O escritor e o desrepresamento criativo

Conto inédito de Tailor Diniz
Ilustração: Mello
01/03/2021

Ainda que estivesse ouvindo Guess Who pela décima vez, fiquei puto quando o telefone tocou e a música foi interrompida. Foi no preciso momento em que B. B. King fazia aquele solo fantástico de guitarra, que deixa a gente de bem com a vida por mais trágica que ela seja: algo irreal e desumano, que segue um nível sublime de evolução até culminar com o êxtase alucinado só possível a um gênio.

Ainda por cima, a ligação vinha de um número desconhecido. Assim que eu disse alô, ouvi a voz de uma mulher aflita. Foi logo me dizendo que seu pai estava em apuros. Precisava imediatamente de um advogado de defesa. Apuros, em termos. O sujeito estava mesmo era ferrado. Havia matado uma mendiga a facadas, no Centro Histórico, e fora preso em flagrante.

A mulher não me deixava falar, de tão nervosa. Entre as tantas coisas que me disse, e que pude entender, é que seu pai era um professor de oficina literária. Ela não conseguia imaginar como ele, um homem tão dócil, fora capaz de matar um semelhante. A seguir, como se aquilo no Brasil fosse possível de ser desconhecido, disse-me que oficina literária é um lugar onde as pessoas aprendem a escrever livros. Falou com certo orgulho do pai.

Quando consegui abrir a boca, concordei em conversar com ele. Como já disse, eu ouvia Guess Who pela décima vez, e naqueles dias andava meio carente com essa história de pandemia e isolamento social. A voz dela me fez bem, é preciso admitir. E só de ouvi-la me senti um pouco menos desamparado. Quando desliguei o telefone e voltou o B. B. King, o interrompi com autoridade. Agora a vibe era outra.

Me vesti e fui à delegacia onde estava Hortêncio Limeira. Esse era o nome do tal professor, que também era escritor, me informara sua filha. Fui recebido pela delegada Tulipa Jardim, uma morena charmosa, admiradora de Walter Jacquet, com quem eu conversava sobre literatura policial, sempre que nos sobrava um tempo.

Revelei o motivo da visita e percebi um sorriso irônico por baixo da máscara preta que ela usava, com o distintivo da Polícia Civil do Rio Grande do Sul bordada num lado. Fez sinal para eu me dirigir a uma das celas da DP, geografia que eu, por sinal, bem conhecia.

Limeira escondia o rosto entre as mãos, curvava-se para frente, sentado em um catre de cimento com um velho colchão de espuma em cima. Pelo visto, não havia percebido nossa presença. Só foi levantar a cabeça quando a grade rangeu e eu lhe disse “boa noite”.

“Sim”, ele disse, “não exatamente… uma boa noite.”

“O senhor me desculpe.”

Hortêncio Limeira estava sem máscara. Apesar do risco, não me opus. Ver sua expressão facial e a forma como reagiria à nossa conversa eram fundamentais para eu avaliar como defendê-lo. Impossível não notar sobre sua boca um volumoso bigode grisalho, que lembrava a cauda de um esquilo gordo a se agitar quando ele falava.

“Desculpe”, eu disse.

“Não precisa se desculpar. Em situações de civilidade social, a força de uma expressão é sempre maior que a razão da nossa vã filosofia.”

Achei uma boa tirada. À primeira vista, me pareceu que teríamos futuro. Eu podia estar diante de um caso raro, do acusado com boa retórica cerebral para ajudar na própria defesa. Tentei ir em frente.

“Sua filha me procurou para…”

Mas ele me interrompeu.

“Exatamente. Como o senhor já deve estar informado, sou um escritor. E um escritor está sempre, dia e noite, noite dia, dormindo ou acordado, à procura de personagens originais para compor suas obras, urdir seus enredos, para, digamos, aquarelar os instantâneos da vida em uma tela fria de computador.”

“Entendo.”

Limeira continuou, alheio ao que eu entendia ou deixava de entender:

“Eu soube por acaso que perambulava pelo Centro Histórico uma senhora mendiga, uma ex-atriz dos áureos tempos do cinema da Boca do Lixo… o senhor talvez seja muito jovem para saber.”

Concordei com a cabeça. Não era do meu tempo, mas eu conhecia o assunto.

“Tanto pela história que ela mesma se atribuía quanto pelo seu aspecto, um jeito de louca de atar em poste, mas com algo na expressão facial a lhe denunciar um passado glamouroso, cheguei à conclusão de que, por fim, depois de tanto procurar, havia encontrado, em carne e osso, a personagem ideal para centralizar o enredo de meu novo livro”.

E para ilustrar, citou dois grandes clássicos, uma prova consistente de que não era amador no assunto: Turguêniev, que só se sentia em condições de começar um romance quando passava a ouvir com clareza a voz de suas personagens, e Tchekhov, que, para colher subsídios a sua ficção, conversava com gente de toda a espécie, de políticos desonestos a monges pilantras.

“Para entrevistá-la, fui até a Praça da Alfândega, onde soubera que ela costumava dormir.”

Na medida em que avançava na história, Hortêncio Limeira ia perdendo dos olhos a expressão aflita do início da conversa. Até arriscava um discreto sorriso por baixo do bigode grisalho.

“Tudo corria bem. Conversávamos amistosamente, quando, sabe-se lá por que cargas d’água, ela entrou em surto. Pegou um punhal de dentro de uma sacola de tralhas que tinha aos pés, e me atacou, com fúria. Ato contínuo, não me restava outra alternativa que a de me proteger da insana.”

Nesse momento da narrativa, ele se levantou de súbito. Deu a volta por trás de mim e, apesar do espaço exíguo, repetiu seu gesto de defesa no momento do conflito. Jogou o corpo para um lado, enquanto a mulher saltava pelo outro. Segurou-a pelo braço, com força, em uma luta renhida pela posse do punhal. Tudo isso ele repetia em detalhes, como se estivesse mesmo participando de uma briga de vida ou morte.

Depois de um tempo, que ele não saberia precisar, ambos escorregaram nas pedras do calçamento e foram ao chão.

Foi, então, que Limeira caiu aos meus pés, com tanta força que ao se estatelar seu corpo fez um barulho absurdo, de algo que despenca do alto de um edifício.

“Foi quando aconteceu a fatalidade”, ele disse, mirando-me com um olho só, de baixo para cima, com jeito de periquito assustado.

Para a sua sorte, ao caírem o punhal estava virado para baixo. Como ele vinha por cima da mulher, acabou atingindo-a na jugular. E sua personagem — expressão dele — veio a falecer na hora.

“Era eu ou ela”, ele disse, erguendo-se com certa dificuldade.

Voltou a se sentar no catre. Um silêncio de cemitérios se interpôs entre nós e me ocorreu a ideia súbita de perguntar se ele gostava de literatura policial.

“Odeio”, ele disse. “Literatura menor. Se é que se pode chamar de literatura.”

“E os seus autores preferidos, quais são?”

Ele respondeu sem vacilar. Pareceu contente com o rumo que eu dava à conversa, deixando à margem o caso da mendiga.

“Tenho poucos. Acho que leitura demais acirra o perigo das influências desnecessárias. Não é bom para que a seiva da criação flua com independência.”

Vendo que ele se entusiasmava, segui o fluxo. Pedi para me citar um.

“Vou citar dois grandes, um homem e uma mulher: Erico, o maior de todos, em todos os tempos.” Dizendo isso, levantou-se, deu meia volta em seu próprio eixo, limpou a garganta, alisou o dorso do bigode grisalho, que se remexia, inquieto e salpicado de saliva, e acrescentou, a voz empostada, entremeada com gestos de mãos e de braços: “Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha, nos grandes dou de talho!”.

E voltou a se sentar, ofegante. Mantinha os lábios entreabertos, por onde se podia ver o vão escuro entre os incisivos amarelados de nicotina.

“É a primeira fala de Rodrigo Cambará na Vila de Santa Fé. Não lhe parece genial?”

“Muito”, foi tudo o que o tempo me deixou dizer.

“Mas amo mesmo é a Clarice. Aliás, ambos foram amigos e trocaram missivas.”

Limeira desabotoou os botões do casaco e ajeitou o colarinho da camisa.

“Me fascina o caráter epifânico da obra da Clarice, um predicado ímpar sobre o qual me debruço desde que a li pela primeira vez. A cada leitura, faço pequenas descobertas, e são essas pequenas descobertas que tento passar aos alunos da minha oficina de desrepresamento do fluxo criativo.”

Fez uma pausa para que seus olhos pudessem navegar além da grade de ferro, às minhas costas.

“Interessante, muito interessante”, eu disse.

“Mas a oficina que ministro não é exatamente de criação. Conforme referi, é de desrepresamento do fluxo criativo.”

Ele ficou meio de lado e uma réstia de luz vinda de fora destacou ainda mais seu imenso bigode, que continuava a se mexer com a independência de um animal de estimação, em cima da boca.

“Que é diferente”, continuou, em tom didático. “A oficina de criação prepara o autor para o desenvolvimento do texto a partir de um tema já definido, escolhido, mastigado.”

Ele ia falando, eu ia concordando.

“A oficina de desrepresamento destina-se a uma fase anterior à da produção textual. Centra-se no momento difícil, por vezes intransponível, em que as ideias se ausentam, quando ocorre o embate do criador com o vazio do papel à sua frente, quando o autor se digladia numa luta feroz com o tão temido branco mental. Na verdade…”, seus olhos voltaram a transitar um espaço superior, acima da minha cabeça. “Na verdade, a diferença é que meu trabalho começa, como disse, um pouco antes do desenvolvimento do texto propriamente dito. O grande objetivo é abrir as comportas e deixar que deságue aquele algo abstrato e escorregadio, mas consistente, represado nas entranhas do cérebro criativo.”

Eu começava a gostar da conversa — e estou sendo sincero. E procurava demonstrar entusiasmo, embora ele quase não me deixasse falar.

“Esse é um assunto que me fascina”, consegui dizer. “Até venho pensando em futuramente frequentar uma oficina. O senhor me caiu do céu.”

“Será um prazer ajudar o amigo a encontrar a sua voz literária. Para mim, estes são os primeiros passos para um escritor sedimentar seu caminho: encontrar técnicas eficientes de fazer com que o fluxo criativo rompa as comportas cerebrais para a descoberta de sua própria voz literária. O passo seguinte é saber ouvir essa voz quando necessário. E ter forças para calá-la quando conveniente. Às vezes, é até mais importante saber a hora de calar uma voz literária do que ouvir o que ela tem a dizer. Vai por mim, meu querido.”

E soltou uma gargalhada que quase me permitiu ver o céu de sua boca. Assim, tive tempo para mais uma pergunta.

“E o desrepresamento do fluxo criativo propriamente dito, como ocorre? São exercícios, pelo que imagino?”

Ele baixou outra vez os olhos ao nível do meu rosto. E revelou, com a voz pausada, que sua oficina se chamava “Oficina de exercícios práticos para o desrepresamento do fluxo criativo a partir da liberação do grito primal”.

“Eu desenvolvo e aplico técnicas”, ele disse. Fechou a mão, e com ela fechada fez meio círculo no ar, como se soqueasse um pernilongo que o incomodasse. “O amigo já ouviu falar em grito primal?”

Lembro que havia lido algo sobre, em algum lugar.

“Sim, faz parte da terapia primal”, chutei.

“Exatamente”, o bigode do escritor ficou quieto por um instante, como se avaliasse a presença ou não de um predador nas proximidades. “Seu criador chama-se Arthur Janov.”

E subiu a voz uns três tons de grave.

“A civilização, meu querido, assim como serve para nos ajudar a vencer nossos instintos mais bárbaros, também nos ceifa a espontaneidade advinda dos instintos que eu chamaria de instintos do bem. E a criatividade está entre as suas maiores vítimas. Por exemplo: um bebê recém-nascido, que é largado a sós na água, sai nadando espontaneamente. Mas pegue esse mesmo bebê vinte anos depois e o largue na água. Se não tiver aprendido a nadar nesse período, não saberá se defender de forma espontânea como se defenderia quando bebê, e morrerá afogado. O medo civilizatório o terá travado nos seus movimentos primitivos para se manter na lâmina d’água. O mesmo ocorre com a nossa criatividade. Os medos, as convenções sociais e políticas, os preconceitos, as idiossincrasias e os pressupostos de toda ordem estarão sempre de prontidão para tolher as ações criativas do escritor, para refluir aquilo que chamo de os eflúvios primitivos do bem. O que faço, então, na minha oficina? Ora, o que faço é tão-somente desengasgar o escritor dos obstáculos civilizatórios, libertá-lo, por meio do grito primal, de todos os medos e preconceitos impostos pela civilização e, a partir de um basta libertário, mostrar a ele um caminho desobstaculizado para edificar a sua obra. Simples como roubar o chapéu de um cego, meu querido.”

Tinha todo o sentido, devo admitir. E fiquei pensando em Simenon, que tipo de técnica teria usado para produzir uma obra de quinhentos livros, ou Guimarães Rosa para escrever Grande sertão: veredas.

“Certamente”, eu disse, “o amigo tem um lugar apropriado para que esses exercícios sejam colocados em prática?”

Os olhos miúdos do escritor mudaram de tom subitamente. Ganharam o brilho de uma lâmpada sendo acesa no lusco-fusco da tarde, e o largo sorriso que ele abriu em seguida desvelou outra vez a existência de um pequeno vão entre seus incisivos amarelados de nicotina.

“O senhor é um homem esperto, doutor. Fato que me alegra, em se tratando de meu futuro defensor.” Prolongou o sorriso. “Imagine vinte, trinta escritores aos berros, todos gritando ao mesmo tempo, na zona residencial ou comercial de uma cidade qualquer do planeta. Estaríamos diante de um infernal hospício, com todo o respeito que devoto aos amigos esquizofrênicos, oligofrênicos, parafrênicos e demais tipos de loucos catalogados nos compêndios, que, por sinal, não são poucos.”

Rimos os dois, às gargalhadas. A delegada Tulipa Jardim veio até a cela e espichou os dois olhos negros por um canto da grade. Achou que era sensato ver se estava tudo bem entre nós.

Depois de explicar em detalhes como, à beira de um mato nativo, ele e seus alunos exercitavam as técnicas do grito primal, Limeira revelou seu projeto futuro. Ainda naquele ano, pensava em criar outro módulo para a sua oficina. Estava certo de que o desrepresamento da criatividade poderia se dar também por meio de outro elemento de valor: o da dor induzida.

Citou o livro A gênese de Doutor Fausto, de Thomas Mann, no qual ele, Mann, afirma que os melhores capítulos de Carlota em Weimar, por exemplo, foram escritos sob a tortura de uma inflamação do nervo ciático.

“A dor, meu querido, é irmã siamesa da criação. Não apenas na lírica, na poesia, nos calos dos cotovelos, na desgraça das serestas de antanho, mas na boa prosa também. Como o amigo deve saber, Thomas Mann foi muito criticado, à época, por causa de seu comportamento em relação ao nazismo, antes e durante a Segunda Guerra. Essas críticas lhe doíam muito, todos sabemos. Ao falar sobre o processo de criação de Doutor Fausto, Mann lembra a atmosfera conturbada de então, a dor que sentia ao tomar conhecimento dos fatos, e chega a relacionar episódios específicos da Guerra com o ambiente criado em determinados capítulos do livro. Conta que era nesses momentos de dor e angústia que o romance avançava em ritmo inesperado.”

Citando outros que — palavras suas — “transformaram o limão em limonada”, como Cecília Meirelles, Carson McCullers e a portuguesa Florbela Espanca, Limeira explicou que sua intenção era, nesse novo módulo, despertar a criatividade de seus alunos por meio não apenas da dor física, mas da psicológica também. Tinha certeza sobre a eficiência do método, fossem quais fossem as formas, desde que civilizadas, de causar sofrimento aos seus futuros alunos.

“Só não comecei esse novo módulo porque ainda não estou seguro sobre como promover o sofrimento em meus alunos. O físico, principalmente.”

Limeira franziu o cenho e as suas sobrancelhas quase se tocaram uma na outra.

“Submeter um colega escritor ao pau-de-arara, por exemplo, mesmo que com o seu consentimento e em nome da sagrada arte da criação, seria algo para me causar problemas para o resto da vida.”

“Não tenho dúvidas”, eu disse, e estava sendo sincero.

Ele calou-se de súbito, e chegou até nós a algaravia de vozes vindas do lado de fora. Mesmo assim, pude ouvir o som de seus pulmões sendo enchidos de ar. Ao me mirar com uns olhos de tristeza, de quase agonia, ele disse:

“Mas, antes disso, temos um problema mais urgente a resolver, meu querido.”

Eu fiz que sim com a cabeça, ele continuou:

“O senhor aceita ser constituído como meu defensor?”

Eu já havia concordado em aceitar. Era decisão tomada. Consumada desde que ouvi a voz de sua filha ao telefone, quando uma espécie de alívio clareou a escuridão do meu desamparo, em meio àquela pandemia dos infernos. Respondi que sim. Ia tomar as primeiras providências para tirá-lo dali, imediatamente.

Ele sorriu, agora com humildade, seu olhar desviou-se do meu e transpôs as grades da cela, onde uma luz tênue de led pairava com desconforto.

“Mas antes preciso saber dos seus honorários. Sou um escritor.”

“Isso não vai ser problema, meu querido”, eu disse, com sinceridade.

Naquela altura da vida, um maluco a mais ou a menos na minha vida não ia fazer diferença.

Ele meneou a cabeça lentamente, como se agradecesse. E seu bigode descreveu o lânguido movimento de um pet que se espreguiça ao sol, logo após acordar de um sono sem sobressaltos.

Por fim, pronunciou uma frase que me deixou em estado de alerta. Era a frase de um clássico que eu lera inúmeras vezes. E que muitos aqui certamente conhecem e cuja citação naquelas circunstâncias me deixou intrigado. Muito intrigado, pois não acredito em coincidências.

“Que satisfação descansar meus olhos no semblante de um homem honesto”, ele disse.

Aquilo era mesmo muito estranho.

Daqui para frente, será preciso cuidado com Hortêncio Limeira, é o que digo.

Tailor Diniz

Escritor e roteirista, tem dezessete livros publicados, entre eles o romance Só os diamantes são eternos. Na televisão, seu trabalho mais recente é como corroteirista da série Chuteira preta, disponível na Amazon Prime. Com Em linha reta foi semifinalista do Prêmio Oceanos, 2015. Seu romance Noturno em Punta del Diablo foi finalista do Prêmio Amazon Kindle de Literatura 2020.

Rascunho