70, Ferlinghetti é um dos mais importantes poetas norte-americanos das últimas décadas.
André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

Rascunho